22 de dezembro de 2013

A força das pequenas coisas

O dia rompeu gelado. Mas com um sol enorme e quente. Que apetece.
 
Pego num dos livros que insisto em manter em cima da mesa-de-cabeceira durante meses, e vou para a varanda. Lá dentro deixo a música a tocar, para que a consiga ouvir cá fora.
 
Já vai longe a decisão de fugir da cidade. Quase 12 anos, se a memória não me falha. Queríamos uma vida mais saudável. Longe da confusão. Mais perto do cheiro do mar e do pinhal. E uma casa onde eu pudesse ser 100% autónoma, sem armadilhas.
 
Foi assim que encontrei a minha varanda. Estar cá em cima é como estar sentada numa plateia a assistir à vida a passar. Vidas a passar.
 
A minha rua está tranquila. Como sempre, temos a companhia dos pardais e dos corvos. Ao longe, mas como se fosse perto, o barulho do mar, em fúria, que por estes dias tantas histórias trágicas tem trazido com ele.
 
Pelo meio, ouvem-se os talheres da hora de almoço nas cozinhas. As televisões. Os putos que jogam futebol no campo que fica nas traseiras. Os donos dos cães que os deixam soltos pelo pinhal. O Mike é um deles. Um rafeiro castanho, com barbas brancas e olhos cor de amêndoa. Nunca acata a ordem do dono à primeira. É preciso chamar, chamar, chamar, até ele ouvir. Quer dizer, ouvir ele ouve, porque quando vem, parece vir a rir.
 
Entretanto o gato gordo e coxo, de quem já vos falei em tempos, foi adoptado. Mas por alguém que o conhece como ninguém. A enfermeira do prédio ao lado sabe que é um gato vadio, livre e, por isso, limitou-se a pôr-lhe uma coleira, a dar-lhe dormida, mas deixa-o solto durante o dia. Para além dela, todos lhe dão de comer. Daí estar gordo.
 
Mas, nos últimos dias, foi outro o bicho que decidiu vir viver para a minha rua. Em particular, para a minha varanda. Uma aranha, pequena mas gorda, que todos os dias se dedica a construir um pouco mais da sua teia. No início, quando ainda não me tinha apercebido desta presença, limitava-me a arrancar aquilo. Mas, quando ontem me preparava para o voltar a fazer, ela saiu de um buraquinho da parede - desculpem, da sua casa - e ficou parada na teia. Sem medo. Como se olhasse para mim e dissesse “bolas, pá, outra vez não...não faças isso… deu-me tanto trabalho!”. E não fiz. Agora já conto com ela. Deixo-a estar. Porque não haveria de deixar?
 
De vez em quando, muito de vez em quando, pára um carro. Lá de dentro sai o avô e a avó, que chegam para passar a semana com os filhos e com os netos. Afinal, é Natal. Com eles, vêm as couves, as cenouras e as batatas “lá da terra”, tudo em sacos do Pingo Doce.
 
Na paragem, uma senhora de cor espera pelo autocarro que a levará a casa depois de terminar o turno da noite no lar de idosos. Julgando-se sozinha na rua, canta uma música da sua terra. Naquele momento não está cá, está lá. Vê-se nos gestos que faz com o corpo, nos passos que se cruzam nos seus pés.
 
A ela junta-se uma adolescente de auscultadores gigantes nos ouvidos, gorro na cabeça. Ao mesmo tempo que troca sms com as amigas, abana-se ao som da música que está no top e arranca um sorriso à senhora. Começam a conversar. Nisto aproxima-se uma velhota de bengala, que todos os dias apanha o transporte para ir beber um chá depois do almoço, com as amigas de sempre.
 
Chega o autocarro, à hora, todas seguem os seus caminhos. A rua fica de novo vazia. Mas apenas por breves minutos.
 
Mesmo por baixo do meu prédio passa o amolador. Dizem que traz a chuva, o mau tempo, mas o céu continua azul e nem sinal de nuvens. Veremos. Os putos, os mesmos que antes jogavam à bola, passam agora por ele e imitam o som da gaita, no meio de gargalhadas. O homem, já velho, continua mas ri-se. Não se importa. Já teve a idade deles.
 
