Este é um blog normal. Um blog onde vou escrever o que me vai na alma. Bom ou mau. Sobre mim ou não. Todos os dias ou só às vezes. Quando me apetecer. Afinal, este é só um blog de uma miúda comum. Que tem dias de inspiração e outros sem ela. Mas feito com o coração. E isso é uma promessa.
Daqui de cima, da minha
varanda, sem pressa, vejo de tudo.
Vejo quem chega. Vejo
quem parte.
Vejo quem chega mas quer
partir. Vejo quem parte mas quer ficar.
Vejo quem não parte mas
que devia partir.
Vejo a vizinha vaidosa
que acha que deslumbra com o olhar. Mas não percebe que já ninguém sequer lhe olha
para o resto, quanto mais para os olhos.
Vejo gente que nunca via,
mas que passei a ver porque perdeu o emprego.
Vejo a avó que fica com
os netos e que todos os dias lhes ralha porque eles não fazem os que ela lhes
manda.
Vejo o vizinho enfermeiro
que, por ser enfermeiro, anda sempre desencontrado nas horas.
Vejo o casal de velhotes
que todos os dias, à mesma hora, apanha o autocarro para algures.
Vejo os pais a saírem cedo
demais, com os filhos encasacados, para mais um dia de escola e trabalho.
Vejo os senhores das
obras do prédio ao lado a saírem juntos para almoçar na tasca do fundo da rua
porque “é barata e come-se bem”.
Vejo o casal engraçado -
ele muito magrinho, ela muito gordinha - que entra no carro a discutir, mas que
quando regressa já vem de mão dada. E ela com uma flor numa das mãos.
Vejo o motorista do
autocarro cuja pausa na paragem é sagrada para fazer um chichi num desgraçado
de um pinheiro escondido num canto do parque de estacionamento.
Vejo o grupo de senhoras
mais velhas que fazem as suas caminhadas, de manhã bem cedo e ao fim do dia.
Todas com uns ténis calçados e de coletes reflectores vestidos. Falam das
noras, dos genros, dos maridos. Da vida. Sim, na maioria das vezes, da vida dos
outros.
Vejo os sofás, as cadeiras,
os armários - ou outras tralhas velhas que alguém deixou de querer e que, por
isso, encostou ao caixote do lixo -, a desaparecer em menos de minutos. Uns levam
por gozo, é certo, mas outros por necessidade.
Vejo um bando de pardais
barulhentos que lutam por uma migalha deixada no meio da estrada.
Vejo o gato gordo e coxo
a fazer o que mais gosta (depois de fugir aos cães): a vadiar entre carros e a
dormir de barriga para o ar, ao sol.
Vejo o vizinho que todos
os dias sai de casa para deitar o lixo, mas antes pára num canteiro que fica no
cantinho da rua para deixar comida ao gato. Daí ele ser gordo.
Vejo o Mike, o cão do
rapaz de cabelo grisalho do prédio ao lado, que ladra e pula enquanto passeia.
De felicidade. Depois entra no carro do dono, e segue com ele para o trabalho.
Vejo o Mozart, o golden
retriever aqui da rua, a passear com a dona, e fico com saudades do
Gaspar. O coração sobe-me para a garganta.
Vejo o meu pinhal e,
nele, três coelhos destemidos que se arriscam a chegar perto da estrada, mas
que rapidamente voltam para trás, aos saltos. E se perdem por entre os
arbustos.
Vejo o mar, ao longe. Mas
vejo o mar. Tão azul, mas tão azul, que se entranha com o céu.
Na minha rua vive-se. Mais do que isso, vivem-se
vidas reais. Diferentes. Mas verdadeiras. Iguais a tantas outras.
E eu, vendo-as cá de cima,
da minha varanda, sem pressa, consigo imaginar a história que está por detrás de
cada uma.
Sempre sonhei experimentar a liberdade de voar. A liberdade dos pássaros.
