24 de novembro de 2013

O meu galo de Barcelos

Os dias duros, daqueles que magoam na alma, roubaram-ma. Não encontro a minha inspiração.
 
Os últimos meses têm sido passados na companhia de um coração que salta demasiado dentro do peito.
 
O peso na alma tem-se acumulado. Alguma incerteza, uma espécie de aperto.
 
Esperámos todos os dias pela decisão. Esperámos todos os dias que, quem tinha que decidir, a esquecesse. Trabalhámos todos os dias para que, quem tinha que decidir, se interrogasse se seria mesmo essa a melhor decisão. Esperando que resolvesse que não.
 
O dia chegou. A decisão não foi a que queríamos.
 
Os dias que se seguiram têm sido para juntar cacos. E, com eles, tentar reconstruir uma peça igual àquela que tínhamos antes de quebrar em demasiados pedaços.
 

Como aquele galo de Barcelos que tenho em cima do armário verde-alface do meu quarto, que já tantas vezes caiu ao chão, e que já tantas vezes colei. Caco a caco.
 
A verdade é que o galo não ficou igual, nunca mais ficará. Mas continua a tornar aquele meu espaço mais colorido. Ao lado das matrioskas e das kokeshis, que também por lá se mantêm para me proteger e trazer-me sorte. A mim e a quem me rodeia.
 
Pois bem, tal como o galo, acontece-nos cairmos ao chão de quando em vez e as nossas vidas esborracham-se como castelos de cartas. Partimo-nos todinhos.
 
Mas a cola da vida, a cola de querer viver, tem o poder mágico de unir os cacos. De nos colar as entranhas que antes achámos impossível colar e de voltarmos a brilhar. Com algumas cicatrizes, mas cheios de luz. Quem sabe mais ainda. E estamos prontos para continuar a ocupar aquele lugar nas vidas de quem nos rodeia. E nos corações.
 
O meu galo, mesmo todo coladinho e cheio de "cicatrizes", não vai sair dali de cima. Porque ainda tem muitos anos de armário verde-alface pela frente.

17 de novembro de 2013

Com quem se conta

Temos malta do marketing e da comunicação. Temos artistas e engenheiros civis. Temos executivos de topo, gente ligada ao desporto e ao fitness.

Por estas bandas há um pouco de tudo. E, com isso, abundância de conversas. Mas, principalmente, palhaçada.

Crianças, animais. Boa comida, boa bebida. O modelo “todos-contribuem-e-assim-dá-para-todos". E uma casa onde cada canto é uma memória.

20 anos de amizades. Do tempo das saídas à noite. Dos dias longos de praia. Das loucuras da idade. Das grandes histórias de amor. Dos dias com banda sonora. Músicas que ainda cantamos quando relembramos as viagens e os momentos. Quase todos hilariantes…

Histórias que ficam para sempre. Episódios que repetimos quando estamos juntos, mas que nos fazem rir como se os estivéssemos a ouvir pela primeira vez.

Foram anos que nos marcaram, que nos formaram. Estávamos no início de carreira. Mas também no auge da juventude.

Hoje somos todos quarentões. Os que não são, estão perto. Ou passaram por esse número há pouco tempo.

O mundo mudou. Todos nós mudámos com ele. E até a amizade que sentimos uns pelos outros. Porque cresceu. Fortaleceu. Passou a ocupar ainda mais espaço nos nossos corações.

Caramba, enquanto escrevo estas linhas, percebo como gosto destas pessoas...Conhecemo-nos tão bem, mas tão bem, que estarmos juntos é quase como estarmos em família. Como da ronha no sofá, de pantufas, da manta e do carrapito na cabeça se tratasse. Sem capas. Ao natural.
 



Enche-me o coração ouvir a Rodrigues recordar com prazer que me levava a sair à noite mesmo quando a minha irmã preferia ficar por casa. “Não te preocupes, pá, ela vem connosco!”. E ia. Com elas como se fosse com a mana.

Pegar-me o colo, subir-me pelas escadas, levar-me à casa de banho, tudo fazia parte. Não havia obstáculos. Nada nos parava. Aliás, nada nos parou.

Como daquela vez em que nos enfiámos no carro e só paramos em Badajoz para irmos ao El Corte Inglés. E à praça principal, para comer calamares. E à casa de banho daquela garagem onde fiquei entalada na sanita quando me sentaram. Entre gargalhadas, foi o cabo dos trabalhos tirar-me dali!