Cada pessoa que passa lá em baixo tem uma história. Uma vida. Aqui de cima, da minha varanda, vê-se parte dela. Atrevo-me a dizer, a parte que interessa.
 
Porque, como em tudo, são os detalhes que fazem a diferença.
 
 

19 de dezembro de 2013

Take a smile :-)

Ser alguém para quem se olha com admiração, e que alguns até seguem como exemplo, não é propriamente fácil. Mais: isto de inspirar pessoas é uma responsabilidade, no mínimo, do caraças.
 
"Sempre bem-disposta". Há muitos anos era essa a minha única “imagem de marca”.
 
Recebia inúmeros convites para contar a minha história, nomeadamente em televisão. Convites que quase sempre aceitei. Não me assustava nem a ribalta, nem a exposição. Sentia-me tão à vontade em estúdio como no sofá lá de casa. Divertia-me até. A verdade é que gostava de ser o centro das atenções.
 
Mas a vida avançou, os anos foram-se encostando carinhosamente uns aos outros e, felizmente, o bom senso aninhou-se lá pelo meio.
 
Com o tempo, com a (matur) idade, aprendi a sentir-me mais confortável por detrás das câmaras. Porventura, até um defeito de profissão. Afinal, como assessora de imprensa, o meu papel não é brilhar. É, sim, fazer os outros brilharem. Garantir que não são surpreendidos com questões que não esperam. Assegurar que passam a mensagem certa. Alinhada e sem espinhas. Clara e sem curvas. Para que quem nos ouve, nos entenda.
 
As luzes do palco deixaram de ser importantes. Palavras como resguardo e low profile ganharam peso. A vontade de ser só mais uma. Na vida pessoal, mesmo naquela que temos no mundo profissional. Acima de tudo nessa.
 
A boa disposição mantém-se, claro, mas agora sem ter que estar sempre em primeiro lugar. Não pensem com isto que fui uma fingidora. Entendam que a vida me ensinou a ser mais autêntica. A esforçar-me sempre por estar bem, mas a aceitar que também posso estar menos bem. E que, com isso, não vem nenhum mal ao mundo.
 
 

 
Com o passar do tempo, passaram a existir os dias em que se pudesse desaparecia – mas levava comigo as minhas – porque sinto que mais nada me prende aqui. Aqueles em que olho para o lado e não me identifico com nada nem com ninguém. Aqueles em que não há quem me veja um dente. A não ser quando levanto o lábio superior e rosno. Aqueles em que me torno insuportavelmente irritante. Ou apenas aqueles em que não me sinto feliz. Porque não temos que estar sempre felizes, certo?
 
São estes os dias que causam estranheza nos que se habituaram a ver-me always on. Porque prefiro estar off.
 
Depois há os outros. Em que acordo com uma vontade, uma força e uma energia capazes de dominar o Universo. Dias em que bem pode cair uma carga de água que me molha até aos ossos, dias em que até os passarinhos me elegem para fazer cocó em cima. Mas que me marimbo e sigo.
 
A vida deve ser assim. Contrabalançada. E, tal como a vida, também nós. Equilibrados. Termos as duas partes cá dentro. Darmos palco às duas, sempre que for necessário. Não tapar uma com a outra. Porque, se formos de outra forma, somos uma farsa que engana tudo e todos.
 
No meio disto, apenas um truque: reagir aos dias maus. Ficar triste por ver a porta a fechar, mas não descansar enquanto não encontrar o raio da janela que dizem abrir-se nestas alturas. Forçar os músculos a mexer e mostrar os dentes, sem ser para rosnar. Rir. Porque o riso é contagioso. Quando rimos, influenciamos quem está à nossa volta com o que de melhor a vida tem para nos dar: alegria.
 
(…) Alegria brutal e primitiva de estar viva, feliz ou infeliz, mas bem presa à raiz (…), como disse um dia alguém.

8 de dezembro de 2013

Fazes-me falta...

Enrolei-me numa manta quente e fui à varanda.
 
