22 de junho de 2013

Porque não quero esquecer.

À hora do lanche fazíamos refresco de café e panquecas. Ou tostas mistas cheias de queijo que, de ser tanto, saía por todos os lados, derretido. Eram maravilhosas. Ainda consigo sentir o sabor do queijo na minha boca.

O refresco de café, continuo a beber todas as manhãs. E as panquecas ainda hoje me acompanham. Aliás, a que acabei de comer fez-me viajar no tempo e voltar àquelas tardes em casa, com a mana, depois das aulas terminarem. Hora da do lanche mas também da brincadeira.

Na altura não havia Barbies, havia Tuchas. Depois passámos para os bonecos carecas, uns bonecos do tamanho de um bebé real que a mãe nos trouxe de uma viagem a Paris. O Pedrito e a Sarita.
 
Eramos muito miúdas. Eu devia ter uns 8 ou 9 anos e a minha irmã 10 ou 11. Ou menos.

 
Sempre partilhámos o quarto. Dormíamos num beliche. Ela em cima, eu em baixo. De vez em quando, durante a noite, a mana lá me engatava para ir para a cama dela.

Começava a subir as escadinhas mas às tantas parava, olhava para a minha cama e - coisas da idade – de repente, ela ganhava olhos. Que me fitavam, tristes, por me verem ir dormir para a cama de cima. Aquilo era completamente superior a mim, por isso voltava para baixo e enfiava-me novamente lá dentro.
 
Mas a minha relação com a minha cama trazia-me outro "grande" problema. Todos os dias, quando estava quase a adormecer, imaginava bruxinhas a mexerem-me nos pés. Por isso, e porque aquilo me incomodava mesmo, todos os dias punha os pés para fora da cama por uns minutos, os suficientes até sentir que as bruxinhas já se tinham ido embora. E assim foi durante uns tempos. Entretanto foi passando. Fui crescendo…

 
Depois foi a vez dos carros passarem a “olhar para mim”… Gostava deles pelo “ar” dos faróis. Os redondos eram "queridos", os rasgados os "maus". E assim me divertia durante as viagens que fazíamos com os nossos pais. Com isso e a dizer adeus aos passageiros dos carros que vinham atrás do nosso. Quem respondia era presenteado com dois mega sorrisos, meu e da mana. Quem não reagia recebia de volta duas caretas e duas línguas de fora. E nós um ralhete da nossa mãe, sempre que se apercebia do que tínhamos acabado de fazer. Mas apercebia-se poucas vezes, nós eramos crianças...discretas!
 
E os cheiros…Os cheiros também foram importantes na minha infância. O do chão encerado dos corredores do João de Deus. O do leite que nos davam ao lanche, que me agoniava, tal como hoje. O do perfume Chloé, que a minha mãe trazia de fora, por ainda não haver em Portugal. Ou o dos frangos assados da rua dos restaurantes da Feira Popular.

Pena tenho eu de já não ter Tuchas para brincar. Ou a Feira Popular.

As bruxas que me mexiam nos pés durante a noite passaram a aparecer-me durante o dia. Mas já não me assustam.

Leite, esse, nem vê-lo. O Chloé até veio para Portugal, só que se esqueceu do seu verdadeiro cheiro em Paris.

Continuo a dizer “adeus” a quem bem me trata e a “fazer caretas e a deitar a língua de fora” quando fazem o contrário. Mas agora com aspas.

E o melhor de tudo: hoje comi uma panqueca igual à que fazia aos 8 ou 9 anos.

Afinal, já que temos que crescer e temos, enquanto guardarmos as nossas memórias de infância dentro de nós, a vida é muito mais colorida. E, no meu caso, saborosa. Literalmente.
 


20 de junho de 2013

"Se a morte fosse um bem, os deuses não seriam imortais."

Todos os dias morre gente que não devia.

Dias que nos relembram que a vida pode não passar de um fio fininho que qualquer sopro de um vento mais forte pode partir em dois. Dias em que nos deparamos com a fragilidade disto tudo. Que hoje estamos cá, mas que nada garante que o mesmo aconteça amanhã.

Ficamos pequeninos. Minúsculos. Ninguém, no meio disto tudo. E, por isso mesmo, sem permissão para pedir mais, para exigir mais. Apenas agradecer por estar cá mais um dia, mais dois, mais alguns. Há quem não tenha essa sorte.

Morrer depois de cumprir a vida já é triste. Mas morrer antes disso é, no mínimo, estúpido.

O mundo, a vida, a nossa existência como ela foi pensada – se é que alguém um dia alguma vez a pensou – é uma máquina fantástica. Como o nosso corpo. Em que cada bocadinho está ligado ao outro. Em que a zona x da planta do pé tem um caminho invisível até ao fígado, que por sua vez, quando não funciona, se reflecte nos olhos, que amarelam e acendem um sinal vermelho para todos verem. Que o coração se atrapalha e faz doer o braço. Que a alma se baralha e faz cair o cabelo.

Nascer é um pequeno milagre. O facto de um bicharoco cabeçudo e de cauda poder ganhar a corrida, enfiar-se e desenvolver-se dentro de uma bolinha cheia de água, que por sua vez aumenta à medida que ele cresce, porque se vai alimentando por um “tubinho” e, 9 meses depois, sair dali um de nós…é obra.
 
 
Pensar que começamos por nada conseguir controlar, nenhum músculo, a fala, dependentes de alguém que nos ensine e ajude, e que o mais certo é acabarmos assim é…estranho.

Constatar que, dependendo da parte do mundo onde nascemos, saímos brancos, loiros, de olhos azuis, altos, ou antes de pele morena, cabelo escuro, olhos pretos, lábios grossos. E pensar que também dependendo dessa parte do mundo, cada um fala à sua maneira, da sua maneira…é do caraças.

Se isto foi inventado por alguém, esse alguém era um génio. Parece que pensou em tudo. Mas não pensou. Porque devia ter decretado uma lei, uma regra impossível de falhar: ninguém podia morrer antes de viver tudo o que há para viver.

Morre-se demasiado antes do tempo. Aos poucos. De repente. Por isto ou por aquilo. Mas tantas vezes antes do tempo. E isso não devia ser permitido.

Porque só se devia morrer quando já não houvesse nada para aprender ou ensinar. E, para isso acontecer, é preciso andar por cá muitos anos.

18 de junho de 2013

Dias de praia e bolas de berlim

Este fim-de-semana fomos até à praia. Estava um vento frio que gelava.

Mesmo assim não ficámos na esplanada. Preferimos ir lá para baixo, para os chapéus. Para perto do mar.

Ninguém à frente. Ninguém ao lado. Praia quase vazia. Gosto de ver as marcas das patas das gaivotas na areia. Ninguém, depois delas, passou por ali.

O mar estava picado. Na Costa há dias assim.

Sem me aperceber, deixei-me levar por aquele cenário. O som das ondas a bater na areia e o cheiro do mar sempre me embalaram.

Andei anos para trás e lembrei-me dos nossos dias de praia, quando eramos miúdas.

No início íamos para onde a mãe queria. Depois fomos crescendo e...continuámos a ir para onde a mãe queria. Mas, vá, pelo menos já íamos contrariadas.

Nessa altura ainda era possível encontrar praias desertas. Parávamos o carro no fim da estrada da praia da Fonte da Telha e andávamos um bom bocado a pé. Queríamos uma praia só para nós. Queríamos é como quem diz…queria a nossa mãe! Porque eu e a mana preferíamos mesmo a confusão das praias da moda. Mas como ainda não tínhamos voto na matéria, nada feito.

Naquela praia havia uma fonte de argila, onde nos besuntávamos de alto a baixo, e assim andávamos um tempão, a brincar enroladas pela areia. Naquela praia perdemos vários relógios à beira-mar. Aliás, sempre que a nossa mãe nos via de rabo para o ar, aflitas, com a água pelos tornozelos, já sabia. Menos um relógio. Foi assim que perdi o meu Pop Swatch preferido, preto às bolinhas brancas.

Mais tarde, rendidas ao facto de termos mesmo que gramar com aquele lugar, optámos por começar a aproveitar o que de bom ele nos proporcionava: jovens surfistas. E assim arranjámos dois, um para cada uma.
 
Devíamos ter uns 12 ou 13 anos. O Miguel e o Bruno. Foram os nossos primeiros namorados. O Miguel era o da mana. Lindo. Parecido com o James Dean. O Bruno era o meu. Magrelas mas com uma cara gira. Sardenta. Surfistas, que era o máximo naquela época. Ah e, claro, os dois de cabelo loiro. Natural mas ajudado pelo wax que esfregavam nele.

Do Miguel nunca mais ouvimos falar. Já do Bruno, encontrámo-nos várias vezes, anos depois, entretanto casado, com filhos. Continuava giro, sardento, mas menos magrelas.

Naquelas idades ainda não pensávamos em dietas e todos os dias comíamos uma bola de berlim. Já conhecíamos a “música” que a senhora que as vendia entoava lá no fundo: “há bola, há pão com chouriço, há merenda!”. Assim que a ouvíamos, pedíamos dinheiro à mãe e púnhamo-nos em sentido. Venha ela.
 
 
Aquela mulher sempre me fascinou. De raça negra, sempre demasiado vestida para os dias de calor, sempre de branco imaculado, com uma caixa equilibrada no alto da cabeça. No ombro, uma mala cheia de gelados e bebidas. Numa das mãos, uma mesinha fechada.
 
Passava os dias para trás e para a frente, ziguezagueando por entre os chapéus-de-sol coloridos enfiados na areia seca. Parava de dois em dois minutos para vender o que levava. Era cansativo mas nunca vi uma expressão de desagrado na cara dela.
 
Assim que montava a mesinha, e em cima dela pousava a caixa dos bolos, era uma questão de segundos até que dezenas de pessoas a rodeavam. Muitas crianças atrás de bolos e gelados mas, acima de tudo, das suas bolas de Berlim.

Um dia percebi que aquilo era um negócio familiar. Umas vezes passava ela, outras a irmã, outras ainda o marido. E o filho trazia os bolos no carro, que estacionava no parque da praia e onde eles iam reabastecer sempre que já tinham vendido tudo.

Durante vários Verões cruzámo-nos com aquela senhora. Acompanhou de perto os anos a passarem por nós. Já crescidas e ainda nos vendia as suas bolas de berlim. Passavam vários vendedores, mas nós esperávamos sempre por ela. E tantas vezes o fizemos, que outras tantas ela acabou por nos oferecer. Primeiro a nós e, anos mais tarde, à Carlota.

Num desses Verões achei-a mais magrinha, pálida. De um ano para o outro deixámos de a ver. Soubemos depois que lhe tinha aparecido um cancro e que tinha morrido. Foi há poucos anos. Contou-nos o marido. Ao mesmo tempo que limpava as lágrimas com as mãos deformadas de carregar as malas de refrigerantes, dos gelados e a caixa dos bolos. Tinha saudades, dizia ele. A partir daí, nunca mais vestiu outra cor que não o preto.

Tinha umas as unhas dos pés enormes, curvadas. Por alguma falta de cuidado, é certo, mas claramente massacradas por anos naquela vida tão dura. Eu sempre odiei pés. E os dele tantas vezes me afastaram. Mas os olhos verdes esmeralda enterneciam-me. E voltava a aproximar-me. Deixámos de olhar para os pés, deixámos de ligar. Preferiamos olhar-lhe para os olhos.

Hoje continua a ser assim. Hoje ainda é a ele que compramos as nossas bolas de berlim. São as melhores. E o ritual mantém-se: sempre que o ouvimos lá ao fundo, pegamos nas carteiras, damos dinheiro à Carlota, que corre ao seu encontro. Recebe-a sempre com um sorriso. Um mesmo sorriso com que a mulher nos recebia quando tínhamos a idade dela. Conhece-a desde pequenina. Conhece-nos desde pequeninas.

Distinguimos o canto dele à distância. Porque manteve o da mulher. Quando ouvimos o “há bola, há pão com chouriço, há merenda!”, se fecharmos os olhos, viajamos no tempo e voltamos a ser crianças. Besuntadas de argila, a brincar à beira-mar, nas praias ainda desertas da Fonte da Telha.
 
 

12 de junho de 2013

O que é isso de ser diferente?

Nestes últimos dias muito se tem falado de diferença. Ou antes, de preconceito.

Do jovem negro que foi morto à porta da escola, da coadopção de crianças por casais homossexuais.

E isto lembrou-me uma história que me aconteceu recentemente e que quero partilhar convosco.

Num destes dias, quando voltei para casa depois do trabalho, a Carlota já tinha jantado e estava à minha espera. Depois do beijo de olá começou a desbobinar as novidades da escola. Percebi que ia demorar e disse “espera, vem com a tia para o quarto porque, enquanto me contas, a tia vai-se despindo.”

Esparramou-se em cima da minha cama, observou-me durante algum tempo em silêncio. E de repente disparou “não te importas de não andar?”. Respondi “Querida, claro que preferia andar, mas a tia já está habituada e é feliz assim…sabes disso, não sabes?”. “Sei”, respondeu. Nisto saltou da cama, deu-me um abraço apertado e segredou-me ao ouvido “também ficas a saber que gosto muito mais de ti assim do que se andasses, percebeste? És uma tia muito fixe”. Engoli em seco e apertei-a.

Antes da Carlota nascer, a minha mãe dizia que nos sonhos lhe aparecia uma miúda linda, cheia de caracóis loiros. Já eu pedia uma miúda esperta e com um feitio parecido com o meu.

Certo é que alguém nos ouviu. Saiu-nos uma miúda gira, de cabelo loiro desalinhado, espertalhona, cheia de energia, meiga. E torta. Canária, portanto.

Lembro-me que tivemos que esperar alguns meses até lhe conseguirmos prender um raio de um gancho ao cabelo, porque nasceu careca e assim se manteve durante bastante tempo. Quando finalmente lhe cresceu o primeiro caracol, a luta passou a ser convencê-la a manter os ganchos no cabelo mais que 5 minutos. Com o tempo, lá conseguimos.

Desde muito cedo que tive a sorte de poder participar na educação da Carlota. E tratar dela era a parte que mais encantava. Primeiro porque era a filha da minha irmã, metade de mim, depois porque era uma enorme prova de confiança da sua parte deixar a filha bebé com uma pessoa como eu que, quer queiramos quer não, tinha uma limitação. E sei que, sempre que a deixava comigo, ficava 100% descansada.

Mas rapidamente me habituei a cuidar da Carlota, mesmo com esta limitação. Primeiro com a ajuda da minha mãe, mais tarde já sozinha. Não fazia de uma maneira, fazia de outra. À minha maneira. Uma das coisas que mais gostava era sentar-se ao meu colo, virada para a frente, amarrada a mim por um lenço a fazer de cinto de segurança. E assim passeávamos pela cozinha, e assim eu aproveitava para lhe preparar o jantar.

Depois passava-a para a cadeirinha, dava-lhe a sopa, a “papa boa” (o prato principal), a fruta. Sim, também cantava, fazia palhaçadas, o avião, isso tudo.

E porque a cadeira da papa tinha rodas, empurrava-a pela casa fora. O que ela se ria… Às vezes chegava a levá-la assim até à minha casa de banho onde, enquanto eu secava o meu cabelo, ela brincava com os bonecos que levava consigo. Quando olhava para trás, já dormia profundamente…Uma delícia.

Mas, mesmo sendo muito pequena (2 ou 3 anos), sempre senti que a Carlota comigo sabia que precisava de ajudar. Ou, pelo menos, não dificultar. E não me lembro de nenhuma birra.
 
 
 

Mas esta forma de estar, esta percepção de que a tia precisava de mais ajuda, notou-se mais ainda à medida que foi crescendo. E tenho a certeza que o facto de ter crescido comigo por perto a despertou para perceber que há pessoas com necessidades diferentes, mas que não são nem melhores nem piores que as outras.

E a prova veio com o tempo. No infantário onde andava, tinha um coleguinha de cadeira de rodas, com uma deficiência profunda. Um dia, percebendo que esse colega se aproveitava desse facto para não fazer um jogo com os outros miúdos, decidiu interferir. Levantou-se e, de mão na anca disse “olha, ficas a saber que tens que fazer o que nós fazemos porque não és diferente. Eu tenho uma tia lá em casa que faz TUDO! Até se pinta!”. Até se pinta…Pelo amor da santa! Ora eu fazia tudo, banho, jantar, tratar, tudo, e ela lembra-se da pintura!
 
Foi a (maravilhosa) forma que ela encontrou de explicar ao colega que ele não era diferente dos outros. Porque, no exemplo que tinha em casa, a Carlota nunca sentia essa diferença.

Lembro-me que quando era pequena e andava comigo na rua, deitava a língua de fora a todos os que ficavam especados a olhar. Hoje já não liga tanto mas, rata, olha para mim de lado para perceber se eu também estou a vê-los. Se estou, trocamos um olhar cúmplice, piscamos o olho uma à outra, e seguimos.

Para a Carlota não há isto de "ser diferente". A Carlota não fica a olhar para um negro. Gordo é igual a magro. Rico é igual a pobre. Ter uma deficiência ou não, so what? Ser gay não é ser anormal. Um anão “é tão querido…!”. “Porque o importante é o que está lá dentro”, diz ela do alto dos seus 9 anos.

Para a Carlota não existe preconceito. E espero sinceramente que, o facto de ter crescido comigo por perto, juntamente com a educação que lhe tem sido dada, tenha contribuído para que seja como é.

E se for sempre assim, vou ser uma tia ainda mais babada. Ok, ok, se é que isso é possível...

10 de junho de 2013

Obrigada amor da tia.

Hoje, sem razão nenhuma em especial, lembrei-me do período pós septicémia, já em casa. Safa, mas ainda com muito para recuperar. Acamada.

Não podia sentar-me na cadeira porque a cirurgia que me tinha retirado a cabeça do fémur, entretanto destruída por uma bactéria, ainda estava fresquinha.

Durante o dia via televisão, lia e controlava como podia o trabalho à distância, via computador.

Mas ao fim da tarde, quando a Carlota chegava do infantário, o meu dia ganhava outro sentido. Aí estava ela, feliz, barulhenta. Entrava no meu quarto a rir, dava-me um beijo, sentava-se no chão, ao lado da minha cama. E ali ficava a brincar.

Começava por olhar para a aparelhagem que estava em cima da minha mesa-de-cabeceira e dizia “Muca, muca!”. Queria ouvir música.

“Olha a bola Manel”, “Atirei o pau ao gato”, “O balão do João”. E todas cantadas por ela, à maneira dela, que me derretia. “Oiá bóia Maneli” era a minha preferida.

Quando me via no computador dizia “cookie monster”. Era altura do site da Rua Sésamo e de jogar os jogos do Monstro das Bolachas. O monstro falava com a sua voz cavernosa e ela partia-se toda em gargalhadas. Maravilhosas gargalhadas que espero lembrar-me para sempre.
 

Outras vezes pegava no telefone fixo e simulava uma conversa com alguém. Digo “com alguém” porque nunca percebi uma palavra. E, claro, era sempre a refilar com esse alguém, não tivesse ela a quem sair.

Não podia ver uma caixa de creme Nivea. E como sabia que tinha sempre uma no balcão da casa de banho, ia lá de fininho, trazia-a para perto de mim e dava-ma para a mão. Queria que lhe pusesse uma noz de creme na ponta do nariz.”Tia, no naís”, dizia-me a apontar com o dedo gordo e a rir. Mentira. Queria era que eu a enchesse de creme. Cara e mãos. E, claro, eu enchia, e ela a mim. Mais uma vez, vinha dali aquela gargalhada encantadora. Depois enfiava-se debaixo do meu edredon, tapava a cabeça e dizia “tapa, tá piu!”. Está frio, dizia ela…

Foi uma das melhores fases da Carlota. Era Verão, ela andava coradinha do sol, cabelo cheio de caracóis loiros, sempre maravilhosamente desalinhados. Simplesmente irresistível...E sempre com a chucha agarrada a um lenço e a fralda atrás. “Chucha e a fauda”, como ela dizia.

Foi uma das fases mais difíceis da minha recuperação. Mas aqueles fins de tarde quentes, na companhia da Carlota, sempre no meu quarto, que durante um longo período de tempo foi o quarto das brincadeiras dela, foram inesquecíveis. De bons. Sabia que estava ali uma amiga para sempre.

Obrigada, amor da tia. Não é por seres um bocadinho minha, mas és um espectáculo!

8 de junho de 2013

Saúde e Amigos. What else?

"A todos os que sofrem e estão sós, dai sempre um sorriso de alegria. Não lhes proporciones apenas os vossos cuidados, mas também o vosso coração."

Madre Teresa de Calcutá

Passei a semana no hospital a acompanhar a minha mãe numa cirurgia.

Garcia de Orta. Conheço aqueles corredores como as palmas das minhas mãos. Sei como chegar ao bloco operatório sem ser pelo caminho que todos fazem. Sei onde estão as máquinas de café usadas pelo pessoal do hospital. Sei como chegar até à farmácia. Sei andar nos elevadores de serviço. Sei entrar nas urgências sem ter que passar pelo segurança. Aprendi isto tudo durante os meses em que estive lá internada.
Foram muitas as vezes que tive que sair do quarto, sempre na cama, para viajar por aqueles caminhos secundários até chegar às salas onde me esperavam técnicos de todos os tipos de exame. Desde RX, Ecografia, passando pela TAC, Ressonância Nuclear Magnética, até à complexa Cintigrafia Ósseas. Papei todos.

Aprendi todas as rotinas. Sabia a que horas me davam a última medicação do dia e a primeira da manhã. Sabia as horas das mudanças de turno. Sabia quando morria alguém no serviço. O que não via com os olhos, aprendi a sentir com o coração.
Naquele dia cheguei à urgência do hospital com febre e mal disposta. E com pouco mais de 40 quilos. Levava vestidas umas calças de ganga e o camisolão de riscas que costumava usar em casa. Não me apeteceu vestir outro quando saí.

Pedimos uma maca. Precisava de me deitar. Fui atendida muito rapidamente. Fizeram-me análises. Esperei, sempre com a minha mãe ao meu lado.
Enquanto esperava, lembro-me de ter passado um polícia, que estava ali a acompanhar alguém que tinha ficado ferido num assalto . Olhou para mim, viu-me enfiada debaixo do lençol, só com a cabeça de fora. E a chorar. Parou e disse-me “uma cara tão linda e a chorar…? Isso não pode ser…” Sorri-lhe com esforço. Sentia-me demasiado em baixo para mais que isso.

Vieram as análises e com elas o Dr. Nuno. Aproximou-se da minha maca, pegou-me na mão, olhou para a minha mãe e disse “a Marta está com os indicadores de infecção muito altos e vai ter que ficar connosco para conseguirmos perceber de onde vem disto. A ferida que tem na nádega é uma hipótese e temos mesmo que debelar esta infecção.” Foi nesta altura que aprendi o que era a Proteína C Reactiva.
Chorei mais um bocadinho, mas sentia-me tão mal que tudo o que queria era que me ajudassem a sair daquela situação. “Sim, eu fico.” disse eu.

Subi ao piso 4, Cirurgia II. Fiquei no primeiro quarto à direita, na cama encostada à janela. Foi a minha casa nos 2 meses seguintes. Até que me passaram para o quarto 27. Isolado. Onde ficam os “infectados”. Os que podem não sobreviver. Perguntaram-me se me importava de estar sozinha. Respondi que não, que preferia. Não por estar triste, apenas porque não gostava mesmo de partilhar aquele espaço. Que, por esta altura era o mesmo que partilhar toda a minha intimidade, uma vez que não saía da cama para nada. Mesmo.
Tive dias em que chorei como uma condenada. Mas a verdade é que tive outros em que me ri que nem uma perdida. Quando tive fome, comi sardinhas assadas, bitoques, pregos no pão. Caracóis e McDonald`s. Mas no início tive fome poucas vezes.

Durante o dia a febre cedia, mas ao fim da tarde, voltava a atacar. Mau sinal.
Lembro-me de raramente estar sozinha, de ter quase sempre a companhia de uma auxiliar, uma enfermeira, um médico. Ou de todos ao mesmo tempo. