19 de outubro de 2013

Auto-estima-te!

Há uns dias, falava com um colega - daqueles bem posicionados - que me dizia “sim, marca esses almoços porque eles têm que querer conhecer-me”. Bem sei que dito assim, a seco, soa malzote – na altura eu própria ia saltando da cadeira - mas, passado o primeiro impacto e contextualizando na conversa, nem tanto. As tais pessoas que eu queria convidar para almoçar com ele, se fossem boas profissionais, deviam sim, querer conhecê-lo. E eu até sei que querem.
 
Claro que não lho disse desta forma. Limitei-me a sorrir e a responder-lhe “sim, talvez, mas onde enfiaste aquele meu colega humilde, característica que sempre te caracterizou?”.
 
A nossa conversa fluiu a partir daí. Falámos do nosso passado e da forma como os nossos pais nos tinham educado. Acima de tudo, amado. Sentíamo-nos ambos bem em termos de auto-estima. Tínhamos ambos boas bases, tínhamos ambos sido suficientemente elogiados enquanto crianças, adolescentes e, por fim, também em adultos.
 
Lembro-me de ser miúda e de ouvir a minha mãe a dizer-me como estava gira, como era esperta, como se orgulhava de mim. Mas atenção que também me lembro dela a partir-me a cabeça, não fosse dar-se o caso de eu encetar uma longa “viagem na maionese”, na “minha própria maionese”, e esquecer-me de deixar os pezinhos bem assentes no chão.
 
Mas este é um tema tramado. Mais tramado do que aquilo que pensamos. Porque nem sempre controlamos a coisa.
 
E tanto que até eu, rapariga habituada a gostar e a acreditar em mim, tão fortemente educada para isso, já dei por mim a pensar “será que sou mesmo boa no que faço? Será que estou à altura deste desafio?”. E, muitas vezes, a primeira resposta é “se calhar não.”
 
Devo confessar que, quando isso acontece, fico com o estômago tão apertadinho que nem uma azeitona lá cabe dentro. Passo dias a pensar no assunto, com o coração a perder tamanho. A bater mais rápido. E a ralhar com o mundo.
 
 
Depois falo com aquelas pessoas que me puxam para cima – os amigos -, que já tanto passaram comigo/por mim, que tão bem me conhecem. Aqueles a quem não precisamos de rir quando, de facto, preferimos chorar. Aqueles a quem podemos dizer tudo o que nos vem à cabeça, porque sabemos que do outro lado nos ouvem sem julgamentos. Os mesmos que não ousam interromper o nosso discurso “Florbela Espanca”. Que nos deixam falar e falar e falar e falar…e só respondem no fim com um simples mas firme "enlouqueceste? Era o que faltava não conseguires.”
 
Dá-me um clique. Dá-me um clique e volto a lembrar-me do que me fez chegar onde cheguei, ultrapassando o que ultrapassei.
 
Volto a lembrar-me que, mesmo que o prato da balança de quem não acredita em mim, tente desequilibrar o meu mundo, não tem a força do prato oposto, porque este abarrota de gente que me considera.
 
Dá-se o regresso à normalidade. O meu estômago volta a abrir as portas a um bom repasto. O coração volta a preencher o espaço que o meu corpo lhe destinou desde sempre, aconchega-se por ali, e passa a bater como devia. Já deixar de resmungar é sempre mais difícil mas, vá, passo a resmungar menos.
 
Com tudo a voltar ao lugar, volta também a vontade de definir um objectivo e um caminho para lá chegar. Com tudo a voltar lugar, volta também a determinação de mostrar que controlamos a situação como ninguém. E de colocarmos aqueles que fizeram questão de nos pôr em causa no seu lugar. Fazê-los ver que, enquanto agirem assim, esse lugar há-de ser sempre um quarto escuro, abafado. Acima de tudo, um lugar isolado e onde não cabe qualquer bocadinho de felicidade.
 
Mas é preciso respirar fundo e tentar ser melhor que eles. Mesmo a custo, enfiar um bilhete por baixo daquela porta a explicar que, se um dia quiserem mudar, haverá sempre alguém por perto para dar uma ajuda. Quanto mais não seja, uma ajuda a melhorar, eles sim, a sua auto-estima.

Ou como dizia o outro, que por acaso era um génio e se chamava Shakespeare, "é um péssimo cozinheiro aquele que não pode lamber os próprios dedos."

 

11 de outubro de 2013

Uma amizade "especial"

Sempre achámos que o facto da Carlota crescer, e conviver, com uma tia de cadeira de rodas tão de perto, ia acabar por dar frutos. E deu.

Cedo percebemos que ela topava que havia gente à sua volta que precisava de mais atenção. Por isso, desde cedo que se sente bem do lado “dos mais fracos”, defendendo-os. Com ela ninguém é deixado para trás.

 
Esta forma de estar na vida tornou-se mais clara quando tinha pouco mais de três anos e um colega do infantário se recusou a fazer uma brincadeira por “ser diferente”. Nessa altura, a Carlota levantou-se e disse “ai fazes sim! Eu tenho lá em casa uma tia de cadeira de rodas que faz tudo! Até se pinta!”. Entre dar banho, fazer o jantar, tratar dela, o importante mesmo era pintar-me…! Que raio de escolha! E que escolha tão amorosa...