Por isso, se hoje, agora, me fosse concedido um desejo, como do génio da lâmpada,
era isso que lhe pedia. Que me fizesse voar. Voar sem parar. Voar. Apenas voar.
E que, em vez de me dar asas, chamasse as gaivotas e os corvos que vivem na
minha rua para darem uma ajuda.
Era simples. Davam as asas uns aos outros, faziam uma espécie de cadeirinha
de penas, e eu sentava-me nela. E íamos. Ou melhor, e voávamos.
Com as gaivotas podia fazer razias ao mar, tocar-lhe com as pontas das patas.
E picar o peixe distraído que andasse à superfície.
Já os corvos podiam levar-me até ao cimo dos pinheiros mais altos. E fazer
como eles costumam fazer, saltar de um para o outro. Ou cantar em cima das
chaminés dos prédios lá da rua. Para acordar a vizinhança.
Depois, já todos juntos, subíamos a pique até uma nuvem. Nunca vi uma nuvem
por dentro. Gostava de saber como é. De saber se a sentimos na pele quando
passamos por ela. De saber se tem cheiro.
De seguida, e depois de subirmos a pique, fazíamos o contrário, descíamos a
pique. E rasávamos as traineiras dos pescadores, daqueles que corajosamente se
aventuram no mar, cheias de peixe. E riamo-nos com os seus protestos sempre que
conseguíamos roubar-lhes um ou outro peixe.
Para terminar o dia, podíamos pousar na copa do pinheiro. Mas do mais alto.
Devagarinho, mas muito devagarinho. Aí, quase de forma delicada, as gaivotas,
com a ajuda dos corvos, sentavam-me suavemente e de novo, na minha cadeira, na
minha varanda.
No fim, acenava-lhes num gesto de agradecimento. Por me terem ajudado a
realizar um sonho. Voar e sentir, mesmo que apenas por um dia, a sua liberdade.
Depois as gaivotas regressavam ao mar, os corvos ao pinhal e às suas
chaminés. E acabava assim.
Mas todos os dias nos víamos. E tenho a certeza de que me bastaria
fazer-lhes um sinal, um pequenino sinal, e eles voltavam a unir as asas, a
fazer a cadeirinha de penas e a levar-me para mais uma aventura.
Até lá, basta-me fechar os olhos e pensar: sou uma sortuda. Já voei. Já senti
a liberdade de um pássaro. E aí sorrio.
Um sonho? Talvez, mas isso é bom, porque como dizia o poeta, nós somos
do tamanho dos nossos sonhos. E os meus são sempre assim, enormes.
São as coisas mais simples que me fazem feliz. Não estão
por nenhuma ordem em especial, mas não é por isso que deixam de me fazer feliz. De acordar de manhã e ver que está sol. Ou a chover. Mas
que acordei. Que estou viva. Mais um dia.
De sonhar e lembrar-me do sonho.
De me espreguiçar mas, ao fazê-lo, sentir cada bocadinho
do meu corpo a descontrair.
De ouvir no quarto ao lado, a minha mãe a abrir o estore.
Também a tenho mais um dia.
De acordar sem enxaquecas. Quem tem, sabe do que falo.
De tomar o pequeno-almoço e ir a correr para a varanda
para me despedir da mana e da Carlota. Mais um dia de trabalho e de escola. Mais
um dia que passa, e também elas estão por cá.
De tomar um banho quente, rápido, mas com tempo suficiente
para sentir a água a escorrer-me pelo corpo. De preferência com o cheiro do gel
de duche de chocolate.
De olhar para o espelho e ver algo que me agrada. Por
fora. Durante os meses em que estive doente e magra, não queria sequer ter
espelhos à minha volta. E foram meses demais.
Mas também de olhar para dentro de mim e gostar do que
vejo. Orgulhar-me. Chama-se amor-próprio e ajuda-nos muito a viver na selva em
que o mundo se tornou.
De ir à empresa e sentir que fiz falta nos dias em que
não apareci. Que notam quando não estou.