Como daquela vez em que bebemos um copo a mais, subimos as escadas do meu prédio às cavalitas mas correu mal e nos esborrachamos no meio do chão a rir. Com a minha mãe lá em cima, de porta aberta, à nossa espera. Ops.

A verdade é que nos divertimos à grande. Aproveitámos como merecíamos. E hoje, tantos anos depois e com vidas tão diferentes, continuamos por cá.

Não somos de beijos e de abraços porque sim. Por isso, quando somos, sabe-nos melhor. Mas somos de palavras de conforto. E de abanões, se for preciso. De wake up calls.

Quando alguém me pergunta como foi possível ultrapassar tudo e manter a auto-estima, respondo com estas histórias. É a esta gente que devo grande parte daquilo que hoje sou como ser humano.

Olhando para trás, e analisando cada momento, mesmo os piores, percebo como a vida tem sido generosa comigo e como tem atravessado no meu caminho as pessoas certas. Pessoas que entraram na minha vida por acaso, mas que não é por acaso que por lá se mantêm.

Já passaram 20 anos. Pois que passem muitos mais.

3 de novembro de 2013

Vão, mas voltam.

O Verão já lá vai. Voltámos à rotina do trabalho.
 
Alguns de nós meteram-se num avião e voltaram ao país que lhes prometeu um futuro melhor. Outros meteram-se no mesmo avião e foram pela primeira vez. Depois, há os que não foram nem vão, mas que o regresso ao trabalho nos retira da vista mais vezes do que as que gostaríamos.
 
Passou Setembro, passou Outubro. Com Novembro a romper, e as saudades a apertar, os que podem regressam, mesmo que por pouco tempo, de fugida. E reúnem-se à volta da mesa. Com o sol, o mar e a areia como pano de fundo. No bar de quem já passou connosco o tempo quente, no bar de quem já se partilhou connosco, e a quem desejamos que tudo corra bem.

Comentam-se as novidades de quem chega de lá. Misturam-se com as de quem vem de cá.
 
Trocam-se presentes atrasados. Os que não foram trocados por culpa da ausência forçada.
 
Notam-se as mudanças de cor de cabelo, a roupa nova. Sem maldade. Sem inveja. “Estás tão gira assim!”. Do coração.


 
 
Reforça-se aquela relação que começou no Verão. Aos olhos de todos “que bom, eles merecem”. No fundo da mesa comenta-se baixinho “vai ser desta”. Quem disse costuma acertar. Fui eu.
 
Chega a sangria. Vem o petisco. São as conversas que se cruzam. Que se atropelam. As risadas de um lado, os sorrisos do outro. Numa curva, esbarram um com o outro e é a gargalhada geral. As mesas do lado olham, mas nós nem queremos saber. É a loucura sã.
 
Os miúdos correm para perto do mar. Para acelerar na areia. Dar saltos. Mas os graúdos vão atrás. Não para controlar. Mas porque aqui todos brincam uns com os outros.
 
O sol muda de lugar e de cor. Deixa de ter força para aquecer o corpo mas ganha-a para aquecer a alma, de tão bonito.
 
O dia chega ao fim. Despede-se. Despedimo-nos todos. “Quando voltas para lá?”, pergunta-se pedindo que o tempo páre. “Vou daqui a uns dias.” “E quando regressas?”. A resposta é pronta ”no Natal e, muito provavelmente em Janeiro, para o aniversário da tua mana.”

O importante é tentar não estar longe muito tempo. Voltar sempre que se pode. O avião dá uma ajuda e torna o "tão longe" em "tão mais perto".
 
Os que ficam e apenas se despedem do momento, não do País, prometem que nem a chuva, nem o frio os vai separar. Nem a chuva, nem o frio nos vai separar.
 
Porque quando o que existe é amizade, da boa, o mundo reduz-se ao tamanho de uma azeitona.
 


1 de novembro de 2013

Porque a vida é rara

Sempre contei esta parte da minha história da mesma maneira.
 
Uma vez, duas vezes, três. Muitas. Acabei por estruturá-la daquela forma na minha cabeça e habituei-me a contá-la assim, com aquela sequência. Com os mesmos pormenores, as mesmas graças. Mas há histórias para além da história, que nunca passei para o papel.
 
Passaram-se 23 anos mas lembro-me daquele dia como se fosse hoje.
 
Estávamos em Março. Um Março frio.
 
