Recebo um convite para um evento da minha área, a da
Comunicação. Quem o envia é uma mulher que admiro, pessoal e profissionalmente,
que tem vindo a dar cartas no mundo dos media e - que sorte - é minha
companheira de palhota de praia. Não quero mesmo faltar, é um passo importante
na vida de uma amiga, quero estar por perto.
Vou à agenda e vejo que tenho uma reunião que promete
terminar para lá da hora prevista para o início do evento. Reorganizo a semana
para poder fazer essa reunião noutro dia. Resolvido.
Olho de novo para o convite, para perceber onde vai
decorrer. Cinema São Jorge. Quase 70 anos de história e eis que se acende
aquela luz que se acende sempre que tenho que me deslocar, em particular a um
espaço tão antigo. A probabilidade de não estar preparado para me receber é
ainda maior, há que averiguar antes de ir.
Ligo para o contacto geral, atende-me uma colaboradora
simpática a quem pergunto “o São Jorge tem acesso para pessoas que se deslocam
numa cadeira de rodas?”. A resposta vem pronta “temos sim, temos as plataformas
elevatórias, casa de banho e lugares reservados nas salas”. Fico nas nuvens e
remato com uma última pergunta “e há lugar de estacionamento perto do cinema?”,
parecendo eu que sabia que vinha dali chumbo grosso. “Sabe, haver havia, mas a
Câmara substituiu-o por uma estação de bicicletas Gira e deslocou o lugar para
deficientes dez metros para a frente…”.
“Espera, Marta, ouviste mal…”, ainda penso, e peço
para repetir. Mas não. A Câmara Municipal de Lisboa decidiu afastar o local
reservado a pessoas com mobilidade reduzida que havia mesmo em frente ao São
Jorge e colocar bicicletas no seu lugar. Faço uma pausa de três segundos na
conversa e esforço-me para que não me saia uma asneira cabeluda pela boca fora.
Respiro fundo, ao mesmo tempo que respondo quase entre dentes “pois, é uma
vergonha, e peço-lhe que passe o meu desagrado à direção do São Jorge”. Conto o
episódio nas minhas redes sociais e rapidamente o cinema me responde que esta
foi uma decisão exclusiva do município e que pouco pode fazer, mas que dentro
do edifício tenho asseguradas todas as condições necessárias.
No dia, lá vou eu, acompanhada por uma amiga que já
conhece de cor os malabarismos que precisamos de fazer se formos surpreendidas
por escadas ou casas de banho onde nem sequer entra a cadeira. Chegamos com uma
hora de atraso porque o trânsito de Lisboa se tornou caótico nos últimos anos.
O lugar de estacionamento está, claro, ocupado por quem dele não precisa, mas
bloqueado – e bem - pela EMEL. Arranjamos outro, por sorte, muito perto, mas
não prioritário.
Assim que me aproximo da entrada principal, sou
imediatamente abordada por dois membros do staff que me encaminham até à 1ª plataforma.
Quando olho para ela percebo que está nova, o que bate certo com o que outra
amiga me tinha dito sobre a recente aposta em acessibilidades feita por aquele
espaço. “Está a estreá-la”, comenta o rapaz, não escondendo a felicidade de ver
aquilo a funcionar e a ser útil. O sol brilha, as borboletas voam felizes, os
passarinhos cantam e está tudo perfeito, não está? Não, não está. Quando olho
para o espaço onde era suposto a plataforma terminar o percurso, percebo que é
também o espaço onde está montada a esplanada do quiosque que fica no patamar
do cinema. Toca de levantar os clientes, arredar as mesas e os bancos para eu
passar. Uma maravilha. Do mais digno que há.
Já no hall do edifico, dirijo-me à 2ª plataforma,
para poder ter acesso à sala onde ainda decorre a apresentação. Assim que olho
para o final das escadarias, e mais uma vez para o espaço onde devo
“estacionar” a plataforma, reparo em toda a parafernália da equipa de som que,
à pressa, a desvia. A minha amiga, já tão ou mais em brasa quanto eu, comenta
“e estavam à tua espera, imagina se não estivessem.”.
E a questão é mesmo esta. Quem, como eu, se desloca
de cadeira de rodas, precisa de planear a sua vida ao minuto, antes de sair de
casa. E precisa porque, se não o fizer, vão surgir (ainda mais) obstáculos por
toda a parte. Alguns que se conseguem ultrapassar, outros que nem com toda a
boa vontade do mundo se resolvem. Faço-o há 27 anos, tentando prever, e
precaver-me, de cada situação que possa surgir e transformar a minha vida num
inferno. Por vezes, “viver ao sabor do vento” é bom, no meu caso é impossível.
Deste dia destaco, no entanto, a disponibilidade para
me ajudar da parte de todos os que comigo se cruzaram. Agradeço, mesmo, saibam,
mas, perdoem-me, não chega. E não chega porque eu não quero ter que gritar para
o mundo inteiro ouvir cada vez que decido pôr uma roda fora de casa. Não chega
porque eu não quero ter que me chatear cada vez que chego a algum lado e me
deparo com faltas de sensibilidade para o tema da mobilidade reduzida. Faltas
de sensibilidade que são tantas vezes faltas de respeito, como é o caso da
substituição do lugar reservado a pessoas com mobilidade reduzida pela estação
de bicicletas, ao que parece, mais importantes que eu. Eu, que trabalho e
desconto cada cêntimo que o Estado me impõe, e que deveria de ter o direito a
usufruir do meu país e da minha cidade como qualquer outra pessoa. Eu, tão
cidadã como os outros, mas que continuo a ser tratada como cidadã de 2ª.
Já disse isto milhares de vezes, mas vou voltar a
fazê-lo, para ver se alguém me ouve: enquanto esta for uma luta das “Martas desta
vida”, não vamos longe. Enquanto as queixas forem feitas apenas por quem vive
de perto uma limitação, isto não muda. O famoso Livro de Reclamações está
disponível para todos, online e em papel. Hoje em dia, até apps que simplificam
o processo de fazer uma denúncia existem. É o caso da “+ Acesso”, lançada
recentemente pela Associação Salvador, e que qualquer pessoa pode ter instalada
no seu smartphone, ao lado do Instagram, do Facebook e de outras aplicações que
se tornaram imprescindíveis na vida de tantos. Já não há desculpas para não sermos todos cidadãos atentos, preocupados e solidários. Com ou sem limitações físicas.
Visto-me de branco por Timor, envio roupas e
alimentos para Pedrogão Grande, compro Pirilampos Mágicos, vendo livros em 2ª
mão para ajudar associações de crianças com Trissomia 21, distribuo refeições a
Pessoas em Condição de Sem Abrigo. Para além disso, disponibilizo-me para levar
o lema “Ser Feliz é Uma Escolha”, título que escolhi para o livro que conta a
história da minha vida, o mais longe que posso. Desdobro-me com uma vontade
gigante de tentar minimizar o sofrimento de quem está do outro lado. Não era
altura de sermos muitos mais a pensar no tema das acessibilidades e a lutar
para que elas se tornassem universais, fazendo do mundo um lugar um pouco mais
justo para todos?
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