13 de dezembro de 2021

Não desvies o olhar

Os dias correm demasiado mas preciso de obrigar o meu a parar, porque quero que fique registado o que senti no domingo passado.

Tinha-me inscrito para integrar a equipa de voluntários do CASA – Centro de Apoio ao Sem Abrigo. Missão: servir uma refeição de Natal aos amigos de rua.

Dias antes, as equipas do CASA percorreram mais uma vez as ruas de Lisboa para fazer chegar a estas pessoas uma refeição quente, e levaram com elas um voucher que dava acesso ao Almoço de Natal CASA 2021. A ação costuma decorrer na instalações do parceiro da iniciativa Metro de Lisboa, mas este ano, e devido à pandemia, repartiu-se pela estação do Oriente, Cais do Sodré e São Sebastião.

Desde que fomos atropelados pela pandemia que não estava presente de forma tão direta na vida daquelas pessoas que acompanhei durante 5 ou 6 anos, e isso fazia-me falta. Era também uma oportunidade de rever o Henrique e a Cláudia, casal que, juntamente com um grupo de amigos incríveis, tenho acompanhado de perto desde que há um ano saíram da rua para uma casa arrendada pela CML. Tudo isto me fez ansiar que o dia chegasse.

Domingo lá fui, cheia de vontade de voltar o terreno. Escolhi integrar a equipa da estação do Oriente porque foi naquele lugar que me tornei voluntária desta causa, em 2015. E, se no início da minha relação com o CASA, o que me motivava era entregar uma refeição quente às pessoas que ali paravam, rapidamente passei a preferir usar o meu tempo de voluntariado semanal para conversar com elas. E foi essencialmente esse o meu papel durante estas 3 ou 4 horas de “mão na massa”.

No final, o coração veio, como vem sempre, um bocadinho amassado. 

Por um lado feliz por reencontrar pessoas que já não via há 2 anos, por outro impotente porque, passados 2 anos, elas ainda continuavam ali, na rua. Depois porque se uns continuam iguais, outros há que esta vida sem um teto lhes vincou mais um pouco a pele e cada centímetro do corpo. Vi alguns destes meus amigos mais magros, mais pálidos, mais desleixados. Com os olhos mais tristes e mais vazios de uma esperança que, há 2 anos, e apesar de tudo, ainda lhes conseguia encontrar.

Os anos de pandemia pesaram a todos, mas a estes homens e mulheres, velhos e novos, pesaram mais. Não foi só o viver na rua ou em locais sem condições. Foi a indiferença, que antes já era tão grande, a que foram sujeitos. O desviar do olhar, mesmo quando se dizia que a pandemia nos tinha tornado a todos mais humanos. Não tornou. As Pessoas em Situação de Sem Abrigo continuaram invisíveis para a grande maioria.

Durante o dia de ontem foram vários momentos em que me deixei levar pela emoção. Quando vi pais e filhos a vestirem as camisolas com a palavra “voluntário” nas costas. Quando fui brindada com um “obrigado por estarem aqui”. Ou quando vi gente a perder a vergonha, a aproximar-se da nossa bancada e a sair de lá com um sorriso no rosto.

Mas houve um momento que me fez mesmo ter que respirar fundo. Aconteceu quando uma das voluntárias e minha amiga, a Cristina P, que tinha acabado de entregar um saco com a refeição e um presente de Natal a uma senhora, olhou para mim e disse, com a voz embrulhada, “é incrível como conseguimos perceber a gratidão destas pessoas, mesmo que agora só consigamos ver-lhes os olhos”. Ouvir isto emocionou-me por dois motivos. Primeiro porque a Cristina é rija, e normalmente guarda para ela as emoções que sente quando ali estamos, depois porque é mesmo aquilo. Os olhos de quem vive na rua não enganam. Passam raiva, falta de esperança, revolta, mas também passam o contrário disto tudo. Por momentos, quebrámos as duas, amaldiçoei-a por me embaciar o caraças dos óculos, mas voltámos “ao centro” depois de um abraço rápido, até porque havia mais “clientes” à espera.

Foi um domingo para registar.

Tive o privilégio de voltar a integrar uma “equipa-de-voluntários-máquina” – a do CASA - que se dedica de corpo e alma à causa das Pessoas em Situação de Sem Abrigo. Uma honra e um orgulho.

Entregámos centenas de refeições e o mesmo número de presentes de Natal, a quem já poucas surpresas espera da vida.

