O dia rompeu gelado. Mas com um sol enorme e quente. Que apetece.
Pego num dos livros que insisto em manter em cima da mesa-de-cabeceira durante meses,
e vou para a varanda. Lá dentro deixo a música a tocar, para que a consiga
ouvir cá fora.
Já vai longe a decisão de fugir da cidade. Quase 12
anos, se a memória não me falha. Queríamos uma vida mais saudável. Longe da
confusão. Mais perto do cheiro do mar e do pinhal. E uma casa onde eu pudesse
ser 100% autónoma, sem armadilhas.
Foi assim que encontrei a minha varanda. Estar cá em cima é
como estar sentada numa plateia a assistir à vida a passar. Vidas a passar.
A minha rua está tranquila. Como sempre, temos a companhia dos pardais e dos corvos.
Ao longe, mas como se fosse perto, o barulho do mar, em fúria, que por estes
dias tantas histórias trágicas tem trazido com ele.
Pelo meio, ouvem-se os talheres da hora de almoço nas
cozinhas. As televisões. Os putos que jogam futebol no campo que fica nas
traseiras. Os donos dos cães que os deixam soltos pelo pinhal. O Mike é um
deles. Um rafeiro castanho, com barbas brancas e olhos cor de amêndoa. Nunca
acata a ordem do dono à primeira. É preciso chamar, chamar, chamar, até ele
ouvir. Quer dizer, ouvir ele ouve, porque quando vem, parece vir a rir.
Entretanto o gato gordo e coxo, de quem já vos falei em tempos, foi
adoptado. Mas por alguém que o conhece como ninguém. A enfermeira do prédio ao
lado sabe que é um gato vadio, livre e, por isso, limitou-se a pôr-lhe uma coleira, a
dar-lhe dormida, mas deixa-o solto durante o dia. Para além dela, todos lhe
dão de comer. Daí estar gordo.
Mas, nos últimos dias, foi outro o bicho que decidiu vir viver
para a minha rua. Em particular, para a minha varanda. Uma aranha, pequena mas gorda, que todos os
dias se dedica a construir um pouco mais da sua teia. No início, quando ainda
não me tinha apercebido desta presença, limitava-me a arrancar
aquilo. Mas, quando ontem me preparava para o voltar a fazer, ela saiu de um
buraquinho da parede - desculpem, da sua casa - e ficou parada na teia. Sem medo.
Como se olhasse para mim e dissesse “bolas, pá, outra vez não...não faças isso… deu-me tanto
trabalho!”. E não fiz. Agora já conto com ela. Deixo-a estar. Porque não haveria de deixar?
De vez em quando, muito de vez em quando, pára um carro. Lá de dentro sai o avô e a
avó, que chegam para passar a semana com os filhos e com os netos. Afinal, é Natal. Com eles,
vêm as couves, as cenouras e as batatas “lá da terra”, tudo em sacos do Pingo Doce.
Na paragem, uma senhora de cor espera
pelo autocarro que a levará a casa depois de terminar o turno da noite no lar
de idosos. Julgando-se sozinha na rua, canta uma música da sua terra. Naquele
momento não está cá, está lá. Vê-se nos gestos que faz com o corpo, nos passos que se
cruzam nos seus pés.
A ela junta-se uma adolescente de auscultadores gigantes nos
ouvidos, gorro na cabeça. Ao mesmo tempo que troca sms com as amigas, abana-se ao
som da música que está no top e arranca um sorriso à senhora. Começam a conversar. Nisto aproxima-se uma velhota de bengala, que todos os dias apanha o transporte para ir
beber um chá depois do almoço, com as amigas de sempre.
Chega o autocarro, à hora, todas seguem os seus caminhos. A rua fica de novo
vazia. Mas apenas por breves minutos.
Mesmo por baixo do meu prédio passa o amolador. Dizem que
traz a chuva, o mau tempo, mas o céu continua azul e nem sinal de nuvens. Veremos. Os putos, os mesmos que antes
jogavam à bola, passam agora por ele e imitam o som da gaita, no meio de gargalhadas.
O homem, já velho, continua mas ri-se. Não se importa. Já teve a idade deles.
Cada pessoa que passa lá em baixo tem uma história. Uma vida. Aqui de
cima, da minha varanda, vê-se parte dela. Atrevo-me a dizer, a parte que
interessa.
Porque, como em tudo, são os detalhes que fazem a diferença.