No meio de gente a entrar e a sair de casa, de crianças a andarem de bicicleta, e de velhotas a fazerem caminhadas enquanto cascam naquela que falhou a caminhada, vi um miúdo a passear um cachorro. O bicho não tinha mais de 2, 3 meses. Não corria, saltava. Porque correr, para ele, ainda é pouco. Quer ir mais rápido e mais alto, por isso vai aos saltos. Afinal, a vida começou-lhe agora. Se calhar, a vida começou-lhes agora. Um com o outro. Um para o outro, espero.
 
É por isso que hoje quero navegar pelas águas da palavra “falta”. Águas que, por muito que eu lute contra, às vezes se agitam no meu coração. Porque a falta que me fazes é grande. Porque não me esqueço.
 
Quando acordo e não sinto o teu cheiro. Quando ando pela casa e não te vejo. Quando o dia foi mau, preciso do teu carinho, e não o encontro.
 
Lembro-me de quando te fomos buscar como se fosse hoje. Uma casa senhorial, numa vila de fadas. Um dia de sol.
 
Desceste a rampa do jardim aos trambolhões. Eras uma bola de algodão branco a rebolar. Trapalhão. Tu e os teus irmãos e irmãs. Trazias a mãe e a tia atrás, imponentes. O teu pai estava a brilhar em mais um qualquer concurso internacional.
 
Escolhemos-te a ti. Baptizámos-te Gaspar. E a uma das tuas irmãs, Matilde. Mais branca, olhos negros, e nariz escuro, que foi ficando claro com o passar dos anos. Dona do mundo. E do teu em particular...
 
Perdemo-la cedo. Fez-te falta, bem sentimos que te fez. Fez a todos.
 
Durante tanto tempo procuraste por ela. Durante tanto tempo tivemos que te ensinar a viver sem ela. Mas aprendeste. Tu e nós.
 
O que aconteceu ligou-nos. Ainda mais. E eu a ti, que passava tanto tempo contigo. E eu a ti…
 
Aos teus olhos. De chinês. Meigos, carinhosos, cheios de amor para dar. E gratos. Pela forma como sempre te tratámos.
 
Perder-te foi das provas mais duras que a vida já me fez passar. Morreres-me foi das realidades mais tristes que a vida me obrigou a encarar.
 
Eras parte da família, sempre serás. Sabes disso, não sabes?
 
Passaram-se 2 anos. Pessoalmente, nunca mais me recompus. Segui com a vida em frente, mas nunca mais preenchi o vazio que deixaste.
 
Perco-me no trabalho, nos compromissos, estou bem. Claro que estou, porque não sou apanhadinha.
 
Os dias passam, já não penso em ti todos os dias. Mas, quando páro – e, Deus, se páro com frequência! -, fazes-me falta. A falta que me fazes.
 
Ainda não me reconciliei com a ideia de abrir a porta a um amigo novo. Nem sei se isso alguma vez acontecerá.
 
Tenho dias em que acredito que é o caminho, mas outros em que só pôr a hipótese, me deita por terra.
 
Quando penso em ti, esforço-me profundamente por me concentrar apenas nos melhores momentos. Porque foste muito feliz. E nós muito felizes contigo. No fim, é isso que conta.
 
As saudades ficam. É certo vão doendo cada vez menos fundo. Mas eternizam-se porque, como dizem os poetas – e quem melhor que os poetas para transmitir o que nos vai naquele cantinho da alma -, as saudades são a memória do coração.
 
Fazes-me lembrar a história daquelas duas pulguinhas que passaram a vida inteira a juntar dinheiro para conseguirem comprar um cão só pra elas...Pois é, tenho a certeza de que esse cão eras tu.
 
Enfim…fazes-me falta. Não quero que te esqueças.
 
Era isto.


 


24 de novembro de 2013

O meu galo de Barcelos

Os dias duros, daqueles que magoam na alma, roubaram-ma. Não encontro a minha inspiração.
 
Os últimos meses têm sido passados na companhia de um coração que salta demasiado dentro do peito.
 
O peso na alma tem-se acumulado. Alguma incerteza, uma espécie de aperto.
 
Esperámos todos os dias pela decisão. Esperámos todos os dias que, quem tinha que decidir, a esquecesse. Trabalhámos todos os dias para que, quem tinha que decidir, se interrogasse se seria mesmo essa a melhor decisão. Esperando que resolvesse que não.
 
O dia chegou. A decisão não foi a que queríamos.
 
Os dias que se seguiram têm sido para juntar cacos. E, com eles, tentar reconstruir uma peça igual àquela que tínhamos antes de quebrar em demasiados pedaços.
 

Como aquele galo de Barcelos que tenho em cima do armário verde-alface do meu quarto, que já tantas vezes caiu ao chão, e que já tantas vezes colei. Caco a caco.
 
A verdade é que o galo não ficou igual, nunca mais ficará. Mas continua a tornar aquele meu espaço mais colorido. Ao lado das matrioskas e das kokeshis, que também por lá se mantêm para me proteger e trazer-me sorte. A mim e a quem me rodeia.
 
Pois bem, tal como o galo, acontece-nos cairmos ao chão de quando em vez e as nossas vidas esborracham-se como castelos de cartas. Partimo-nos todinhos.
 
Mas a cola da vida, a cola de querer viver, tem o poder mágico de unir os cacos. De nos colar as entranhas que antes achámos impossível colar e de voltarmos a brilhar. Com algumas cicatrizes, mas cheios de luz. Quem sabe mais ainda. E estamos prontos para continuar a ocupar aquele lugar nas vidas de quem nos rodeia. E nos corações.
 
O meu galo, mesmo todo coladinho e cheio de "cicatrizes", não vai sair dali de cima. Porque ainda tem muitos anos de armário verde-alface pela frente.

17 de novembro de 2013

Com quem se conta

Temos malta do marketing e da comunicação. Temos artistas e engenheiros civis. Temos executivos de topo, gente ligada ao desporto e ao fitness.

Por estas bandas há um pouco de tudo. E, com isso, abundância de conversas. Mas, principalmente, palhaçada.

Crianças, animais. Boa comida, boa bebida. O modelo “todos-contribuem-e-assim-dá-para-todos". E uma casa onde cada canto é uma memória.

20 anos de amizades. Do tempo das saídas à noite. Dos dias longos de praia. Das loucuras da idade. Das grandes histórias de amor. Dos dias com banda sonora. Músicas que ainda cantamos quando relembramos as viagens e os momentos. Quase todos hilariantes…

Histórias que ficam para sempre. Episódios que repetimos quando estamos juntos, mas que nos fazem rir como se os estivéssemos a ouvir pela primeira vez.

Foram anos que nos marcaram, que nos formaram. Estávamos no início de carreira. Mas também no auge da juventude.

Hoje somos todos quarentões. Os que não são, estão perto. Ou passaram por esse número há pouco tempo.

O mundo mudou. Todos nós mudámos com ele. E até a amizade que sentimos uns pelos outros. Porque cresceu. Fortaleceu. Passou a ocupar ainda mais espaço nos nossos corações.

Caramba, enquanto escrevo estas linhas, percebo como gosto destas pessoas...Conhecemo-nos tão bem, mas tão bem, que estarmos juntos é quase como estarmos em família. Como da ronha no sofá, de pantufas, da manta e do carrapito na cabeça se tratasse. Sem capas. Ao natural.
 



Enche-me o coração ouvir a Rodrigues recordar com prazer que me levava a sair à noite mesmo quando a minha irmã preferia ficar por casa. “Não te preocupes, pá, ela vem connosco!”. E ia. Com elas como se fosse com a mana.

Pegar-me o colo, subir-me pelas escadas, levar-me à casa de banho, tudo fazia parte. Não havia obstáculos. Nada nos parava. Aliás, nada nos parou.

Como daquela vez em que nos enfiámos no carro e só paramos em Badajoz para irmos ao El Corte Inglés. E à praça principal, para comer calamares. E à casa de banho daquela garagem onde fiquei entalada na sanita quando me sentaram. Entre gargalhadas, foi o cabo dos trabalhos tirar-me dali!

Como daquela vez em que bebemos um copo a mais, subimos as escadas do meu prédio às cavalitas mas correu mal e nos esborrachamos no meio do chão a rir. Com a minha mãe lá em cima, de porta aberta, à nossa espera. Ops.

A verdade é que nos divertimos à grande. Aproveitámos como merecíamos. E hoje, tantos anos depois e com vidas tão diferentes, continuamos por cá.

Não somos de beijos e de abraços porque sim. Por isso, quando somos, sabe-nos melhor. Mas somos de palavras de conforto. E de abanões, se for preciso. De wake up calls.

Quando alguém me pergunta como foi possível ultrapassar tudo e manter a auto-estima, respondo com estas histórias. É a esta gente que devo grande parte daquilo que hoje sou como ser humano.

Olhando para trás, e analisando cada momento, mesmo os piores, percebo como a vida tem sido generosa comigo e como tem atravessado no meu caminho as pessoas certas. Pessoas que entraram na minha vida por acaso, mas que não é por acaso que por lá se mantêm.

Já passaram 20 anos. Pois que passem muitos mais.

3 de novembro de 2013

Vão, mas voltam.

O Verão já lá vai. Voltámos à rotina do trabalho.
 
Alguns de nós meteram-se num avião e voltaram ao país que lhes prometeu um futuro melhor. Outros meteram-se no mesmo avião e foram pela primeira vez. Depois, há os que não foram nem vão, mas que o regresso ao trabalho nos retira da vista mais vezes do que as que gostaríamos.
 
Passou Setembro, passou Outubro. Com Novembro a romper, e as saudades a apertar, os que podem regressam, mesmo que por pouco tempo, de fugida. E reúnem-se à volta da mesa. Com o sol, o mar e a areia como pano de fundo. No bar de quem já passou connosco o tempo quente, no bar de quem já se partilhou connosco, e a quem desejamos que tudo corra bem.

Comentam-se as novidades de quem chega de lá. Misturam-se com as de quem vem de cá.
 
Trocam-se presentes atrasados. Os que não foram trocados por culpa da ausência forçada.
 
Notam-se as mudanças de cor de cabelo, a roupa nova. Sem maldade. Sem inveja. “Estás tão gira assim!”. Do coração.


 
 
Reforça-se aquela relação que começou no Verão. Aos olhos de todos “que bom, eles merecem”. No fundo da mesa comenta-se baixinho “vai ser desta”. Quem disse costuma acertar. Fui eu.
 
Chega a sangria. Vem o petisco. São as conversas que se cruzam. Que se atropelam. As risadas de um lado, os sorrisos do outro. Numa curva, esbarram um com o outro e é a gargalhada geral. As mesas do lado olham, mas nós nem queremos saber. É a loucura sã.
 
Os miúdos correm para perto do mar. Para acelerar na areia. Dar saltos. Mas os graúdos vão atrás. Não para controlar. Mas porque aqui todos brincam uns com os outros.
 
O sol muda de lugar e de cor. Deixa de ter força para aquecer o corpo mas ganha-a para aquecer a alma, de tão bonito.
 
O dia chega ao fim. Despede-se. Despedimo-nos todos. “Quando voltas para lá?”, pergunta-se pedindo que o tempo páre. “Vou daqui a uns dias.” “E quando regressas?”. A resposta é pronta ”no Natal e, muito provavelmente em Janeiro, para o aniversário da tua mana.”

O importante é tentar não estar longe muito tempo. Voltar sempre que se pode. O avião dá uma ajuda e torna o "tão longe" em "tão mais perto".
 
Os que ficam e apenas se despedem do momento, não do País, prometem que nem a chuva, nem o frio os vai separar. Nem a chuva, nem o frio nos vai separar.
 
Porque quando o que existe é amizade, da boa, o mundo reduz-se ao tamanho de uma azeitona.
 


1 de novembro de 2013

Porque a vida é rara

Sempre contei esta parte da minha história da mesma maneira.
 
Uma vez, duas vezes, três. Muitas. Acabei por estruturá-la daquela forma na minha cabeça e habituei-me a contá-la assim, com aquela sequência. Com os mesmos pormenores, as mesmas graças. Mas há histórias para além da história, que nunca passei para o papel.
 
Passaram-se 23 anos mas lembro-me daquele dia como se fosse hoje.
 
Estávamos em Março. Um Março frio.
 
Os dias passavam-se sempre com a mesma rotina. Lá em casa, depois de todos saírem, preparava-me para mais um dia de aulas. Andava no 10º ano. Turma da tarde. Era uma miúda feliz. Aluna razoável. Bons amigos. Popular. Com um namorado há 2 meses. O Rui. Um miúdo impecável. Aturou-me 7 anos.
 
Naquele dia, a Cláudia, a minha melhor amiga, tinha ficado de passar lá por casa para irmos juntas para a escola. Mas não íamos directas. Antes passávamos pelo Don Pomodoro, onde bebíamos um café e fumávamos um cigarro. Como os crescidos. Comprávamos um maço a meias que ela escondia religiosamente na mala.
 
A Agostinha trabalhava lá em casa há alguns anos e nunca falhava. Naquele dia ia falhar mas, nesta altura, ainda não sabíamos.
 
Lembro-me de pegar no Coca-cola, a nossa mistura de caniche com bichon, mais parecido com um desperdício do que com um cão, e de o levar comigo para a casa de banho, para evitar que se engalfinhasse com o Pantufa, um velho pequinois albino de nariz cor-de-rosa, que tudo o que queria era o descanso do sofá da sala.
 
Lembro-me de ter sentido frio e de ligar o aquecedor de ambiente. De fechar a porta e a janela.
 
Lembro-me do banho mais demorado. De lavar cuidadosamente o cabelo, que ia sempre molhado para a escola.
 
Lembro-me de me estar a saber bem. E de cantar.
 
É nesta altura que oiço o Coca a ladrar, insistentemente. Queria ir lá para fora, quem sabe presentindo algo que eu ainda não tinha sentido. Irritada saí do banho, abri-lhe a porta, deixei-o ir. Voltei lá para dentro.
 
Naquela época, ter os esquentadores nas casas de banho era um hábito em prédios antigos. Alvalade era um bairro desses. Tinha mais de 50 anos. Prédios baixinhos, sem elevador, em que cada inquilino tinha direito a um espaço nas traseiras. O nosso quintal. O bairro de Alvalade era o bairro dos nossos avós.
 
Já perto do fim daquele banho, senti-me estranha. Sem perceber o que se passava, fechei a água. Sentei-me. Esperei. Apaguei. Entrei em coma.
 
Passam-se duas horas e a Cláudia bate à porta. Já não abri. Minutos depois a minha irmã chega a casa, estranhando não se ter cruzado comigo no caminho. A essa hora, o telefone também tocava em Setúbal, onde a minha mãe escolhia as peças de uma colecção de roupa para a loja que tinha na Baixa.
 
Nunca o percurso Setúbal-Lisboa foi tão curto. Dali até ao Santa Maria, o carro voou.
 
Quando tenta entrar na UCI, alguém a pára para lhe vestir uma bata. Em vão. A pressa de chegar perto era maior.
 
Eu já estava acordada. A cabeça estalava de dor. Pedi bolachas Maria e bebi um chá. Fui vista por dezenas de médicos. A quem disse que estava bem...mas que não sentia as pernas.
 
A história que se segue é sobejamente conhecida. Exames, lesão medular, paraplegia. Médicos, Alcoitão, Londres. Fisioterapia, acupunctura, homeopatia, massagens. Mas, ao mesmo tempo, amigos, praia, namorado, escola. Vida normal de uma miúda de 15 anos.
 
Foi o terminar de um ciclo e o início de outro. Como se alguém tivesse pegado nas cartas da minha vida e as baralhasse para começar um novo jogo. Mais difícil, com outras regras.
 
Desde aquele dia aprendi a viver com o que a vida me deu. Cresci. Passei a querer sentir todos os minutos. A ver com o coração aquilo que tantas vezes só via com os olhos. A chuva. Os pássaros. O mundo.
 
E realizei a sorte que tive. Uma reviravolta indesejada, é certo, mas que me fez perceber que, se fiquei por cá, todos os dias tenho que conseguir fazer um bocadinho melhor. Ser um bocadinho melhor. E que, quando há um dia em que isso não acontece – porque estou mais em baixo, porque o saco está cheio, porque tenho a certeza que o mundo se uniu para me lixar -, devo aproveitar o dia seguinte e fazer a dobrar, recuperando o tempo que perdi.
 
Tudo sem nunca perder o foco: prefiro passar pelo tempo, do que deixar o tempo passar por mim.
 
Porque a vida não pára. E eu quero ir com ela.
 
 

19 de outubro de 2013

Auto-estima-te!

Há uns dias, falava com um colega - daqueles bem posicionados - que me dizia “sim, marca esses almoços porque eles têm que querer conhecer-me”. Bem sei que dito assim, a seco, soa malzote – na altura eu própria ia saltando da cadeira - mas, passado o primeiro impacto e contextualizando na conversa, nem tanto. As tais pessoas que eu queria convidar para almoçar com ele, se fossem boas profissionais, deviam sim, querer conhecê-lo. E eu até sei que querem.
 
Claro que não lho disse desta forma. Limitei-me a sorrir e a responder-lhe “sim, talvez, mas onde enfiaste aquele meu colega humilde, característica que sempre te caracterizou?”.
 
A nossa conversa fluiu a partir daí. Falámos do nosso passado e da forma como os nossos pais nos tinham educado. Acima de tudo, amado. Sentíamo-nos ambos bem em termos de auto-estima. Tínhamos ambos boas bases, tínhamos ambos sido suficientemente elogiados enquanto crianças, adolescentes e, por fim, também em adultos.
 
Lembro-me de ser miúda e de ouvir a minha mãe a dizer-me como estava gira, como era esperta, como se orgulhava de mim. Mas atenção que também me lembro dela a partir-me a cabeça, não fosse dar-se o caso de eu encetar uma longa “viagem na maionese”, na “minha própria maionese”, e esquecer-me de deixar os pezinhos bem assentes no chão.
 
Mas este é um tema tramado. Mais tramado do que aquilo que pensamos. Porque nem sempre controlamos a coisa.
 
E tanto que até eu, rapariga habituada a gostar e a acreditar em mim, tão fortemente educada para isso, já dei por mim a pensar “será que sou mesmo boa no que faço? Será que estou à altura deste desafio?”. E, muitas vezes, a primeira resposta é “se calhar não.”
 
Devo confessar que, quando isso acontece, fico com o estômago tão apertadinho que nem uma azeitona lá cabe dentro. Passo dias a pensar no assunto, com o coração a perder tamanho. A bater mais rápido. E a ralhar com o mundo.
 
 
Depois falo com aquelas pessoas que me puxam para cima – os amigos -, que já tanto passaram comigo/por mim, que tão bem me conhecem. Aqueles a quem não precisamos de rir quando, de facto, preferimos chorar. Aqueles a quem podemos dizer tudo o que nos vem à cabeça, porque sabemos que do outro lado nos ouvem sem julgamentos. Os mesmos que não ousam interromper o nosso discurso “Florbela Espanca”. Que nos deixam falar e falar e falar e falar…e só respondem no fim com um simples mas firme "enlouqueceste? Era o que faltava não conseguires.”
 
Dá-me um clique. Dá-me um clique e volto a lembrar-me do que me fez chegar onde cheguei, ultrapassando o que ultrapassei.
 
Volto a lembrar-me que, mesmo que o prato da balança de quem não acredita em mim, tente desequilibrar o meu mundo, não tem a força do prato oposto, porque este abarrota de gente que me considera.
 
Dá-se o regresso à normalidade. O meu estômago volta a abrir as portas a um bom repasto. O coração volta a preencher o espaço que o meu corpo lhe destinou desde sempre, aconchega-se por ali, e passa a bater como devia. Já deixar de resmungar é sempre mais difícil mas, vá, passo a resmungar menos.
 
Com tudo a voltar ao lugar, volta também a vontade de definir um objectivo e um caminho para lá chegar. Com tudo a voltar lugar, volta também a determinação de mostrar que controlamos a situação como ninguém. E de colocarmos aqueles que fizeram questão de nos pôr em causa no seu lugar. Fazê-los ver que, enquanto agirem assim, esse lugar há-de ser sempre um quarto escuro, abafado. Acima de tudo, um lugar isolado e onde não cabe qualquer bocadinho de felicidade.
 
Mas é preciso respirar fundo e tentar ser melhor que eles. Mesmo a custo, enfiar um bilhete por baixo daquela porta a explicar que, se um dia quiserem mudar, haverá sempre alguém por perto para dar uma ajuda. Quanto mais não seja, uma ajuda a melhorar, eles sim, a sua auto-estima.

Ou como dizia o outro, que por acaso era um génio e se chamava Shakespeare, "é um péssimo cozinheiro aquele que não pode lamber os próprios dedos."

 

11 de outubro de 2013

Uma amizade "especial"

Sempre achámos que o facto da Carlota crescer, e conviver, com uma tia de cadeira de rodas tão de perto, ia acabar por dar frutos. E deu.

Cedo percebemos que ela topava que havia gente à sua volta que precisava de mais atenção. Por isso, desde cedo que se sente bem do lado “dos mais fracos”, defendendo-os. Com ela ninguém é deixado para trás.

 
Esta forma de estar na vida tornou-se mais clara quando tinha pouco mais de três anos e um colega do infantário se recusou a fazer uma brincadeira por “ser diferente”. Nessa altura, a Carlota levantou-se e disse “ai fazes sim! Eu tenho lá em casa uma tia de cadeira de rodas que faz tudo! Até se pinta!”. Entre dar banho, fazer o jantar, tratar dela, o importante mesmo era pintar-me…! Que raio de escolha! E que escolha tão amorosa...

A Carlota foi crescendo e assistimos a outros espisódios do mesmo género. Quase sempre dentro de casa, onde sempre me fez sentir a melhor tia do mundo, a mais capaz, feita à sua medida. Sentimento que transformava regularmente em palavras quando me brindava com um “se não estivesses de cadeira eu não ia gostar tanto de ti...” ou “ganda sorte que eu tenho por ter uma tia de cadeira de rodas!”.

Acabou de passar para o 5º ano. Uma mudança radical na vida dela. Escola maior, mais disciplinas, mais professores, mais correria, mais responsabilidade. Cartão para entrar na escola, cartão para almoçar, telemóvel. Novas amizades. Convivência com malta de outros anos. Sentimo-la a crescer todos os dias. É uma fase um bocadinho assustadora mas, ao mesmo tempo, maravilhosa. A nossa miúda está a ficar crescida.
 
Este ano, a turma dela recebeu de novo um menino especial. Contou-nos, entusiasmada, logo no primeiro dia. Chamava-se R e, por coincidência, era filho de uma amiga nossa, o que só viemos a saber mais tarde.


Nos dias que se seguiram, continuou a falar-nos daquele colega. Comentou que alguns miúdos o gozavam e o deixavam para trás, o que a deixava furiosa.

Sentiu que ele precisava de alguma protecção e passou a dar-lhe mais atenção. Escolheu-o para a sua equipa de futebol. Brincou com ele no intervalo. Mostrou ser sempre mais paciente. “Porque ele não percebe as coisas como nós...e precisa de ajuda”, explicava. O resultado acabou por se traduzir numa aproximação do miúdo à Carlota. Porque sentiu que ela o ia sempre amparar.

Ontem voltou a acontecer. Depois da professora pedir aos alunos para se juntarem em grupos, no meio da confusão, o R acaba por ficar de fora. A professora apercebe-se e pergunta “E o R, fica sozinho?”. A Carlota chega-se mais uma vez à frente e com a voz firme diz “não, o R está no meu grupo”. E olha para as colegas que acenam a cabeça, aceitando. Aceitando-o.

O melhor de tudo é que ela conta isto com a naturalidade de quem não está a fazer mais do que aquilo que qualquer colega deveria fazer. Porque jamais lhe passaria pela cabeça deixar sozinho quem está em desvantagem. Como, vendo bem, nunca deixou a tia.

Vem aí uma nova geração. E, com ela, o dia em que todos serão iguais. Mesmo com todas as suas diferenças.
 
Por isso, olhar para esta miúda, é acreditar que, um dia, o mundo pode voltar ao lugar.