Vou à varanda e
deixo lá dentro a televisão ligada para ouvir os discursos sobre abril. Há
qualquer coisa naquele som de fundo, ouvido ao longe, que me tranquiliza. Como
o que vem do rádio.
É assim desde
miúda, quando eu e a mana passávamos a tarde de domingo em casa, no nosso
quarto, cada uma sentada na sua escrivaninha, a fazer os trabalhos de casa, enquanto
a mãe preparava o bolo de laranja para o lanche. Ou quando ouvíamos o relato de
um qualquer jogo de futebol com o pai, enquanto encaixávamos as centenas de
peças da Lego que, para desespero da mãe, espalhávamos no centro da sala.
Em casa da avó
Olinda era a Renascença. À hora da sesta, deitava-nos
em cima da cama dela, tapava-nos com uma manta, sentava-se no sofá ao lado e
acompanhava o terço pelo rádio. Sempre lhe gabei a paciência. Ensinou-nos a rezar desde muito cedo mas, a quantidade de “Avés
Marias”, “Pais nossos” e “Glórias” que ela rezava ali, eram demasiado para nós.
E quando começava, com o “Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos, Deus Nosso
Senhor, dos nossos inimigos. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,
Amém”, dávamos por nós a tentar controlar o riso debaixo da manta, porque nos
lembrávamos da versão que o nosso pai, ateu convicto, nos ensinara, só para
a irritar. “Pelo sinal do Santo Pardal, comi toucinho e não me fez mal, se mais
me dessem, mais comia, adeus Senhor Padre, até outro dia.” A desgraçada da D.
Olinda subia as paredes, mas não era fácil controlar duas pestes com 8 ou 9
anos.
Estou de volta à varanda e continuo a
ouvir, por entre os carros que passam, as palavras que vêm lá de dentro, e que
marcam este que é o dia da Liberdade.
É cedo, já tenho a casa arrumada e deixo-me ficar, sem pressa
para nada. A tranquilidade aqui é grande.
Enternece-me a vizinha do
prédio ao lado que, na varanda, sentada perto da mãe já velhota, lhe arranja o cabelo.
Sempre a achei parecida com a minha avó Olinda. Tal como ela, também é baixa,
gorducha, cabelo todo branco, desloca-se devagarinho e apoiada por uma bengala.
Imagino que tenha, tal como a avó tinha, as mãos enrugadas, com sinais, arranjadas e, nos dedos, a aliança dela e do marido, juntas.
Vejo-a sempre de
bata. A avó também as usava, feitas por si, sempre na velha Singer, que
estacionou no fundo da cozinha, junto à janela que dava para as traseiras. Um
espaço que recebia toda a luz necessária para ela, que já não via bem, marcar
os tecidos que comprava a uma amiga no mercado de Alvalade e fazer as inseparáveis
batas.
Cresci com a
televisão ligada. Ou o rádio. É para recordações destas que viajo quando ficam ligados, a fazerem de som de fundo.
E a minha varanda, essa, continua mágica.
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