De chegar ao fim de mais um dia de trabalho e sentir que
piquei todas as tarefas que tinha listado. Sentir que tive um dia produtivo.
De ouvir a minha rádio enquanto trabalho em casa, enquanto
arrumo o quarto, enquanto me arranjo para sair. Ou para estar em casa.
De chegar à hora de almoço e sentir fome. Passei meses a
mais a não sentir, por estar doente.
De receber ou fazer um telefonema a uma amiga com quem já
não falo há muito tempo. Mas esse tempo parecer quase nenhum.
De não deixar passar um dia sem sentir que fiz alguém
feliz. Ou porque lhe sorri, ou porque lhe agradeci, ou porque a ouvi.
De pegar num livro e mergulhar na história. De tal forma,
que o leio em poucos dias. Nunca mais me esquecer da história. E, quando
escolho um presente para uma pessoa especial, escolho esse livro, na esperança
que ela sinta o mesmo que eu senti ao lê-lo.
De me enfiar na cozinha e inventar. Ou apenas de cozinhar
para a minha família. Desde umas simples costeletas com arroz até algo mais
elaborado. E depois dizerem-me que “ficou bom”.
De fazer um grelhado na varanda para…as 4.
De beber uma garrafa de espumante com a minha irmã ao
Sábado à noite, em casa, e ficar com a gargalhada mais fácil. E com as
bochechas vermelhas. Depois disto, um charuto e um porto.
De chegar à noite a casa e ter a lareira acesa, a Carlota
à espera, tratada, confortável e cheia de histórias para contar. Ou de ser eu a
tratar dela.
De dormir uma sesta depois de almoçar em casa, no fim de
semana. No Inverno, com os meus sacos de água quente.
De ouvir o crepitar da lareira numa noite de Inverno. Ou
os grilos numa noite de Verão. E os corvos durante o ano todo.
De mantas. Muitas mantas. E almofadas. Muitas almofadas.
E de sacos de água quente. Muito quentes.
De me lembrar do Gaspar sem chorar. Sei que ainda vai
levar tempo.
De ver televisão esparramada no sofá.
De café acabado de fazer. Acompanhado de 3 quadradinhos
de chocolate de leite Milka.
De estar na minha varanda. E ver o que vejo dela. A lua,
por exemplo.
De escrever. Mesmo coisas assim, sem grande sentido. Mas
escrever. Deitar cá para fora o que me vai na alma. Mesmo que só me interesse a
mim.
Das histórias que vivi e que consegui passar para o papel
com a intensidade com que as vivi.
De me sentir feliz só porque…sim. Sem mais grandes
explicações. Só porque sim.
De poder fazer tudo o que acabei de escrever, mas ter a
capacidade de sentir no coração que o estou a fazer. E ficar quentinho. Para mim, ser feliz passa por pouco. Porque estive perto
demais de nunca mais poder sentir. Mas, se calhar, foi preciso. Para perceber
como é bom poder sentir. E quando eu digo sentir, é mesmo isso: Sentir. Com
S grande.
Como alguém um dia disse, "A
felicidade não é um luxo: está em nós como nós próprios."
Ser feliz e fazer por ser, é isso mesmo, o meu luxo.
Antes
de tudo, um esclarecimento. Com esta crónica, apenas constato o estado do meu
País. Ou melhor, o mau estado do meu País. Porque ele merece que eu diga o que
sinto. Até porque politica faz-me urticária. Igualdade
não tem havido. Nenhuma. No meu País. Sim, aquele que ganha prémios de melhor
destino turístico em revistas estrangeiras. Aquele com gente única, clima de
sonho, sitíos de cortar a respiração. Já para não falar do que por aqui se
come, que conquista qualquer criatura que nos visita.
Mas o
povo, esse, já nada ordena. O povo vota mas os Governos depois fazem o que
querem e, acima de tudo, como querem.