Revi pessoas de quem gosto muito, algumas das quais achavam que eu tinha deixado de me preocupar delas. Não deixei.

Por fim, e porque de pouco serve caminharmos sozinhos, fui e levei pessoas que desconfio que gostam ainda mais disto do que eu: Obrigada Cristina P e Cristina M e Zé!

Comigo trouxe em dobro toda a energia que levei. 💙

Fotografias: @pacheco_sequeira

@pacheco_sequeira



 


13 de abril de 2021

Vidas confinadas

Sentimos falta do abraço. De estar com os amigos. Da ida ao cinema. Do café no bar da empresa. Da tarde na praia. Da cerveja ao pôr do sol. Chegamos até a sentir a falta daquele colega de trabalho insuportável que antes preferíamos longe. 

O último ano tem vindo cheio de saudades e o grande desafio é aprender a viver com elas, focando a energia na esperança de que melhores dias tardam mas que não nos vão falhar. 

Isto é tudo muito bonito, mas agora sugiro um exercício mais duro, mesmo que hipotético: fechem os olhos e imaginem que esta nova realidade – confinamento - era a vossa normalidade. 

Para a grande maioria, isto não passa disso mesmo, um exercício hipotético, porque basta abrir os olhos e está tudo no mesmo sítio. Mas esta é a realidade de muitos e de olhos bem abertos. 

Ver artigo completo aqui

https://theminimalmag.com/vidas-confinadas/


21 de janeiro de 2021

Por todos

É mesmo necessário reduzir o beijo e o abraço. O almoço com o colega, a conversa rápida de corredor.

Já basta quem não tem qualquer hipótese e precisa de circular entre muitos. 

É difícil, todos sabemos, porque somos de seres de relação, latinos, e o toque corre-nos no sangue.

Concordemos ou não com esta ou aquela medida, deviamos unir-nos na única coisa que está à vista de todos: os números estão uma treta, os hospitais estão cheios de gente internada e demasiada em cuidados intensivos, os profissionais de saúde estão esgotados e, pelo meio, tantas e tantas pessoas a morrer.

Guardem os vossos fatos de treinadores de bancada, arrumem os vossos chapéus de especialistas de trazer por casa, encolham os vossos dedos acusatórios.

Esqueçam um bocadinho as cores que defendem e percebam que, por agora, o importante é baixarmos as armas e tentarmos combater/controlar este merdoso deste gigante que está por todo o lado e que, mesmo que não mate, trama a vida de quem se cruza com ele.

Sei que muitos dirão que as medidas estão erradas, que o caminho é outro, que o desafio sanitário está demasiado preso às tramas políticas, e que somos governados há muitos anos por máquinas globais de interesses que nos ultrapassam, argumentos que respeito e, com alguns, até concordo.

Mas não é altura para isso. É altura de olharmos para quem sofre mais com esta porcaria e tentarmos ultrapassar isto todos juntos.

Deste lado fala-vos alguém que não perdeu familiares, não perdeu emprego, não perdeu rendimento, não perdeu juízo, mas que também não perdeu a esperança no que de melhor o ser humano tem: a capacidade de se mobilizar, na altura certa, para ajudar quem precisa.

(Aos que não conseguem ver as coisas assim, respeitosamente, saiam do meu radar, porque eu quero e vou continuar a acreditar que conseguimos todos remar para o mesmo lado).






24 de março de 2020

Quarentena de uma quarentona


Estou há 14 dias em casa.

"Ver-ver", vejo a minha mãe, que vive comigo, e de vez em quando a minha irmã e a minha sobrinha, que vivem do outro lado da rua e que vão passando por cá.

Depois há os que vejo apenas online, via skype ou whatsapp.

O que me custa mais "ver apenas assim", à distância, é o meu namorado, porque as saudades apertam, e muito.

Mas também me entristece "ver apenas assim" os colegas com quem estou habituada a partilhar o meu espaço, mesmo que 1 ou 2 vezes por semana, quando vou ao escritório.

Sou muito disciplinada, passo os dias a trabalhar, até porque já é um hábito com quase 16 anos. Esse não é um problema.

O que me faz falta é a sensação simples de saber que a meio da semana vai chegar o dia de ir a Lisboa, de passear na minha mota sozinha à beira rio, de acabar o dia na Gare do Oriente com os meus colegas voluntários do CASA, e eu não vou lá estar.

Hoje ligou-me o Henrique, um dos amigos que tenho naquela rua. Queria saber se eu estava bem. Eu, em casa, confortável, segura. Ele na rua, desconfortável, inseguro. E queria saber se eu estava bem. “Temos sentido a tua falta, mas queremos-te em casa.”, diz-me. “Nós estamos bem…”, descansa-me. Mas eu sinto que está assustado e isso deixa-me inquieta.

Quando paro para pensar “então, mas isto vai ser assim durante mais quanto tempo?” fico com um pequeno nó no estômago. Porque tenho consciência de que vai demorar.

Sou uma privilegiada. Já passei por inúmeras situações de merda, safei-me de todas. Muito por causa delas, aprendi a trabalhar de casa, onde hoje tenho as condições e o sossego necessários para dar resposta ao que a empresa me pede. Mas sou uma privilegiada. Há quem não se oriente neste novo modelo.

Estou protegida, num ambiente livre de bichos, até agora, e acompanhada.

Se tiver que ir à rua não vou usar máscara nem luvas. Prefiro lavar as mãos e manter a distância social aconselhada pelas autoridades de saúde.

Sinto-me bem informada sobre o tema, dados que consumo apenas em meios e junto de pessoas que considero credíveis.

E, sim, já me deu para as limpezas. Sábado fui invadida por uma vontade quase incontrolável de dar uma volta ao meu quarto. Resultado? Enchi 3 ou 4 sacos do lixo dos de 50 litros. Assumo: saí à minha avó, no que diz respeito a guardar tralha.

Nos próximos dias, cheira-me que vou atacar o quarto do meio. Tenho para lá uns leitores de DVDs que, quando avariaram, há anos, decidi guardar. E não perguntem para quê porque não vos sei responder.

Também já pisquei o olho à arrecadação da varanda das traseiras, onde ainda guardo os aparelhos que usava para pôr nas pernas na sala de fisioterapia do Centro de Reabilitação de Alcoitão. Em 1991. Como veem, a coisa promete.

Tenho poucas certezas sobre como estará o mundo quando isto tudo passar. Mas, por este andar, a minha casa estará muito mais arrumada.

Mas até passar, devemos dar passos curtos. Viver um dia de cada vez. Não nos desleixarmos nos cuidados de higiene. Protegermo-nos e protegermos os outros. Fazer a nossa parte para travar este filho da mãe deste vírus, que nos tem a todos posto à prova.

Estou em casa há 14 dias. Farta desta treta até aos olhos. Cheia de saudades do que tenho lá fora. Mas com a certeza de que o que lá está, vai lá estar quando der para voltar a rolar por aí que nem uma maluca.



21 de setembro de 2019

44: é para dar tudo


Adeus 43, olá 44.

É nesta altura que gosto de fazer o balanço do ano. Quando pego no número e lhe acrescento mais 
um.

Olhando para trás, para os 12 meses dos 43, vejo vários momentos que me marcaram. Na sua grande maioria, bons. Os outros, que também tive, usei-os para crescer e para me tornar ainda mais resistente (agora imaginem…).

Desenganem-se aqueles que pensam que estou sempre bem disposta, sempre on fire, sempre pronta para tudo. Não, não estou. A verdade é que não estou “sempre” nada. Ninguém está sempre “nada” nem sempre “tudo”. Como todos, tenho dias. Dias “assim” e dias “assado”. E nos “assado”, acordo sem energia, insuportável, só faço merda e, cereja no topo do bolinho, em muitos deles tenho que ser um poço de simpatia com algumas dores, o que piora o cenário.

É como na loja do chinês, há de tudo. E, durante os 43, houve mesmo de tudo. Mas, venha de lá essa balança, porque ela vai comprovar que este foi mais um ano incrível. Se não, vejamos:

Arranquei-o em cima de um palco, aos pulos, com confettis até às cuecas, rodeada por uma equipa de malta feita da mesma massa que eu: que gosta de ser feliz e de fazer os outros felizes. 

Magoei e fui magoada. Umas vezes por querer, outras, quase todas, sem querer. Sem querermos.

Retomei amizades antigas. Fiz novas. E daquelas que sentimos que vão ficar.

Tive dias em que acreditei em Deus, outros em que achei que só podiam “andar a brincar comigo”.

Senti-me poderosa e frágil, ao mesmo tempo. Sexy e trambolho, também ao mesmo tempo.

