Ontem cheguei mais cedo à Gare, já ajudada pelo Henrique,
amigo de rua que faz questão de me ir buscar perto da esquadra do Oriente, por saber que aquele
túnel foi feito a subir e que me custa fazê-lo até ao fim. Principalmente depois
de um dia de trabalho, carregada com 2 mochilas e a minha tábua enfiada nas
costas da cadeira. Sim, e 1 ou 2 saquinhos de compras, que uma mulher tem
sempre qualquer trapinho em falta. 😎
Assim que chegamos ao ponto de encontro, juntam-se de
imediato as cerca de 80 pessoas que nos procuram para comer a única refeição
quente do dia. Em segundos, sou literalmente rodeada por elas, para dois dedos
de conversa. “Olá Marta”, “Como estás hoje”, beijo para aqui, beijo para ali.
Quem passa, passa, mas antes olha com um misto de medo e
desconfiança, como se esperasse que aquela malta me pudesse fazer mal. Não faz, meus caros, e a verdade é que ali me sinto protegida como não sinto noutros locais. Faço
isto há mais de 4 anos, eles já se habituaram a mim, já me habituei a eles. E já
não sei o que é uma quarta feira completa sem a acabar assim.
Ali há de tudo. A Dona. C., de 84 anos, que apanha 4 transportes
1 vez por semana para ir visitar a filha em Sintra, “que, coitadinha, sabe menina
Marta, tem muita dificuldade em andar, por causa de uma hérnia na coluna”, o J.,
que se apaixonou na rua pelo P., e pede sempre uma refeição para ele “quando
chegar a casa do trabalho ter uma coisinha para comer”, o romeno que me pede “pão
branco, pão branco” e já o diz a cantar, o brasuca “que não come carne há 20
anos” e que opta sempre pela refeição vegetariana, o Z., que não dispensa a
camisola do Benfica e que, assim que me vê, me diz “para a semana vou para o
Marquês, Marta”, sabendo que o tema me irrita, ou o H., que dizem ter estudado
para ser médico mas que se entregou ao álcool e que “já viu Marta, agora anda
com um saco de plástico à volta do pé porque ficou com ele preso debaixo de uma
camioneta ali no terminal e teve que ser operado.”
A rua está cheia de histórias que podiam ser nossas e, sempre
que lá estou, sinto que aquela é uma condição na qual é mais fácil de cair do
que alguma vez pensei.
Ontem apareceu um puto que eu nunca tinha visto por ali - e
que se visse noutro lugar qualquer, não desconfiaria que precisava daquele tipo
de ajuda. Aproximou-se, pôs-se na fila, pegou numa refeição, veio ter comigo,
pediu-me um pão escuro, passou para a fruta e também levou um bolo. Tudo em
silêncio.
No fim de arrumarmos tudo no carro, disse ao Henrique, “Aquela
rapariga, mesmo de cadeira de rodas, vem ajudar-nos?”. E Henrique respondeu “Oh,
claro, ela trabalha aqui ao lado, numa empresa grande, o dia todo! E aqui faz
tudo como os outros! A cadeira não tem nada a ver, amigo. Até tem um livro sobre a
vida dela… Mas olha que não é para brincadeiras! Se te metes com ela, tás feito.
Com ela e connosco, que a protegemos aqui. É uma joia, um doce de rapariga”. E conta-me
isto com uma espécie de orgulho no olhar por saber da minha vida e por ter falado
assim de mim a um novato por aquelas bandas.
É verdade. Trabalho “numa empresa grande e o dia todo”. Na Gare, como em todo o lado, faço
“o mesmo” que os meus outros voluntários/colegas/amigos. A cadeira “não tem nada a ver”.
Não sou “para brincadeiras”, mas passo o dia a brincar. Se se metem comigo,
sim, estão “feitos” porque não tenho medo. Estou longe de ser “uma joia”, muito
menos “um doce de rapariga”. Mas enquanto eu chegar a casa com histórias destas
dentro de mim, é ali que grande parte das minhas quartas feiras vão continuar a
acabar.
Faz hoje 15 anos que tive alta da septicémia. E hoje
apareceu-me esta foto, como memória que partilhei há 2 anos, tirada na preparação da reportagem
alargada que a RTP fez na altura sobre a minha história - A Orquídea -, e onde explorou o
facto de haver malta que como eu, dizem eles, talvez
tenha nascido com o chamado Gene da Felicidade. O gene mágico que, defenderam, me coloca no grupo das poucas pessoas que enfrenta as
coisas menos boas da vida com uma cara feliz, e as transforma em desafios. Esta fotografia não tem cadeira nem tem que ter, porque ela é só um acessório na minha vida. Muito importante, de preferência linda de morrer, mas um acessório.
Se nasci com o tal gene não sei, e até acho que esta é uma história com
muita fantasia à mistura. Mas que não
sei ser infeliz, isso não sei. Se é por causa do gene ou apenas por ser (e gostar de ser) meia louca, pouco me interessa.
Hoje apetece-me dizer-vos algo muito simples mas que
esquecemos com demasiada frequência: vejam a vida como um
privilégio único e vivam-na todos os dias com a consciência de que há por aí
muita malta que trocava de lugar convosco num estalar de dedos.
Hoje apetece-me dizer-vos: mexam-me esses rabos e façam mesmo por serem felizes.💓