27 de fevereiro de 2013

“As tartarugas conhecem as estradas melhor do que os coelhos”



Daqui de cima, da minha varanda, sem pressa, vejo de tudo.

Vejo quem chega. Vejo quem parte.

Vejo quem chega mas quer partir. Vejo quem parte mas quer ficar.

Vejo quem não parte mas que devia partir.

Vejo a vizinha vaidosa que acha que deslumbra com o olhar. Mas não percebe que já ninguém sequer lhe olha para o resto, quanto mais para os olhos.

Vejo gente que nunca via, mas que passei a ver porque perdeu o emprego.

Vejo a avó que fica com os netos e que todos os dias lhes ralha porque eles não fazem os que ela lhes manda.

Vejo o vizinho enfermeiro que, por ser enfermeiro, anda sempre desencontrado nas horas.

Vejo o casal de velhotes que todos os dias, à mesma hora, apanha o autocarro para algures.

Vejo os pais a saírem cedo demais, com os filhos encasacados, para mais um dia de escola e trabalho.

Vejo os senhores das obras do prédio ao lado a saírem juntos para almoçar na tasca do fundo da rua porque “é barata e come-se bem”.

Vejo o casal engraçado - ele muito magrinho, ela muito gordinha - que entra no carro a discutir, mas que quando regressa já vem de mão dada. E ela com uma flor numa das mãos.

Vejo o motorista do autocarro cuja pausa na paragem é sagrada para fazer um chichi num desgraçado de um pinheiro escondido num canto do parque de estacionamento.


Vejo o grupo de senhoras mais velhas que fazem as suas caminhadas, de manhã bem cedo e ao fim do dia. Todas com uns ténis calçados e de coletes reflectores vestidos. Falam das noras, dos genros, dos maridos. Da vida. Sim, na maioria das vezes, da vida dos outros.

Vejo os sofás, as cadeiras, os armários - ou outras tralhas velhas que alguém deixou de querer e que, por isso, encostou ao caixote do lixo -, a desaparecer em menos de minutos. Uns levam por gozo, é certo, mas outros por necessidade.

Vejo um bando de pardais barulhentos que lutam por uma migalha deixada no meio da estrada.

Vejo o gato gordo e coxo a fazer o que mais gosta (depois de fugir aos cães): a vadiar entre carros e a dormir de barriga para o ar, ao sol.

Vejo o vizinho que todos os dias sai de casa para deitar o lixo, mas antes pára num canteiro que fica no cantinho da rua para deixar comida ao gato. Daí ele ser gordo.

Vejo o Mike, o cão do rapaz de cabelo grisalho do prédio ao lado, que ladra e pula enquanto passeia. De felicidade. Depois entra no carro do dono, e segue com ele para o trabalho.

Vejo o Mozart, o golden retriever aqui da rua, a passear com a dona, e fico com saudades do Gaspar. O coração sobe-me para a garganta.

Vejo o meu pinhal e, nele, três coelhos destemidos que se arriscam a chegar perto da estrada, mas que rapidamente voltam para trás, aos saltos. E se perdem por entre os arbustos.

Vejo o mar, ao longe. Mas vejo o mar. Tão azul, mas tão azul, que se entranha com o céu.

Na minha rua vive-se. Mais do que isso, vivem-se vidas reais. Diferentes. Mas verdadeiras. Iguais a tantas outras.

E eu, vendo-as cá de cima, da minha varanda, sem pressa, consigo imaginar a história que está por detrás de cada uma.

Liberdade de voar



Sempre sonhei experimentar a liberdade de voar. A liberdade dos pássaros.

Por isso, se hoje, agora, me fosse concedido um desejo, como do génio da lâmpada, era isso que lhe pedia. Que me fizesse voar. Voar sem parar. Voar. Apenas voar.

E que, em vez de me dar asas, chamasse as gaivotas e os corvos que vivem na minha rua para darem uma ajuda.

Era simples. Davam as asas uns aos outros, faziam uma espécie de cadeirinha de penas, e eu sentava-me nela. E íamos. Ou melhor, e voávamos.

Com as gaivotas podia fazer razias ao mar, tocar-lhe com as pontas das patas. E picar o peixe distraído que andasse à superfície.

Já os corvos podiam levar-me até ao cimo dos pinheiros mais altos. E fazer como eles costumam fazer, saltar de um para o outro. Ou cantar em cima das chaminés dos prédios lá da rua. Para acordar a vizinhança.

Depois, já todos juntos, subíamos a pique até uma nuvem. Nunca vi uma nuvem por dentro. Gostava de saber como é. De saber se a sentimos na pele quando passamos por ela. De saber se tem cheiro.

De seguida, e depois de subirmos a pique, fazíamos o contrário, descíamos a pique. E rasávamos as traineiras dos pescadores, daqueles que corajosamente se aventuram no mar, cheias de peixe. E riamo-nos com os seus protestos sempre que conseguíamos roubar-lhes um ou outro peixe.


Para terminar o dia, podíamos pousar na copa do pinheiro. Mas do mais alto. Devagarinho, mas muito devagarinho. Aí, quase de forma delicada, as gaivotas, com a ajuda dos corvos, sentavam-me suavemente e de novo, na minha cadeira, na minha varanda.

No fim, acenava-lhes num gesto de agradecimento. Por me terem ajudado a realizar um sonho. Voar e sentir, mesmo que apenas por um dia, a sua liberdade.

Depois as gaivotas regressavam ao mar, os corvos ao pinhal e às suas chaminés. E acabava assim.

Mas todos os dias nos víamos. E tenho a certeza de que me bastaria fazer-lhes um sinal, um pequenino sinal, e eles voltavam a unir as asas, a fazer a cadeirinha de penas e a levar-me para mais uma aventura. 

Até lá, basta-me fechar os olhos e pensar: sou uma sortuda. Já voei. Já senti a liberdade de um pássaro. E aí sorrio.

Um sonho? Talvez, mas isso é bom, porque como dizia o poeta, nós somos do tamanho dos nossos sonhos. E os meus são sempre assim, enormes.

25 de fevereiro de 2013

Missão: ser feliz.

São as coisas mais simples que me fazem feliz. Não estão por nenhuma ordem em especial, mas não é por isso que deixam de me fazer feliz.

De acordar de manhã e ver que está sol. Ou a chover. Mas que acordei. Que estou viva. Mais um dia.

De sonhar e lembrar-me do sonho.
De me espreguiçar mas, ao fazê-lo, sentir cada bocadinho do meu corpo a descontrair.

De ouvir no quarto ao lado, a minha mãe a abrir o estore. Também a tenho mais um dia.
De acordar sem enxaquecas. Quem tem, sabe do que falo.

De tomar o pequeno-almoço e ir a correr para a varanda para me despedir da mana e da Carlota. Mais um dia de trabalho e de escola. Mais um dia que passa, e também elas estão por cá.
De tomar um banho quente, rápido, mas com tempo suficiente para sentir a água a escorrer-me pelo corpo. De preferência com o cheiro do gel de duche de chocolate.

De olhar para o espelho e ver algo que me agrada. Por fora. Durante os meses em que estive doente e magra, não queria sequer ter espelhos à minha volta. E foram meses demais.
Mas também de olhar para dentro de mim e gostar do que vejo. Orgulhar-me. Chama-se amor-próprio e ajuda-nos muito a viver na selva em que o mundo se tornou.

De ir à empresa e sentir que fiz falta nos dias em que não apareci. Que notam quando não estou.
 
De chegar ao fim de mais um dia de trabalho e sentir que piquei todas as tarefas que tinha listado. Sentir que tive um dia produtivo.

De ouvir a minha rádio enquanto trabalho em casa, enquanto arrumo o quarto, enquanto me arranjo para sair. Ou para estar em casa.
De chegar à hora de almoço e sentir fome. Passei meses a mais a não sentir, por estar doente.

De receber ou fazer um telefonema a uma amiga com quem já não falo há muito tempo. Mas esse tempo parecer quase nenhum.
De não deixar passar um dia sem sentir que fiz alguém feliz. Ou porque lhe sorri, ou porque lhe agradeci, ou porque a ouvi.

De pegar num livro e mergulhar na história. De tal forma, que o leio em poucos dias. Nunca mais me esquecer da história. E, quando escolho um presente para uma pessoa especial, escolho esse livro, na esperança que ela sinta o mesmo que eu senti ao lê-lo.
De me enfiar na cozinha e inventar. Ou apenas de cozinhar para a minha família. Desde umas simples costeletas com arroz até algo mais elaborado. E depois dizerem-me que “ficou bom”.

De fazer um grelhado na varanda para…as 4.
De beber uma garrafa de espumante com a minha irmã ao Sábado à noite, em casa, e ficar com a gargalhada mais fácil. E com as bochechas vermelhas. Depois disto, um charuto e um porto.

De chegar à noite a casa e ter a lareira acesa, a Carlota à espera, tratada, confortável e cheia de histórias para contar. Ou de ser eu a tratar dela.

De dormir uma sesta depois de almoçar em casa, no fim de semana. No Inverno, com os meus sacos de água quente.
De ouvir o crepitar da lareira numa noite de Inverno. Ou os grilos numa noite de Verão. E os corvos durante o ano todo.

De mantas. Muitas mantas. E almofadas. Muitas almofadas. E de sacos de água quente. Muito quentes.
De me lembrar do Gaspar sem chorar. Sei que ainda vai levar tempo.

 
De ver televisão esparramada no sofá.
De café acabado de fazer. Acompanhado de 3 quadradinhos de chocolate de leite Milka.

De estar na minha varanda. E ver o que vejo dela. A lua, por exemplo.
De escrever. Mesmo coisas assim, sem grande sentido. Mas escrever. Deitar cá para fora o que me vai na alma. Mesmo que só me interesse a mim.

Das histórias que vivi e que consegui passar para o papel com a intensidade com que as vivi.
De me sentir feliz só porque…sim. Sem mais grandes explicações. Só porque sim.
De poder fazer tudo o que acabei de escrever, mas ter a capacidade de sentir no coração que o estou a fazer. E ficar quentinho.

Para mim, ser feliz passa por pouco. Porque estive perto demais de nunca mais poder sentir. Mas, se calhar, foi preciso. Para perceber como é bom poder sentir. E quando eu digo sentir, é mesmo isso: Sentir. Com S grande.

Como alguém um dia disse, "A felicidade não é um luxo: está em nós como nós próprios."
Ser feliz e fazer por ser, é isso mesmo, o meu luxo.

24 de fevereiro de 2013

“Em cada rosto, igualdade/ O povo é quem mais ordena.”

Antes de tudo, um esclarecimento. Com esta crónica, apenas constato o estado do meu País. Ou melhor, o mau estado do meu País. Porque ele merece que eu diga o que sinto. Até porque politica faz-me urticária.

Igualdade não tem havido. Nenhuma. No meu País. Sim, aquele que ganha prémios de melhor destino turístico em revistas estrangeiras. Aquele com gente única, clima de sonho, sitíos de cortar a respiração. Já para não falar do que por aqui se come, que conquista qualquer criatura que nos visita.

Mas o povo, esse, já nada ordena. O povo vota mas os Governos depois fazem o que querem e, acima de tudo, como querem.
A bem da verdade, o povo nunca tem grandes alternativas quando lhe dão a escolher. Afinal, tão bons são uns como os outros. A ambição desmedida, a ganância, a obsessão pelo poder. Hoje em dia, os valores pelos quais cada partido se rege, ficam-se apenas pelos livros. E já não nos corações e nas almas dos seus dirigentes. Já pouco lutam, de verdade, por eles.

Posso até aceitar que haja quem entre nesta vida com boas intenções. Mas não entendo que não saiam no momento exacto em que percebem como aquilo funciona.
Faz hoje 26 anos que o Zeca morreu. O Grândola Vila Morena, música bandeira, foi símbolo de uma revolução. Uma revolução que devolveu ao povo, quando ele, de facto, conseguia ordenar, a liberdade que não conhecia com a Ditadura.

É uma música que fala sobre a fraternindade. Fala sobre amor ao próximo. Valor que se foi perdendo com o tempo. Valor que o tempo, simplesmente, apagou.
Eram 00:20 minutos do dia 25 de Abril. 1974. O Grândola Vila Morena o sinal que a revolução ia avançar. Que o povo ia para a rua. Avançou, derrotou a Ditadura e ali nasceu a Democracia. Que quer dizer Governo ao povo. Governo em que o povo, de uma forma, directa ou indirecta, governa.

39 anos depois? Só tretas. O povo elege, escolhe, é verdade. Vai confiando que este ou aquele dará o seu melhor. Vai confiando que este ou aquele dará um rumo ao seu País. E depois? Depois acontece o mesmo de sempre. Enchem os bolsos, ajudam os amigos. E, os que realmente tentam mudar o sistema, ou se enrolam na teia e se deixam levar, ou acabam por desistir.

Facto: a vida das pessoas está cada vez pior. Facto: a vida das pessoas está cada vez mais longe de ser vida. Porque uma grande parte não vive. Limita-se a sobreviver.

Há mais fome, mais miséria. Que agora vem de onde antes não vinha. Hoje há vergonha de assumir que se passou a fazer parte daquele grupo de pessoas que não tem nada para comer no frigorífico. Que deixou de poder pagar um tecto para viver.

Grândola continua a ser uma vila morena. Pode até continuar a ser a terra da fraternidade. Mas já não é o povo quem, dentro dela, mais ordena.

Hoje voltou a cantar-se o Grândola Vila Morena. Virou moda. Mas hoje não há revoluções. Há pequenos grupos de pessoas que se juntam para se manifestarem. Alguns até com as intenções erradas. Usando os métodos errados. Mas, mesmo quando são muitas, continuam a conseguir fazer pouco. Porque a máquina é poderosa, finge-se de surda e o povo é demasiado sereno para voltar a revoltar-se com firmeza.

Mas as coisas tem vindo a aquecer. Por isso, hoje é assim. Mas eu pergunto: será para sempre assim?
Começo, finalmente, a ter esperança que não. E que, um dia, brevemente, isto mude.

                                   

22 de fevereiro de 2013

"Escrever é ter a companhia do outro de nós que escreve."

A bem da verdade, o título não devia ser este. Devia ser “ter inspiração para escrever é do caraças”. E é. Porque escrever é fácil, desde que saibamos sobre o quê. Mas às vezes, cadê o tema?

Desde que decidi ter um blog e, acima de tudo, desde que percebi que havia gente interessante interessada no que eu escrevia, que passo parte do dia a pensar: mas sobre que raio é que é que eu vou escrever logo? Sim, e dou por mim também a pedir aos santinhos que me iluminem e que me lembrem de algum momento que me apeteça partilhar.
Até agora tenho-me refugiado em episódios da minha vida. Em momentos bons e em momentos maus. Sempre reais. Recordações.

Mas sempre momentos com algo que, no fim, deixasse quem me lê a pensar.
E isto leva-me à inspiração.
 
 

Nos dicionários comuns que pesquisei, encontrei várias definições. Mas vou falar apenas de algumas.
Desde logo, inspiração ligada à Fisiologia e que se refere “ao movimento pelo qual se leva o ar aos pulmões”. Sim, para escrever também preciso de ar nos pulmões. Por isso, serve.

Depois vem a inspiração ligada à Teologia, e que tem a ver com a “infusão da vontade divina na consciência humana”. Apesar da minha educação católica, há dias em que tenho alguma dificuldade em acreditar que existe mesmo alguém lá em cima a olhar por nós. Mas, mais do que haver esse alguém, principalmente, que ele era magrinho, cabelo comprido, barba por fazer, que morreu na cruz e que, passados três dias, ressuscitou. Por isso, esta definição não me serve de muito.
Segue-se “ideia ou pensamento súbito”. Isso sim, é o que me dava jeito, mas às vezes escasseia.

Também fala de “faculdade criadora”. Tem dias. Hoje parece que não é o dia.
Mas calma. Finalmente encontrei aquela definição de quem mais gostei: “acção de inspirar algo a alguém. Que influência.”

Tenho 37 anos e, quer eu queira, quer eu não queira, por tudo o que já me aconteceu, umas vezes inspiro, outras vezes influencio.
Não gosto particularmente do Saramago, irritava-me a falta de humildade e, vá, a falta de vírgulas, mas lembro-me que ele dizia sobre o acto de inspirar: “imaginemos que eu estou a pensar determinado tema e vou andando, no desenvolvimento do raciocínio sobre esse tema, até chegar a uma certa conclusão.” Agora pergunto: já encontrei uma conclusão para este texto? Não, não encontrei. Isto não vai acabar bem. É que lendo o que ele diz parece fácil, mas não é.
 
Já Mandela defendia que a sua inspiração eram “os homens e mulheres que lutam contra a supressão da voz humana, que combatem a doença, a iliteracia, a ignorância, a pobreza e a fome. Alguns são conhecidos, outros não. Essas são as pessoas que me inspiraram.” Discordar com isto era, no mínimo, ser estúpida.
Até aqui inspirei-me nas inspirações dos outros mas...e para mim? O que é inspiração?

Para mim inspiração é ir à varanda, olhar para o meu pinhal e sonhar como é que os animais que ali vivem se relacionam entre eles. As suas histórias. E sim, acompanhar o gato coxo e gordo, vadio, que vive como um rei na minha rua.
Para mim inspiração é olhar para trás e continuar a acreditar que vai sempre haver um dia, um minuto, um segundo, um pequenino momento em que algo diferente acontece, que me faz voar no tempo. Para a frente ou para trás. Isso não é relevante.

Para mim inspiração é ser genuína, dizer a verdade. É não ter vergonha de ouvir uma música de amor “muita” foleira e lembrar-me de quando estive apaixonada.
Para mim inspiração é olhar para a minha sobrinha a crescer e acreditar que vai ser uma miúda que vive em liberdade e feliz.

É, acima de tudo, olhar para tudo o que acontece à minha volta e conseguir ver ali uma história para contar.
Mas que, como disse no início deste texto - parvo, é certo, e talvez até inútil - uma história que deixe quem me lê a pensar. Que faça chorar. Que faça rir. Que faça mexer qualquer coisinha dentro dela. E que a deixe com vontade de a partilhar. Com alguém que naquele dia precisa de sentir alguma coisa. Boa ou má. Mas alguma coisa.


20 de fevereiro de 2013

A dor dos outros.

Hoje pus-me a pensar, e percebi que lido melhor com a minha dor, do que com a dor dos outros.

É que com a minha sei como dar a volta. Se não sei, arranjo, invento. Distraio-a, troco-lhe as voltas. Passo-lhe uma rasteira. Ou dou-lhe, simplesmente, um belo pontapé no cu.
Com a dos outros não é assim. Com a dos outros fico muitas vezes sem saber o que dizer, sem saber o que fazer, sem conseguir ajudar. Sinto-me impotente. Eu, que estou habituada a saber sempre o que dizer. A controlar a dor. Mas, sim, a minha.
O que mais me custa é quando são causas aparentemente perdidas. Cientificamente perdidas. Causas onde o que nos resta é a esperança. Mas também o que é isto de nos "agarrarmos à esperança" quando estamos a falar de casos sem ela? Ou mesmo de pessoas que, por natureza, não a têm?
“Tens que ter calma”. “A vida é mesmo assim”. “Temos que aprender a aceitar”. “A ciência avança muito rapidamente”. “Pensa que algo vai acontecer de bom”. “És forte e vais superar”. "Luta, luta, luta". “Tem esperança”. Pronto, estão a ver…? Até eu digo aos outros para se agarrem à esperança, mesmo sentindo no meu coração que de pouco vale. Mas, se não disser isto, digo o quê?
“Se acreditas em Deus, reza”. “Se acreditas noutra coisa qualquer, segue-a”. “Acima de tudo, faz o que o teu coração te manda fazer”. “Se for gritar, grita”. “Se for chorar, chora”. “Se for partilhar, partilha”. Porque quando gritamos, choramos ou partilhamos, deitamos cá para fora um bocadinho desta dor. Porque se a deixamos lá dentro, ainda nos corrói mais. E não lhe podemos dar esse espaço. É que se o fazemos, ela é má e toma mesmo conta de nós.
Tenho tanta pena...Mesmo. Há alturas, há casos, em que é difícil ter uma palavra de conforto. Daquelas que confortam. Que aliviam. Que mostram um caminho. O caminho.
E, por isso, nessas alturas só podemos dar o que temos. Um ombro forte. Um sorriso que compreende. Um abraço demorado. Um beijo mais profundo. Um dar a mão mais apertado. Como quem diz, “Nada posso fazer ou dizer, mas estou aqui”. E estou. E fico. E vou. Mesmo que esteja longe. Desenrasco-me e vou.
 
A presença da possibilidade da morte nas vidas dos outros, é uma merda. Rouba-me as palavras. Curioso que na minha soube quase sempre como a enfrentar. E vos garanto que não passou por aceitar. Porque isso, nunca fiz. Mas, se calhar, era diferente.

No fundo, mesmo lá no fundo, este texto todo só porque hoje o que me vai na alma era mesmo a vontade ter um dom. Não o da palavra. Esse, têm muitos. Mas o da palavra certa. No momento certo. Sempre na ponta da língua. Que acalmasse a dor nos outros, Que, bolas, é tão pior que a minha.
 
 

19 de fevereiro de 2013

I Will Survive!

Hoje estive o dia todo a contar os minutos para chegar a esta hora. Queria muito partilhar convosco mais uma história.

