Este é um blog normal. Um blog onde vou escrever o que me vai na alma. Bom ou mau. Sobre mim ou não. Todos os dias ou só às vezes. Quando me apetecer. Afinal, este é só um blog de uma miúda comum. Que tem dias de inspiração e outros sem ela. Mas feito com o coração. E isso é uma promessa.
Os dias duros, daqueles que magoam na alma, roubaram-ma. Não encontro a
minha inspiração.
Os últimos meses têm sido passados na companhia de um coração que salta
demasiado dentro do peito.
O peso na alma tem-se acumulado. Alguma incerteza, uma espécie de aperto.
Esperámos todos os dias pela decisão. Esperámos todos os dias que, quem tinha
que decidir, a esquecesse. Trabalhámos todos os dias para que, quem tinha que
decidir, se interrogasse se seria mesmo essa a melhor decisão. Esperando que resolvesse
que não.
O dia chegou. A decisão não foi a que queríamos.
Os dias que se seguiram têm sido para juntar cacos. E, com eles, tentar
reconstruir uma peça igual àquela que tínhamos antes de quebrar
em demasiados pedaços.
Como aquele galo de Barcelos que tenho em cima do armário verde-alface do
meu quarto, que já tantas vezes caiu ao chão, e que já tantas vezes colei. Caco a caco.
A verdade é que o galo não ficou igual, nunca mais ficará. Mas continua a tornar aquele meu espaço mais colorido. Ao lado das matrioskas e das kokeshis, que
também por lá se mantêm para me proteger e trazer-me sorte. A mim e a quem me
rodeia.
Pois bem, tal como o galo, acontece-nos cairmos ao chão de quando em vez e as
nossas vidas esborracham-se como castelos de cartas. Partimo-nos todinhos.
Mas a cola da
vida, a cola de querer viver, tem o poder mágico de unir os cacos. De nos colar as entranhas que antes achámos
impossível colar e de voltarmos a brilhar. Com algumas cicatrizes, mas cheios de
luz. Quem sabe mais ainda. E estamos prontos para continuar a ocupar aquele lugar nas vidas de quem nos
rodeia. E nos corações.
O meu galo, mesmo todo coladinho e cheio de "cicatrizes", não vai sair dali de cima. Porque ainda tem muitos anos de armário verde-alface pela frente.
Temos
malta do marketing e da comunicação. Temos artistas e engenheiros civis. Temos
executivos de topo, gente ligada ao desporto e ao fitness.
Por
estas bandas há um pouco de tudo. E, com isso, abundância de conversas. Mas, principalmente,
palhaçada.
Crianças,
animais. Boa comida, boa bebida. O modelo “todos-contribuem-e-assim-dá-para-todos".
E uma casa onde cada canto é uma memória.
20 anos de
amizades. Do tempo das saídas à noite. Dos dias longos de praia. Das loucuras
da idade. Das grandes histórias de amor. Dos dias com banda sonora. Músicas que
ainda cantamos quando relembramos as viagens e os momentos. Quase todos
hilariantes…
Histórias
que ficam para sempre. Episódios que repetimos quando estamos
juntos, mas que nos fazem rir como se os estivéssemos a ouvir pela primeira
vez.
Foram
anos que nos marcaram, que nos formaram. Estávamos no início de carreira. Mas
também no auge da juventude.
Hoje
somos todos quarentões. Os que não são, estão perto. Ou
passaram por esse número há pouco tempo.
O mundo
mudou. Todos nós mudámos com ele. E até a amizade que sentimos uns pelos
outros. Porque cresceu. Fortaleceu. Passou a ocupar ainda mais espaço nos nossos
corações.
Caramba,
enquanto escrevo estas linhas, percebo como gosto destas
pessoas...Conhecemo-nos tão bem, mas tão bem, que estarmos juntos é quase como estarmos
em família. Como da ronha no sofá, de pantufas, da manta e do carrapito na
cabeça se tratasse. Sem capas. Ao natural.
Enche-me
o coração ouvir a Rodrigues recordar com prazer que me levava a sair à noite
mesmo quando a minha irmã preferia ficar por casa. “Não te preocupes, pá, ela
vem connosco!”. E ia. Com elas como se fosse com a mana.
Pegar-me
o colo, subir-me pelas escadas, levar-me à casa de banho, tudo fazia parte. Não
havia obstáculos. Nada nos parava. Aliás, nada nos parou.