A Carlota foi crescendo e assistimos a outros espisódios do mesmo género. Quase sempre dentro de casa, onde sempre me fez sentir a melhor tia do mundo, a mais capaz, feita à sua medida. Sentimento que transformava regularmente em palavras quando me brindava com um “se não estivesses de cadeira eu não ia gostar tanto de ti...” ou “ganda sorte que eu tenho por ter uma tia de cadeira de rodas!”.

Acabou de passar para o 5º ano. Uma mudança radical na vida dela. Escola maior, mais disciplinas, mais professores, mais correria, mais responsabilidade. Cartão para entrar na escola, cartão para almoçar, telemóvel. Novas amizades. Convivência com malta de outros anos. Sentimo-la a crescer todos os dias. É uma fase um bocadinho assustadora mas, ao mesmo tempo, maravilhosa. A nossa miúda está a ficar crescida.
 
Este ano, a turma dela recebeu de novo um menino especial. Contou-nos, entusiasmada, logo no primeiro dia. Chamava-se R e, por coincidência, era filho de uma amiga nossa, o que só viemos a saber mais tarde.


Nos dias que se seguiram, continuou a falar-nos daquele colega. Comentou que alguns miúdos o gozavam e o deixavam para trás, o que a deixava furiosa.

Sentiu que ele precisava de alguma protecção e passou a dar-lhe mais atenção. Escolheu-o para a sua equipa de futebol. Brincou com ele no intervalo. Mostrou ser sempre mais paciente. “Porque ele não percebe as coisas como nós...e precisa de ajuda”, explicava. O resultado acabou por se traduzir numa aproximação do miúdo à Carlota. Porque sentiu que ela o ia sempre amparar.

Ontem voltou a acontecer. Depois da professora pedir aos alunos para se juntarem em grupos, no meio da confusão, o R acaba por ficar de fora. A professora apercebe-se e pergunta “E o R, fica sozinho?”. A Carlota chega-se mais uma vez à frente e com a voz firme diz “não, o R está no meu grupo”. E olha para as colegas que acenam a cabeça, aceitando. Aceitando-o.

O melhor de tudo é que ela conta isto com a naturalidade de quem não está a fazer mais do que aquilo que qualquer colega deveria fazer. Porque jamais lhe passaria pela cabeça deixar sozinho quem está em desvantagem. Como, vendo bem, nunca deixou a tia.

Vem aí uma nova geração. E, com ela, o dia em que todos serão iguais. Mesmo com todas as suas diferenças.
 
Por isso, olhar para esta miúda, é acreditar que, um dia, o mundo pode voltar ao lugar.

8 de outubro de 2013

Dar o melhor de nós

“Queremos falar com mulheres determinadas, sob vários pontos de vista. No teu caso, que nos contes como é que se dá a volta por cima. Aceitas, ou já deste o suficiente para este peditório?”.
 
Foi mais ou menos esta a mensagem que a Rita, colega dos tempos de faculdade e agora responsável pela redacção de uma das melhores revistas femininas portuguesas, me deixou no privado do Facebook.
 
Quando vi aquilo respirei fundo e pensei “hum…será mais do mesmo?". Mas a abordagem pareceu-me diferente. Enxuta. Desempoeirada. Vinha, aliás, de alguém que tinha acompanhado de perto os primeiros anos do acidente que me tinha deixado de cadeira de rodas. Sabia, por isso, como tinha sido a minha reacção.
 
Liguei-lhe. Foi bom voltar a ouvir a voz dela. Fez-me lembrar os tempos de faculdade. A vida fez-nos seguir caminhos diferentes mas o Facebook voltou a juntar-nos há uns anos. E, graças a ele, continuávamos, de alguma forma, perto uma da outra.
 
Expliquei que teria muito gosto em dar a entrevista mas que tinha dois pedidos: para não nos deixarmos enrolar pelo discurso trágico-lamechas e para me ajudar a promover o meu blog. O que ia, aliás, ao encontro do tema que queriam falar comigo porque este blog também fala sobre determinação. Minha e de outros, mas determinação
 
Para a Rita, nem passou por aceitar. Porque, também para ela, era claro que a lamechice não tinha espaço no texto e que o blog se encaixava na perfeição na nossa conversa.
 
Destacou uma jornalista que eu conhecia apenas pelo nome. A Sónia. Tenho tido sorte com as Sónias. Sempre que me entrevistam, divirto-me a valer. E acho que elas também. A gaita é que perdemos a noção do tempo e o trabalho atropela-se todo. Mas vale sempre tanto a pena…
 
Esta Sónia começou logo bem: “posso tratar-te por tu?”. Respondi que sim “bolas, temos as duas quase a mesma idade…!”. É sempre bom falar com alguém da nossa geração.
 