Bom, digamos que esta não é bem uma história. É mais uma memória. E daquelas que o meu cérebro, se tivesse algum juízo, esquecia. Ou não. Mas, antes de começar, mais um dado importante para que percebam porque é que me lembrei disto hoje. Porque sonhei com este dia. Quase como ele se passou.
Por fim, um alerta: este texto exige algum…estômago!
Devíamos estar perto do final de Abril de 2005. E eu já internada há cerca de quatro meses, intervalados com algumas melhoras que me devolviam ao meu mundo, à minha casa, à minha família. Mas que dias depois me faziam regressar ao hospital porque voltava a febre, ou seja, a bicharoca. A septicémia, causada por uma escara infectada na nádega, estava a ganhar terreno.

Fui uma primeira vez ao bloco para fazer uma abertura na perna. Os médicos queriam conseguir chegar às “partes moles” (carne, músculos, etc) porque achavam que, atacando a bactéria na zona, na sua zona, o tratamento seria mais eficaz. Durante semanas mantiveram-me a perna com essa abertura para irem fazendo limpezas localizadas.
Mas aquilo não estava a resultar. O raio da febre não paráva e, ao fim da tarde, fazia-me sempre uma visita. Um amor, portanto.

Até ao dia em que os médicos, eu acho que quase em desespero, decidem avançar e ir mais fundo. Chegar ao osso.
Nunca mais me vou esquecer do dia em que um grupo de homens de bata branca entra no meu quarto, e um deles me diz “Vamos que mudar o tratamento, temos que ir mais longe.”

Era o chefe de serviço. Um excelente técnico (e não digo excelente profissional porque, para mim, excelente profissional tem também que ter um lado mais humano, que este não tinha). Olha para mim e diz-me claramente “Marta, somos da opinião de que a bactéria está alojada no teu fémur, mas só conseguimos ter a certeza abrindo mais, chegando mais perto. Vendo.”
Fiquei a olhar para ele à espera que me dissesse mais qualquer coisa. Qualquer coisa que resolvesse aquilo, um caminho. Uma solução, pá! E ele acrescentou “Por isso, vais agora para o bloco e o que se vai passar é o seguinte: se o problema estiver na cabeça do fémur, tiramos-ta, se estiver em toda a perna, amputamos-te a perna, se já tiver passado para o outro lado (anca)…”. Calou-se e baixou a cabeça. Havia um ser-humano ali dentro, afinal.

Como não sou burra nem estava balhelhas, percebi o recado. Se estivesse na anca, já nada podiam fazer, a não ser continuarem a dar-me antibióticos e acreditar que o corpo ia acabar por reagir. Algo que até ao momento, era um facto, não tinha acontecido. Ou seja, sem parar a porcaria da bicha, nada a fazer.

Olhei para ele, depois para o médico assistente, um espanhol pouco mais velho que eu e com quem já tinha estabelecido uma relação mais próxima. Lindo, diga-se de passagem! Percebi que era grave. Respirei fundo. Mesmo fundo. E respondi “Vamos a isso. Se é mesmo assim, se é para ir, é agora.”. Ele respondeu que sim, que iam preparar o bloco.
Na altura não sabia mas o ortopedista que me operou, e que anos depois me tratou de uma perna partida, contou-me que nesse dia estava de banco e que lhe disseram apenas “Tens que vir rápido. Temos ali uma miúda que, se não for tratada rapidamente, se apaga.”

As enfermeiras, na altura já grandes companheiras de “aventura”, prepararam-me para descer. E lá fui eu, sempre deitada na minha cama. Lembro-me de ir pelo corredor do serviço, passar por elas e de as ver de lágrimas nos olhos. E a passarem-me as mãos pela colcha que me tapava como quem diz “Vai correr bem”. Se eu tinha acabado de saber a gravidade da situação, elas já a sabiam. Há que tempos.
Enquanto descia no elevador que nos levava ao bloco, percebi claramente que aquela era a minha hipótese de me safar. Nem sei bem o que senti. Só sei que não parei de chorar de medo. Sim, medo daquilo não funcionar – estava farta de tratamentos que nada tinham adiantado - e de ter que ficar à espera de algo que poderia nunca acontecer.

Quando cheguei ao bloco fui transferida para outra cama, acho que esterilizada. E deixaram-me à espera encostada a uma das paredes, num daqueles corredores onde cada porta é um bloco operatório. Via as enfermeiras a passar, os médicos, os auxiliares. E pensava “Eu não pertenço aqui, caraças. O meu lugar é esparramada no sofá lá de casa a ver televisão e enrolada numa manta. O meu lugar é a ver a Carlota a crescer e a ser uma referência na vida dela. Esta merda vai passar.”
A certa altura, há um médico que olha para mim, vê-me a chorar, pára e diz “Então? Uma cara tão bonita a chorar? Não pode ser…”. Respondi-lhe que estava com medo. Ele deu-me a mão e disse-me que naqueles blocos tinha que se entrar a pensar que se ia sair bem. Era um médico veterano, com cabelos brancos. Experiente e com ar de Pai-Natal. Mas aquela touca cheia de bonecos tipo banda desenhada fez-me rir. Vá, sorrir. E ele disse “Isso mesmo. Uma miúda gira não pode chorar. Vai correr bem”. E vai-se embora.

Passados uns minutos uma enfermeira conduz-me até ao bloco. Um sítio gelado, com paredes de mármore, cheio de máquinas esquisitas. E um monte de enfermeiros a correr de um lado para o outro. Passado um bocado entram os meus médicos. Os cirurgiões. Mas acompanhados pelo ortopedista. O tal que tinha sido chamado para “safar a miúda”. Ah, e a música que se ouve nos filmes durante as cirurgias é verdadeira. Os meus médicos ouviam rock. Pensei: 'Tou feita!
Vejo o espanhol que me pisca o olho. Depois apaguei-me com uma bela anestesia geral.

Lembro-me de acordar no recobro cheia de fome e a perguntar quando é que ia poder comer um bife com batatas fritas. Os enfermeiros de serviço riram-se e disseram “Quanto muito damos-te um suminho, mas tens que beber devagar…”. Devia ser o pior sumo do mundo mas, na altura, soube-me ao melhor.
Passadas umas horas volto ao serviço e ao meu quarto. E vejo os sorrisos rasgados das enfermeiras. Tinha corrido bem, e elas já o sabiam.

Quando o tal médico, o chefe de serviço, entra no meu quarto disse com o seu ar austero mas, pareceu-me a mim, com um sorriso nos olhos “Confirma-se. O teu fémur estava desfeito pela bactéria, tivemos que o retirar, limpar e a coisa parece que ficou com bom aspecto.” Agora iam ser carradas de antibióticos, análises todos os dias, mais carradas de antibióticos, mais análises todos os dias. E ver se resultava.
E assim foi durante semanas e semanas e, de um momento para o outro, os períodos de febre começam a ser mais espaçados. E mais espaçados. E mais espaçados. Até pararem.

Sabendo que eu tinha boas condições em casa, os médicos arriscam mandar-me para casa com os Cuidados Continuados. Ou seja, com o serviço de enfermagem móvel do hospital que, 2 vezes por dia, me ia dar o antibiótico intravenoso.
Com a medicação fui melhorando. E fui deixando de estar enjoada. E comecei a comer. E a ganhar peso. E, finalmente, a recuperar.

Foram minutos que pareceram horas. Foram horas que pareceram dias. E foram 5 ou 6 meses que mudaram para sempre as nossas vidas.

Depois de tudo isto - acho eu que depois de uns 8 ou 9 meses entre ter sido internada e regressado a casa - decido voltar devagarinho ao trabalho. Primeiro remotamente, porque tinha mesmo que ir com calma. Mas um dia quis mesmo ir lá. À empresa. À minha sala. À minha mesa. E estava tudo como eu tinha deixado. Fez-me bem sentir que continuava a fazer parte daquilo. Como se nem um dia tivesse estado fora dali.
E no meu coração não tinha. A minha vida tinha ficado apenas em stand-by. E era chegada a altura de voltar a carregar no play. Hoje faço rewind muitas vezes, porque gosto de recorrer aos ensinamentos que me ficaram destes dias. Mas, quem me conhece, sabe que o estado normal é mesmo o forward! E, de preferência fast forward...

PS – Não me levem a mal, mas não quero elogios por ter passado/utrapassado tudo isto. Oiço-os há 23 anos, desde que fiquei de cadeira de rodas. Agradeço-os, claro, e até os compreendo. Mas a única coisa que quero que entendam com esta história é que, por muito má que a situação seja, quando tudo parece que não funciona, se acreditarmos que nos safamos, safamo-nos mesmo.
Ah, e para terminar, só podia ser em grande:

Bactéria de merda, esta é para ti!