Como daquela
vez em que nos enfiámos no carro e só paramos em Badajoz para irmos ao El Corte
Inglés. E à praça principal, para comer calamares. E à casa de banho daquela
garagem onde fiquei entalada na sanita quando me sentaram. Entre gargalhadas,
foi o cabo dos trabalhos tirar-me dali!
Como daquela
vez em que bebemos um copo a mais, subimos as escadas do meu prédio às
cavalitas mas correu mal e nos esborrachamos no meio do chão a rir. Com a minha
mãe lá em cima, de porta aberta, à nossa espera. Ops.
A
verdade é que nos divertimos à grande. Aproveitámos como merecíamos. E hoje,
tantos anos depois e com vidas tão diferentes, continuamos por cá.
Não
somos de beijos e de abraços porque sim. Por isso, quando somos, sabe-nos
melhor. Mas somos de palavras de conforto. E de abanões, se for preciso. De
wake up calls.
Quando alguém
me pergunta como foi possível ultrapassar tudo e manter a auto-estima, respondo
com estas histórias. É a esta gente que devo grande parte daquilo que hoje sou como
ser humano.
Olhando
para trás, e analisando cada momento, mesmo os piores, percebo como a vida tem
sido generosa comigo e como tem atravessado no meu caminho as pessoas
certas. Pessoas que entraram na minha vida por acaso, mas que não é por acaso
que por lá se mantêm.
Alguns de nós meteram-se num avião e
voltaram ao país que lhes prometeu um futuro melhor. Outros meteram-se no mesmo
avião e foram pela primeira vez. Depois, há os que não foram nem vão, mas que o
regresso ao trabalho nos retira da vista mais vezes do que as que gostaríamos.
Passou Setembro, passou Outubro. Com
Novembro a romper, e as saudades a apertar, os que podem regressam, mesmo que por
pouco tempo, de fugida. E reúnem-se à volta da mesa. Com o sol, o mar e a areia
como pano de fundo. No bar de quem já passou connosco o tempo quente, no bar de quem já se
partilhou connosco, e a quem desejamos que tudo corra bem.
Comentam-se as novidades de quem chega
de lá. Misturam-se com as de quem vem de cá.
Trocam-se presentes atrasados. Os que
não foram trocados por culpa da ausência forçada.
Notam-se as mudanças de cor de cabelo,
a roupa nova. Sem maldade. Sem inveja. “Estás tão gira assim!”. Do coração.
Reforça-se aquela relação que começou
no Verão. Aos olhos de todos “que bom, eles merecem”. No fundo da mesa comenta-se
baixinho “vai ser desta”. Quem disse costuma acertar. Fui eu.
Chega a sangria. Vem o petisco. São as
conversas que se cruzam. Que se atropelam. As risadas de um lado, os sorrisos
do outro. Numa curva, esbarram um com o outro e é a gargalhada geral. As mesas do
lado olham, mas nós nem queremos saber. É a loucura sã.
Os miúdos correm para perto do mar.
Para acelerar na areia. Dar saltos. Mas os graúdos vão atrás. Não para
controlar. Mas porque aqui todos brincam uns com os outros.
O sol muda de lugar e de cor. Deixa de
ter força para aquecer o corpo mas ganha-a para aquecer a alma, de tão
bonito.
O dia chega
ao fim. Despede-se. Despedimo-nos todos. “Quando voltas para lá?”, pergunta-se pedindo
que o tempo páre. “Vou daqui a uns dias.” “E quando regressas?”. A resposta é
pronta ”no Natal e, muito provavelmente em Janeiro, para o aniversário da tua
mana.” O importante é tentar não estar longe muito tempo. Voltar sempre que se
pode. O avião dá uma ajuda e torna o "tão longe" em "tão mais perto".
Os que
ficam e apenas se despedem do momento, não do País, prometem que nem a chuva,
nem o frio os vai separar. Nem a chuva, nem o frio nos vai separar.
Porque
quando o que existe é amizade, da boa, o mundo reduz-se ao tamanho de uma azeitona.
Sempre contei esta parte da minha história da
mesma maneira.
Uma vez, duas vezes,
três. Muitas. Acabei por estruturá-la daquela forma na minha cabeça e habituei-me a contá-la assim, com aquela sequência. Com os mesmos pormenores, as
mesmas graças. Mas há histórias para além da história, que nunca passei para o
papel.
Passaram-se 23 anos mas lembro-me
daquele dia como se fosse hoje.