Não nos perdemos a falar dos factos. São públicos, ela já os conhecia. Falámos da vida. Do que é viver. De como se ultrapassam os obstáculos. De como ultrapassarmos obstáculos pode ter impacto na vida de tanta gente. E de qual o meu papel no meio deste filme.
 
 
Foi mais de uma hora nisto. Uma hora em que ora interrompia eu, ora interrompia a Sónia com um “claro, tens razão, tem mesmo que ser assim, concordo em pleno, pá!”. Sintonia e cumplicidade. À primeira vista.



Expliquei que sentia que era fundamental, mais do que focar em mim, focar nas minhas experiências e em como elas me tinham mudado. E, mais do que me terem mudado a mim, como poderiam elas mudar/influenciar os outros. Pela positiva.

Falámos dos “bons” e dos “maus” que nos rodeiam. Falámos dos que querem e dos que não querem ser ajudados. Falámos de como eu posso ajudar. De como eu quero ajudar. Mas concordámos que todos valem a pena. Vá, quase todos!

Falámos da importância do efeito “pedrada no charco”. De fazer chegar a palavra longe. De conseguir mudar vidas com gestos simples como um sorriso na cara. Falámos de partilha. De que quando cada um oferece o melhor de si mesmo, o mundo avança um bocadinho. Sempre.

Falámos de viver bem. Que a nossa essência era a mesma essência dos outros. Mesmo daqueles que chamámos de “maus”. Concordámos que, no fundo, tudo o que eles precisavam era de um empurrãozinho para melhorarem e mudarem para a nossa equipa. Dos que querem bem aos outros.

Mas também falámos das dificuldades que esse caminho nos trazia, dos dissabores, do trabalhão! Da nossa – por vezes grande -  falta de vontade de ajudar quem não estava para aí virado. E do esforço que devíamos fazer para a ultrapassar.

Foi uma conversa gira. Em que eu senti que mudei um bocadinho da vida da Sónia, e que a Sónia pode estar segura que mudou um bocadinho da minha. Ganhámos, por isso, as duas.

Quando a nossa conversa chegar a mais pessoas, quando for publicada, vai com certeza mudar um bocadinho de quem a ler. Porque valeu a pena. E, se cada pessoa que a ler a passar a outra, terá valido ainda mais.
 
Vá, e não precisam de morrer de curiosidade para saber o resto! Basta comprarem a próxima Máxima! :-)

7 de outubro de 2013

Crianças filhas...da guerra

Ontem deitei-me na cama com uma constipação do caraças, a sentir-me uma desgraçada.

Peguei no comando da televisão e, no meio de um zapping, páro na 2.

Estava a passar um documentário sobre um centro de skate no Afeganistão. “Um centro de skate no Afeganistão?”, pensei. Sim, tinha visto bem, no Afeganistão. Em Cabul. Zona de combate. Zona que cheira a morte. No meio de tudo aquilo, um oásis. Chama-se Skateistan.

As imagens que passavam eram assustadoras. Como, aliás, são todas as imagens de cenários de guerra.

As cores, essas, sempre as mesmas. Cinza, cru, castanho. Os tons terra que nos traz a guerra. E padrão camuflado, com presença de um soldado em cada esquina.

Pó. Muito pó. Prédios destruídos? Todos. Ali não escapou nenhum. E, com eles, perderam-se milhares de homens, mulheres e crianças.

Por entre os escombros, um centro de skate que tem como missão retirar os miúdos das ruas. E que, pelo meio, lhes ensina várias disciplinas e promove workshops sobre arte. Um centro que os prende pelo desporto e que os ensina a viver. E, acima de tudo, a sobreviver no meio da miséria onde nasceram.

Em 6 anos, o Skateistan já “recrutou” mais de 400 crianças. 400 crianças que talvez se tivessem perdido se ali não estivessem. 400 crianças que são parte do futuro do Afeganistão.

Sobretudo rapazes, mas também raparigas. Num país que não liberta a mulher, muito menos dá direito às crianças. Principalmente a elas, as miúdas. “Quando ando de skate na rua, ficam todos a olhar para mim. Sei que me condenam. Mas eu não quero saber. Não vou deixar de andar de skate e frequentar o centro por causa disso.” Palavras de uma rapariga de 10 anos que, contra a sua própria família, e de skate debaixo do braço, se divertia nas ruas destruídas daquela cidade atirada para um canto pelas armas.

Estes miúdos vivem nas ruas e, pior, das ruas. A vender pastilhas elásticas. Sobrevivem a lavar carros com água da chuva e panos velhos. Imundas, camisolas rotas, descalças e de ranho no nariz. Passam fome.

É assim em Cabul e é assim no Iraque. É assim na Síria e em tantos países de África. É assim em grande parte do mundo, mesmo em pleno século XXI. Porque também não podemos ignorar o que acontece às crianças na Índia e na China, por exemplo.

Ontem deitei-me na cama com uma constipação das antigas e a sentir-me a pessoa mais desgraçada do mundo. Mas depois disto engoli tudo.
 
Porque, melhor ou pior, no dia seguinte ia acordar. Já estas crianças, se tiverem dia seguinte, será uma sorte.