16 de maio de 2019

"A cadeira não tem nada a ver"


Ontem cheguei mais cedo à Gare, já ajudada pelo Henrique, amigo de rua que faz questão de me ir buscar perto da esquadra do Oriente, por saber que aquele túnel foi feito a subir e que me custa fazê-lo até ao fim. Principalmente depois de um dia de trabalho, carregada com 2 mochilas e a minha tábua enfiada nas costas da cadeira. Sim, e 1 ou 2 saquinhos de compras, que uma mulher tem sempre qualquer trapinho em falta. 😎

Assim que chegamos ao ponto de encontro, juntam-se de imediato as cerca de 80 pessoas que nos procuram para comer a única refeição quente do dia. Em segundos, sou literalmente rodeada por elas, para dois dedos de conversa. “Olá Marta”, “Como estás hoje”, beijo para aqui, beijo para ali.

Quem passa, passa, mas antes olha com um misto de medo e desconfiança, como se esperasse que aquela malta me pudesse fazer mal. Não faz, meus caros, e a verdade é que ali me sinto protegida como não sinto noutros locais. Faço isto há mais de 4 anos, eles já se habituaram a mim, já me habituei a eles. E já não sei o que é uma quarta feira completa sem a acabar assim.

Ali há de tudo. A Dona. C., de 84 anos, que apanha 4 transportes 1 vez por semana para ir visitar a filha em Sintra, “que, coitadinha, sabe menina Marta, tem muita dificuldade em andar, por causa de uma hérnia na coluna”, o J., que se apaixonou na rua pelo P., e pede sempre uma refeição para ele “quando chegar a casa do trabalho ter uma coisinha para comer”, o romeno que me pede “pão branco, pão branco” e já o diz a cantar, o brasuca “que não come carne há 20 anos” e que opta sempre pela refeição vegetariana, o Z., que não dispensa a camisola do Benfica e que, assim que me vê, me diz “para a semana vou para o Marquês, Marta”, sabendo que o tema me irrita, ou o H., que dizem ter estudado para ser médico mas que se entregou ao álcool e que “já viu Marta, agora anda com um saco de plástico à volta do pé porque ficou com ele preso debaixo de uma camioneta ali no terminal e teve que ser operado.”

A rua está cheia de histórias que podiam ser nossas e, sempre que lá estou, sinto que aquela é uma condição na qual é mais fácil de cair do que alguma vez pensei.

Ontem apareceu um puto que eu nunca tinha visto por ali - e que se visse noutro lugar qualquer, não desconfiaria que precisava daquele tipo de ajuda. Aproximou-se, pôs-se na fila, pegou numa refeição, veio ter comigo, pediu-me um pão escuro, passou para a fruta e também levou um bolo. Tudo em silêncio.

No fim de arrumarmos tudo no carro, disse ao Henrique, “Aquela rapariga, mesmo de cadeira de rodas, vem ajudar-nos?”. E Henrique respondeu “Oh, claro, ela trabalha aqui ao lado, numa empresa grande, o dia todo! E aqui faz tudo como os outros! A cadeira não tem nada a ver, amigo. Até tem um livro sobre a vida dela… Mas olha que não é para brincadeiras! Se te metes com ela, tás feito. Com ela e connosco, que a protegemos aqui. É uma joia, um doce de rapariga”. E conta-me isto com uma espécie de orgulho no olhar por saber da minha vida e por ter falado assim de mim a um novato por aquelas bandas.

É verdade. Trabalho “numa empresa grande e o dia todo”. Na Gare, como em todo o lado, faço “o mesmo” que os meus outros voluntários/colegas/amigos. A cadeira “não tem nada a ver”. Não sou “para brincadeiras”, mas passo o dia a brincar. Se se metem comigo, sim, estão “feitos” porque não tenho medo. Estou longe de ser “uma joia”, muito menos “um doce de rapariga”. Mas enquanto eu chegar a casa com histórias destas dentro de mim, é ali que grande parte das minhas quartas feiras vão continuar a acabar.

Faz hoje 15 anos que tive alta da septicémia. E hoje apareceu-me esta foto, como memória que partilhei há 2 anos, tirada na preparação da reportagem alargada que a RTP fez na altura sobre a minha história - A Orquídea -, e onde explorou o facto de haver malta que como eu, dizem eles, talvez tenha nascido com o chamado Gene da Felicidade. O gene mágico que, defenderam, me coloca no grupo das poucas pessoas que enfrenta as coisas menos boas da vida com uma cara feliz, e as transforma em desafios. Esta fotografia não tem cadeira nem tem que ter, porque ela é só um acessório na minha vida. Muito importante, de preferência linda de morrer, mas um acessório.

Se nasci com o tal gene não sei, e até acho que esta é uma história com muita fantasia à mistura. Mas que não sei ser infeliz, isso não sei. Se é por causa do gene ou apenas por ser (e gostar de ser) meia louca, pouco me interessa.

Hoje apetece-me dizer-vos algo muito simples mas que esquecemos com demasiada frequência: vejam a vida como um privilégio único e vivam-na todos os dias com a consciência de que há por aí muita malta que trocava de lugar convosco num estalar de dedos.

Hoje apetece-me dizer-vos: mexam-me esses rabos e façam mesmo por serem felizes.💓