Os dias passavam-se sempre com a mesma rotina. Lá em casa, depois de todos saírem, preparava-me para mais um dia de aulas. Andava no 10º ano. Turma da tarde. Era uma miúda feliz. Aluna razoável. Bons amigos. Popular. Com um namorado há 2 meses. O Rui. Um miúdo impecável. Aturou-me 7 anos.
 
Naquele dia, a Cláudia, a minha melhor amiga, tinha ficado de passar lá por casa para irmos juntas para a escola. Mas não íamos directas. Antes passávamos pelo Don Pomodoro, onde bebíamos um café e fumávamos um cigarro. Como os crescidos. Comprávamos um maço a meias que ela escondia religiosamente na mala.
 
A Agostinha trabalhava lá em casa há alguns anos e nunca falhava. Naquele dia ia falhar mas, nesta altura, ainda não sabíamos.
 
Lembro-me de pegar no Coca-cola, a nossa mistura de caniche com bichon, mais parecido com um desperdício do que com um cão, e de o levar comigo para a casa de banho, para evitar que se engalfinhasse com o Pantufa, um velho pequinois albino de nariz cor-de-rosa, que tudo o que queria era o descanso do sofá da sala.
 
Lembro-me de ter sentido frio e de ligar o aquecedor de ambiente. De fechar a porta e a janela.
 
Lembro-me do banho mais demorado. De lavar cuidadosamente o cabelo, que ia sempre molhado para a escola.
 
Lembro-me de me estar a saber bem. E de cantar.
 
É nesta altura que oiço o Coca a ladrar, insistentemente. Queria ir lá para fora, quem sabe presentindo algo que eu ainda não tinha sentido. Irritada saí do banho, abri-lhe a porta, deixei-o ir. Voltei lá para dentro.
 
Naquela época, ter os esquentadores nas casas de banho era um hábito em prédios antigos. Alvalade era um bairro desses. Tinha mais de 50 anos. Prédios baixinhos, sem elevador, em que cada inquilino tinha direito a um espaço nas traseiras. O nosso quintal. O bairro de Alvalade era o bairro dos nossos avós.
 
Já perto do fim daquele banho, senti-me estranha. Sem perceber o que se passava, fechei a água. Sentei-me. Esperei. Apaguei. Entrei em coma.
 
Passam-se duas horas e a Cláudia bate à porta. Já não abri. Minutos depois a minha irmã chega a casa, estranhando não se ter cruzado comigo no caminho. A essa hora, o telefone também tocava em Setúbal, onde a minha mãe escolhia as peças de uma colecção de roupa para a loja que tinha na Baixa.
 
Nunca o percurso Setúbal-Lisboa foi tão curto. Dali até ao Santa Maria, o carro voou.
 
Quando tenta entrar na UCI, alguém a pára para lhe vestir uma bata. Em vão. A pressa de chegar perto era maior.
 
Eu já estava acordada. A cabeça estalava de dor. Pedi bolachas Maria e bebi um chá. Fui vista por dezenas de médicos. A quem disse que estava bem...mas que não sentia as pernas.
 
A história que se segue é sobejamente conhecida. Exames, lesão medular, paraplegia. Médicos, Alcoitão, Londres. Fisioterapia, acupunctura, homeopatia, massagens. Mas, ao mesmo tempo, amigos, praia, namorado, escola. Vida normal de uma miúda de 15 anos.
 
Foi o terminar de um ciclo e o início de outro. Como se alguém tivesse pegado nas cartas da minha vida e as baralhasse para começar um novo jogo. Mais difícil, com outras regras.
 
Desde aquele dia aprendi a viver com o que a vida me deu. Cresci. Passei a querer sentir todos os minutos. A ver com o coração aquilo que tantas vezes só via com os olhos. A chuva. Os pássaros. O mundo.
 
E realizei a sorte que tive. Uma reviravolta indesejada, é certo, mas que me fez perceber que, se fiquei por cá, todos os dias tenho que conseguir fazer um bocadinho melhor. Ser um bocadinho melhor. E que, quando há um dia em que isso não acontece – porque estou mais em baixo, porque o saco está cheio, porque tenho a certeza que o mundo se uniu para me lixar -, devo aproveitar o dia seguinte e fazer a dobrar, recuperando o tempo que perdi.
 
Tudo sem nunca perder o foco: prefiro passar pelo tempo, do que deixar o tempo passar por mim.
 
Porque a vida não pára. E eu quero ir com ela.