Perspicaz e esperta que nem um alho, naqueles dias em que absorvia tudo à primeira, “um calhau com olhos” noutros, em que achei que só tinha capacidade suficiente para ler os livros que compramos aos nossos filhos quando eles estão a aprender as cores ou os nomes dos animais.

Apeteceu-me ajudar a mudar o mundo às 2ªs, 4ªs, e 6ªs, e às 3ªs e 5ªs só pedi para que o mundo me esquecesse, e me deixasse estar esparramada na minha cama, de phones nos ouvidos, sem me chatear.
(antes que perguntem, ao fim de semana preferi fazer sestas longas no meu quarto - o meu hobby preferido - ou paralisar ao sol, e focar-me em ganhar finalmente um tom mais saudável, que isto de ser amarela no inverno não é bonito de se ver e há que investir algum tempo para minimizar a coisa.)

Dei colo a todos de manhã, precisei do colo dos outros à noite. E tive. Se tive.

Num mês quis voltar ao cabelo castanho e libertar-me da ditadura de quem o pinta, no outro voltei a encantar-me pelas ondas loiras com que saía do cabeleireiro.

Tive dias em que abri o frigorifico e devorei metade do chouriço à trinca, outros em que decidi voltar às saladas e aos grelhados.

Ouvi baladas que me fizeram chorar ao deitar, no dia seguinte levantei-me ao som de uma rockalhada, um heavy metal ou uns “martelos” dignos de uma rave pastilhada.

Houve alturas em que fotografei uma refeição ou a minha cara para partilhar com o mundo, outras em que achei o mundo social tão ridículo e estupidificante, que quis apagar-me de lá.

Tive momentos em fiz tudo “daquela forma”, achando “vá, Canária, assim é que é, claro que está certo, miúda” e outros em que, quando a Canária deu por ela, apeteceu-lhe pôr tudo em causa.

Nuns dias vivi e quis esticar as horas, noutros limitei-me a sobreviver e a querer que elas passassem rápido para chegar o dia seguinte.

Os 43 tiraram-me algumas coisas que preferia que tivessem ficado. Mas também me deram isto tudo, e em doses generosas. Foram 365 dias a abarrotar de milhares de momentos inesquecíveis e vivi-os o melhor que soube.

Agora são vocês, 44. E tragam sorte, meus queridos, porque superar a loucura boa dos vossos antecessores não vai ser tarefa fácil.

De resto, já sabem: sou muito exigente e as minhas expetativas são altas, como sempre. Agora não me falhem. Porque eu não falharei quando fizer a minha parte.

Palavra de uma Canária cada vez mais louca, mas cada vez mais com um coração maior.



19 de setembro de 2019

Sou uma nuvem

Pronto ok, é verdade aquilo que se diz por aí: não consigo estar sossegada num cantinho, e acho sempre que tenho espaço para mais uma novidade na minha vida.

Na realidade, os últimos 2 anos têm sido muito isto. Arriscar. Sair do "meu normal". Ir. Sem medo. Quero, vou atrás. Nunca o fiz? Sem problema, faço agora.

As coisas (que podem ser projetos ou pessoas) aparecem-me à frente, fico curiosa, conquistam-me e acabo por querer encaixá-las nos meus dias.

Quando isto acontece, pergunto-me: consigo? E, se gosto mesmo, se quero mesmo, respondo: hey, claro que consigo!

Foi assim que a Nuvem Vitória entrou na minha vida.

Conheci o projeto através da minha amiga Fernanda Freitas. Fiquei curiosa, procurei saber mais, deixei-me conquistar pelas informações que recolhi, quis encaixá-lo na minha vida. Na altura não foi possível. Passou quase um ano.

Mantive-me atenta ao terreno que ele ia conquistando. Deixei-o adormecer mas não o deixei morrer. E, finalmente, o projeto chegou-me quase à porta e a um dos locais mais especiais para mim: o Hospital Garcia de Orta, onde passei alguns dos piores momentos da minha vida, mas também dos melhores, com as pessoas que trouxe de lá comigo.

Naquele dia a Nuvem tinha acordado e nem precisei de pensar: peguei no telefone, liguei à Fernanda e, depois de 5 minutos de conversa, inscrevi-me.

Na altura ainda não sabia muito bem como é que ia conseguir encaixar tamanha responsabilidade na minha agenda semanal, já tão desafiante. Mas não quis saber, tinha que conseguir. E “tinha” porquê? Porque eu queria muito.

A formação foi este fim de semana. 100 pessoas. 100 homens e mulheres de exceção. “100 Nuvens”, como dizemos, cheias de vontade de fazer a diferença na vida de crianças que estão internadas em algumas das pediatrias de alguns dos nossos hospitais. Como? Levando com elas histórias para as ajudar a adormecer em paz.

Do outro lado, estariam pernas partidas, apendicites, mas também situações muito graves e tantas vezes até difíceis de aceitar que aconteçam a seres humanos tão pequenos, frágeis e inocentes. Miúdos marcados pela dor, pela frustração de não poderem ter uma vida normal, “como os colegas lá da escola”. Famílias que se viram e reviram para lidar e aceitar uma realidade injusta. Gente, como nós, que tentamos que mergulhem naqueles 5 ou 10 minutos que duram a história e consigam “esquecer” um bocadinho aquela dor. 5 ou 10 minutos de uma espécie de esperança que lhes sussurra ao ouvido aquele “calma, vai correr tudo bem” que tanta diferença pode fazer no meio daquela agonia.

E porque quis muito - e porque soube esperar - a partir de hoje, vou terminar algumas das minhas noites com um “Vitória, vitória, acabou-se a história.”

Minha gente, a partir de hoje sou, orgulhosamente, uma Nuvem Vitória.










26 de julho de 2019

Li-ber-da-de


Não sei se vos consigo passar o que senti hoje. Mas vou tentar.

Há meses que esperava que o batec chegasse. Batec é o nome técnico do aparelho que, acoplado à cadeira, a torna elétrica.

Quando chegou, logo de manhã, nem consegui sentir-me nervosa, tal era a vontade que tinha de o experimentar mais do que já tinha experimentado há uns meses na garagem da minha empresa e nas ruas ali à volta, por alguns minutos.

Assim que o prendi à minha cadeira, que estava mais poderosa do que nunca por ter recebido a tela com o símbolo final da Wonder Woman - enorme, bordado nas costas - apeteceu-me acelerar.

Não me deixaram, naturalmente, mas fi-lo, naturalmente também, quando me apanhei sozinha, numa reta que fica numa rua mais acima, onde os olhos deles (e os da minha mãe, que estava colada na varanda, com o coração na boca) não chegavam.




Senti exatamente o que achei que ia sentir quando me apanhasse com aquilo nas minhas mãos.

E tudo coisas simples mas tão importantes para mim. 

O vento na cara. Até a velocidade, mas ali controlada por mim. A felicidade e a possibilidade de a atingir sozinha, sem precisar das mãos de ninguém, mesmo que elas me cheguem sempre tão cheias de boa vontade.

Senti que os caminhos de terra batida que sempre viveram ali dentro do pinhal que me servia de quintal estavam à minha espera. Senti que o gel de banho e a pasta de dentes que me faltam na casa de banho estavam apenas a uns metros, no supermercado ali da rua. Senti que, da próxima vez que fosse ao cabeleireiro, ia poder fazê-lo sem ter que me coordenar com alguém lá de casa para me ir pôr e ir buscar. Senti que podia ser eu a ir buscar o almoço ao Fernando. E que, se fosse preciso, também podia passar pela papelaria e trazer o tabaco à minha mãe. Senti que podia seguir em frente e chegar onde nunca tinha chegado antes, fazer o que nunca tinha feito sozinha. Sozinha.

Foi uma sensação incrível de poder e autonomia. De liberdade. Li-ber-da-de. Escrita assim, para ser lida devagar. Sa-bo-re-a-da.

Os últimos anos têm sido isto. Ouvir mais o que me vem cá de dentro. Sentir as borboletas na barriga mas não as deixar morrer por ali e dar-lhes mundo para voarem mais longe e a meu favor.

Depois de viver assim, já não quero viver de outra forma. Não quero mais limites do que aqueles que não consigo controlar. Se me apetece, se me faz feliz, se não prejudica ninguém, quero avançar.

Por isso, esta sou eu. Com menos filtro. Mais solta, mais descontraída, mais tranquila, mais segura. Mais aventureira e, acima de tudo, mais corajosa. Mais “se queres muito, segue”, “se é mesmo isto, luta por isso e não deixes escapar”. Mesmo que alguns não entendam. Custa? Por vezes custa. Mete medo? Sim, às vezes sim. Se isso me vai impedir? Dificilmente. Aos 43? Ui, muito dificilmente.