A bem
da verdade, o povo nunca tem grandes alternativas quando lhe dão a escolher. Afinal,
tão bons são uns como os outros. A ambição desmedida, a ganância, a obsessão pelo poder. Hoje
em dia, os valores pelos quais cada partido se rege, ficam-se apenas pelos livros.
E já não nos corações e nas almas dos seus dirigentes. Já pouco lutam, de
verdade, por eles.
Posso
até aceitar que haja quem entre nesta vida com boas intenções. Mas não entendo
que não saiam no momento exacto em que percebem como aquilo funciona.
Faz hoje
26 anos que o Zeca morreu. O Grândola Vila Morena, música bandeira, foi símbolo
de uma revolução. Uma revolução que devolveu ao povo, quando ele, de facto, conseguia
ordenar, a liberdade que não conhecia com a Ditadura.
É uma
música que fala sobre a fraternindade. Fala sobre amor ao próximo. Valor que se
foi perdendo com o tempo. Valor que o tempo, simplesmente, apagou.
Eram
00:20 minutos do dia 25 de Abril. 1974. O Grândola Vila Morena o sinal que a revolução
ia avançar. Que o povo ia para a rua. Avançou, derrotou a Ditadura e ali nasceu a
Democracia. Que quer dizer Governo ao povo. Governo em que o povo, de uma forma,
directa ou indirecta, governa. 39 anos
depois? Só tretas. O povo elege, escolhe, é verdade. Vai confiando que este ou
aquele dará o seu melhor. Vai confiando que este ou aquele dará um rumo ao seu País.
E depois? Depois acontece o mesmo de sempre. Enchem os bolsos, ajudam os amigos.
E, os que realmente tentam mudar o sistema, ou se enrolam na teia e se deixam levar, ou acabam por desistir.
Facto:
a vida das pessoas está cada vez pior. Facto: a vida das pessoas está cada vez
mais longe de ser vida. Porque uma grande parte não vive. Limita-se a sobreviver.
Há mais
fome, mais miséria. Que agora vem de onde antes não vinha. Hoje há vergonha de
assumir que se passou a fazer parte daquele grupo de pessoas que não tem nada para
comer no frigorífico. Que deixou de poder pagar um tecto para viver.
Grândola
continua a ser uma vila morena. Pode até continuar a ser a terra da
fraternidade. Mas já não é o povo quem, dentro dela, mais ordena.
Hoje
voltou a cantar-se o Grândola Vila Morena. Virou moda. Mas hoje não há revoluções. Há pequenos
grupos de pessoas que se juntam para se manifestarem. Alguns até com as
intenções erradas. Usando os métodos errados. Mas, mesmo quando são muitas,
continuam a conseguir fazer pouco. Porque a máquina é poderosa, finge-se de surda
e o povo é demasiado sereno para voltar a revoltar-se com firmeza.
Mas as
coisas tem vindo a aquecer. Por isso, hoje é assim. Mas eu pergunto: será para sempre
assim?
Começo, finalmente, a ter esperança que não. E que, um dia, brevemente, isto mude.
A bem da verdade, o título não devia
ser este. Devia ser “ter inspiração para escrever é do caraças”. E é. Porque
escrever é fácil, desde que saibamos sobre o quê. Mas às vezes, cadê o tema?
Desde que decidi ter um blog e,
acima de tudo, desde que percebi que havia gente interessante interessada no
que eu escrevia, que passo parte do dia a pensar: mas sobre que raio é que é
que eu vou escrever logo? Sim, e dou por mim também a pedir aos santinhos que
me iluminem e que me lembrem de algum momento que me apeteça partilhar.
Até agora tenho-me refugiado em episódios da minha
vida. Em momentos bons e em momentos maus. Sempre reais. Recordações.
Mas sempre momentos com algo que, no
fim, deixasse quem me lê a pensar.
E isto leva-me à inspiração.
Nos dicionários comuns que pesquisei,
encontrei várias definições. Mas vou falar apenas de algumas.
Desde logo, inspiração ligada à
Fisiologia e que se refere “ao movimento pelo qual se leva o ar aos pulmões”.
Sim, para escrever também preciso de ar nos pulmões. Por isso, serve.
Depois vem a inspiração ligada à Teologia,
e que tem a ver com a “infusão da vontade divina na consciência humana”. Apesar
da minha educação católica, há dias em que tenho alguma dificuldade em
acreditar que existe mesmo alguém lá em cima a olhar por nós. Mas, mais do que
haver esse alguém, principalmente, que ele era magrinho, cabelo comprido, barba
por fazer, que morreu na cruz e que, passados três dias, ressuscitou. Por isso,
esta definição não me serve de muito.
Segue-se “ideia ou pensamento súbito”.
Isso sim, é o que me dava jeito, mas às vezes escasseia.
Também fala de “faculdade criadora”.
Tem dias. Hoje parece que não é o dia.
Mas calma. Finalmente encontrei
aquela definição de quem mais gostei: “acção de inspirar algo a alguém. Que influência.”
Tenho 37 anos e, quer eu queira, quer eu não queira, por tudo o que já me
aconteceu, umas vezes inspiro, outras vezes influencio.
Não gosto particularmente do Saramago, irritava-me a falta de humildade e, vá, a falta de
vírgulas, mas lembro-me que ele dizia sobre o acto de inspirar: “imaginemos
que eu estou a pensar determinado tema e vou andando, no desenvolvimento do
raciocínio sobre esse tema, até chegar a uma certa conclusão.” Agora pergunto:
já encontrei uma conclusão para este texto? Não, não encontrei. Isto não vai acabar bem. É que lendo o que ele diz
parece fácil, mas não é.
Já Mandela defendia que a sua inspiração
eram “os homens e
mulheres que lutam contra a supressão da voz humana, que combatem a doença, a
iliteracia, a ignorância, a pobreza e a fome. Alguns são conhecidos, outros
não. Essas são as pessoas que me inspiraram.”Discordar com isto era, no mínimo, ser estúpida.
Até aqui inspirei-me nas inspirações
dos outros mas...e para mim? O que é inspiração?
Para mim inspiração é ir à varanda,
olhar para o meu pinhal e sonhar como é que os animais que ali vivem se relacionam
entre eles. As suas histórias. E sim, acompanhar o gato coxo e gordo, vadio, que
vive como um rei na minha rua.
Para mim inspiração é olhar para
trás e continuar a acreditar que vai sempre haver um dia, um minuto, um
segundo, um pequenino momento em que algo diferente acontece, que me faz voar
no tempo. Para a frente ou para trás. Isso não é relevante.
Para mim inspiração é ser genuína,
dizer a verdade. É não ter vergonha de ouvir uma música de amor “muita” foleira
e lembrar-me de quando estive apaixonada.
Para mim inspiração é olhar para a
minha sobrinha a crescer e acreditar que vai ser uma miúda que vive em
liberdade e feliz.
É, acima de tudo, olhar para tudo o
que acontece à minha volta e conseguir ver ali uma história para contar.
Mas que, como disse no início deste
texto - parvo, é certo, e talvez até inútil - uma história que deixe quem me lê
a pensar. Que faça chorar. Que faça rir. Que faça mexer qualquer coisinha
dentro dela. E que a deixe com vontade de a partilhar. Com alguém que naquele
dia precisa de sentir alguma coisa. Boa ou má. Mas alguma coisa.
Hoje pus-me a
pensar, e percebi que lido melhor com a minha dor, do que com a dor dos outros.
É que com a minha
sei como dar a volta. Se não sei, arranjo, invento. Distraio-a, troco-lhe as voltas.
Passo-lhe uma rasteira. Ou dou-lhe, simplesmente, um belo pontapé no cu.
Com a dos outros
não é assim. Com a dos outros fico muitas vezes sem saber o que dizer, sem
saber o que fazer, sem conseguir ajudar. Sinto-me impotente. Eu, que estou
habituada a saber sempre o que dizer. A controlar a dor. Mas, sim, a minha.
O que mais me
custa é quando são causas aparentemente perdidas. Cientificamente perdidas. Causas
onde o que nos resta é a esperança. Mas também o que é isto de nos "agarrarmos à
esperança" quando estamos a falar de casos sem ela? Ou mesmo de pessoas que, por natureza, não
a têm?
“Tens que ter
calma”. “A vida é mesmo assim”. “Temos que aprender a aceitar”. “A ciência
avança muito rapidamente”. “Pensa que algo vai acontecer de bom”. “És forte e vais
superar”. "Luta, luta, luta". “Tem esperança”. Pronto, estão a ver…? Até eu digo aos outros para se
agarrem à esperança, mesmo sentindo no meu coração que de pouco vale. Mas, se
não disser isto, digo o quê?
“Se acreditas em Deus,
reza”. “Se acreditas noutra coisa qualquer, segue-a”. “Acima de tudo, faz o que
o teu coração te manda fazer”. “Se for gritar, grita”. “Se for chorar, chora”. “Se
for partilhar, partilha”. Porque quando gritamos, choramos ou partilhamos, deitamos
cá para fora um bocadinho desta dor. Porque se a deixamos lá dentro, ainda nos corrói
mais. E não lhe podemos dar esse espaço. É que se o fazemos, ela é má e toma
mesmo conta de nós.
Tenho tanta pena...Mesmo. Há alturas, há casos, em que é difícil ter uma palavra de conforto. Daquelas
que confortam. Que aliviam. Que mostram um caminho. O caminho.
E, por isso, nessas
alturas só podemos dar o que temos. Um ombro forte. Um sorriso que compreende. Um
abraço demorado. Um beijo mais profundo. Um dar a mão mais apertado. Como quem diz, “Nada
posso fazer ou dizer, mas estou aqui”. E estou. E fico. E vou. Mesmo que esteja longe.
Desenrasco-me e vou.
A presença da possibilidade da morte
nas vidas dos outros, é uma merda. Rouba-me as palavras. Curioso que na minha soube
quase sempre como a enfrentar. E vos garanto que não passou por aceitar. Porque
isso, nunca fiz. Mas, se calhar, era diferente.
No fundo, mesmo
lá no fundo, este texto todo só porque hoje o que me vai na alma era mesmo a vontade ter um dom.
Não o da palavra. Esse, têm muitos. Mas o da palavra certa. No momento certo.
Sempre na ponta da língua. Que acalmasse a dor nos outros, Que, bolas, é tão pior
que a minha.
Hoje estive o dia
todo a contar os minutos para chegar a esta hora. Queria muito partilhar
convosco mais uma história.
Bom, digamos que esta não é bem uma história. É
mais uma memória. E daquelas que o meu cérebro, se tivesse algum juízo, esquecia.
Ou não. Mas, antes de começar, mais um dado importante para que percebam porque
é que me lembrei disto hoje. Porque sonhei com este dia. Quase como ele se
passou.
Por fim, um alerta: este texto exige algum…estômago!
Devíamos estar
perto do final de Abril de 2005. E eu já internada há cerca de quatro meses,
intervalados com algumas melhoras que me devolviam ao meu mundo, à minha casa, à minha família. Mas que dias depois me faziam regressar ao hospital
porque voltava a febre, ou seja, a bicharoca. A septicémia, causada por uma escara infectada na nádega, estava a ganhar terreno.
Fui uma primeira
vez ao bloco para fazer uma abertura na perna. Os médicos queriam conseguir chegar às “partes
moles” (carne, músculos, etc) porque achavam que, atacando a bactéria na zona, na
sua zona, o tratamento seria mais eficaz. Durante semanas mantiveram-me a perna
com essa abertura para irem fazendo limpezas localizadas.
Mas aquilo não
estava a resultar. O raio da febre não paráva e, ao fim da tarde, fazia-me
sempre uma visita. Um amor, portanto.
Até ao dia em que
os médicos, eu acho que quase em desespero, decidem avançar e ir mais fundo.
Chegar ao osso.
Nunca mais me vou
esquecer do dia em que um grupo de homens de bata branca entra no meu
quarto, e um deles me diz “Vamos que mudar o tratamento, temos que ir mais longe.”
Era o chefe de
serviço. Um excelente técnico (e não digo excelente profissional porque, para
mim, excelente profissional tem também que ter um lado mais humano, que este
não tinha). Olha para mim e diz-me claramente “Marta, somos da
opinião de que a bactéria está alojada no teu fémur, mas só conseguimos ter a
certeza abrindo mais, chegando mais perto. Vendo.”
Fiquei a olhar
para ele à espera que me dissesse mais qualquer coisa. Qualquer coisa que
resolvesse aquilo, um caminho. Uma solução, pá! E ele acrescentou “Por isso, vais
agora para o bloco e o que se vai passar é o seguinte: se o problema estiver na
cabeça do fémur, tiramos-ta, se estiver em toda a perna, amputamos-te a perna,
se já tiver passado para o outro lado (anca)…”. Calou-se e baixou a cabeça. Havia
um ser-humano ali dentro, afinal. Como não sou
burra nem estava balhelhas, percebi o recado. Se estivesse na anca, já nada
podiam fazer, a não ser continuarem a dar-me antibióticos e acreditar que o
corpo ia acabar por reagir. Algo que até ao momento, era um facto, não tinha acontecido.
Ou seja, sem parar a porcaria da bicha, nada a fazer.
Olhei para ele, depois
para o médico assistente, um espanhol pouco mais velho que eu e com quem já
tinha estabelecido uma relação mais próxima. Lindo, diga-se de passagem! Percebi que era grave. Respirei
fundo. Mesmo fundo. E respondi “Vamos a isso. Se é mesmo assim, se é para ir, é
agora.”. Ele respondeu que sim, que iam preparar o bloco.
Na altura não
sabia mas o ortopedista que me operou, e que anos depois me tratou
de uma perna partida, contou-me que nesse dia estava de banco e que lhe
disseram apenas “Tens que vir rápido. Temos ali uma miúda que, se não for
tratada rapidamente, se apaga.”
As enfermeiras,
na altura já grandes companheiras de “aventura”, prepararam-me para descer. E lá
fui eu, sempre deitada na minha cama. Lembro-me de ir pelo corredor do serviço,
passar por elas e de as ver de lágrimas nos olhos. E a passarem-me as mãos pela
colcha que me tapava como quem diz “Vai correr bem”. Se eu tinha acabado de
saber a gravidade da situação, elas já a sabiam. Há que tempos.
Enquanto descia
no elevador que nos levava ao bloco, percebi claramente que aquela era a minha hipótese
de me safar. Nem sei bem o que senti. Só sei que não parei de chorar de medo.
Sim, medo daquilo não funcionar – estava farta de tratamentos que nada tinham
adiantado - e de ter que ficar à espera de algo que poderia nunca acontecer.
Quando cheguei ao
bloco fui transferida para outra cama, acho que esterilizada. E deixaram-me
à espera encostada a uma das paredes, num daqueles corredores onde cada porta é um bloco
operatório. Via as enfermeiras a passar, os médicos, os auxiliares. E pensava “Eu
não pertenço aqui, caraças. O meu lugar é esparramada no sofá lá de casa a ver
televisão e enrolada numa manta. O meu lugar é a ver a Carlota a crescer e a
ser uma referência na vida dela. Esta merda vai passar.”
A certa altura, há
um médico que olha para mim, vê-me a chorar, pára e diz “Então? Uma cara tão
bonita a chorar? Não pode ser…”. Respondi-lhe que estava com medo. Ele deu-me a
mão e disse-me que naqueles blocos tinha que se entrar a pensar que se ia sair
bem. Era um médico veterano, com cabelos brancos. Experiente e com ar de
Pai-Natal. Mas aquela touca cheia de bonecos tipo banda desenhada fez-me rir.
Vá, sorrir. E ele disse “Isso mesmo. Uma miúda gira não pode chorar. Vai correr
bem”. E vai-se embora.
Passados uns
minutos uma enfermeira conduz-me até ao bloco. Um sítio gelado, com paredes de
mármore, cheio de máquinas esquisitas. E um monte de enfermeiros a correr de um
lado para o outro. Passado um bocado entram os meus médicos. Os cirurgiões. Mas
acompanhados pelo ortopedista. O tal que tinha sido chamado para “safar a miúda”.
Ah, e a música que se ouve nos filmes durante as cirurgias é verdadeira. Os
meus médicos ouviam rock. Pensei: 'Tou feita!
Vejo o espanhol
que me pisca o olho. Depois apaguei-me com uma bela anestesia geral.
Lembro-me de
acordar no recobro cheia de fome e a perguntar quando é que ia poder comer
um bife com batatas fritas. Os enfermeiros de serviço riram-se e disseram “Quanto
muito damos-te um suminho, mas tens que beber devagar…”. Devia ser o pior sumo
do mundo mas, na altura, soube-me ao melhor.
Passadas umas
horas volto ao serviço e ao meu quarto. E vejo os sorrisos rasgados das
enfermeiras. Tinha corrido bem, e elas já o sabiam.
Quando o tal
médico, o chefe de serviço, entra no meu quarto disse com o seu ar austero mas,
pareceu-me a mim, com um sorriso nos olhos “Confirma-se. O teu fémur estava
desfeito pela bactéria, tivemos que o retirar, limpar e a coisa parece que
ficou com bom aspecto.” Agora iam ser carradas de antibióticos, análises todos
os dias, mais carradas de antibióticos, mais análises todos os dias. E ver se
resultava.
E assim foi
durante semanas e semanas e, de um momento para o outro, os períodos de febre
começam a ser mais espaçados. E mais espaçados. E mais espaçados. Até pararem.
Sabendo que eu
tinha boas condições em casa, os médicos arriscam mandar-me para casa com os
Cuidados Continuados. Ou seja, com o serviço de enfermagem móvel do hospital
que, 2 vezes por dia, me ia dar o antibiótico intravenoso.
Com a medicação
fui melhorando. E fui deixando de estar enjoada. E comecei a comer. E a ganhar
peso. E, finalmente, a recuperar. Foram minutos que
pareceram horas. Foram horas que pareceram dias. E foram 5 ou 6 meses que
mudaram para sempre as nossas vidas.
Depois de tudo
isto - acho eu que depois de uns 8 ou 9 meses entre ter sido internada e regressado
a casa - decido voltar devagarinho ao trabalho. Primeiro remotamente, porque
tinha mesmo que ir com calma. Mas um dia quis mesmo ir lá. À empresa. À minha
sala. À minha mesa. E estava tudo como eu tinha deixado. Fez-me bem sentir que
continuava a fazer parte daquilo. Como se nem um dia tivesse estado fora dali.
E no meu coração
não tinha. A minha vida tinha ficado apenas em stand-by. E era chegada a altura
de voltar a carregar no play. Hoje faço rewind muitas vezes, porque gosto de
recorrer aos ensinamentos que me ficaram destes dias. Mas, quem me conhece, sabe
que o estado normal é mesmo o forward! E, de
preferência fast forward...
PS – Não me levem
a mal, mas não quero elogios por ter passado/utrapassado tudo isto. Oiço-os há
23 anos, desde que fiquei de cadeira de rodas. Agradeço-os, claro, e até os
compreendo. Mas a única coisa que quero que entendam com esta história é que, por muito má que a
situação seja, quando tudo parece que não funciona, se acreditarmos que nos safamos, safamo-nos mesmo.