Estávamos em Março. Um Março frio.
Os dias passavam-se sempre com a
mesma rotina. Lá em casa, depois de todos saírem, preparava-me para mais um dia
de aulas. Andava no 10º ano. Turma da tarde. Era uma miúda feliz. Aluna
razoável. Bons amigos. Popular. Com um namorado há 2 meses. O Rui. Um miúdo
impecável. Aturou-me 7 anos.
Naquele dia, a Cláudia, a minha
melhor amiga, tinha ficado de passar lá por casa para irmos juntas para a
escola. Mas não íamos directas. Antes passávamos pelo Don Pomodoro, onde bebíamos
um café e fumávamos um cigarro. Como os crescidos. Comprávamos um maço a meias
que ela escondia religiosamente na mala.
A Agostinha trabalhava lá em casa há
alguns anos e nunca falhava. Naquele dia ia falhar mas, nesta altura, ainda não
sabíamos.
Lembro-me de pegar no Coca-cola, a nossa mistura de caniche com bichon, mais parecido com um desperdício do que
com um cão, e de o levar comigo para a casa de banho, para evitar que se
engalfinhasse com o Pantufa, um velho pequinois albino de nariz cor-de-rosa,
que tudo o que queria era o descanso do sofá da sala.
Lembro-me de ter sentido frio e de
ligar o aquecedor de ambiente. De fechar a porta e a janela.
Lembro-me do banho mais demorado. De lavar cuidadosamente o cabelo, que ia sempre molhado para a escola.
Lembro-me de me estar a saber bem. E de cantar.
É nesta altura que oiço o Coca a
ladrar, insistentemente. Queria ir lá para fora, quem sabe presentindo algo que eu
ainda não tinha sentido. Irritada saí do banho, abri-lhe a porta, deixei-o ir. Voltei lá para dentro.
Naquela época, ter os esquentadores
nas casas de banho era um hábito em prédios antigos. Alvalade era um bairro
desses. Tinha mais de 50 anos. Prédios baixinhos, sem elevador, em que cada
inquilino tinha direito a um espaço nas traseiras. O nosso quintal. O bairro de
Alvalade era o bairro dos nossos avós.
Já perto do fim daquele banho,
senti-me estranha. Sem perceber o que se passava,
fechei a água. Sentei-me. Esperei. Apaguei. Entrei em coma.
Passam-se duas horas e a Cláudia bate à
porta. Já não abri. Minutos depois a minha irmã chega a casa, estranhando não se
ter cruzado comigo no caminho. A essa hora, o telefone também tocava em Setúbal, onde
a minha mãe escolhia as peças de uma colecção de roupa para a loja que tinha na
Baixa.
Nunca o percurso Setúbal-Lisboa foi
tão curto. Dali até ao Santa Maria, o carro voou.
Quando tenta entrar na UCI, alguém a
pára para lhe vestir uma bata. Em vão. A pressa de chegar perto era maior.
Eu já estava acordada. A cabeça
estalava de dor. Pedi bolachas Maria e bebi um chá. Fui vista por dezenas de
médicos. A quem disse que estava bem...mas que não sentia as pernas.
A história que se segue é sobejamente
conhecida. Exames, lesão medular, paraplegia. Médicos, Alcoitão, Londres.
Fisioterapia, acupunctura, homeopatia, massagens. Mas, ao mesmo tempo, amigos,
praia, namorado, escola. Vida normal de uma miúda de 15 anos.
Foi o terminar de um ciclo e o início
de outro. Como se alguém tivesse pegado nas cartas da minha vida e as baralhasse
para começar um novo jogo. Mais difícil, com outras regras.
Desde aquele dia aprendi a viver com
o que a vida me deu. Cresci. Passei a querer sentir todos os minutos. A ver
com o coração aquilo que tantas vezes só via com os olhos. A chuva. Os pássaros. O mundo.
E realizei a sorte que tive. Uma
reviravolta indesejada, é certo, mas que me fez perceber que, se fiquei por cá,
todos os dias tenho que conseguir fazer um bocadinho melhor. Ser um bocadinho melhor. E que, quando há um dia em que isso
não acontece – porque estou mais em baixo, porque o saco está cheio, porque
tenho a certeza que o mundo se uniu para me lixar -, devo aproveitar o dia seguinte e
fazer a dobrar, recuperando o tempo que perdi.
Tudo sem nunca perder o
foco: prefiro passar pelo tempo, do que deixar o tempo passar por mim.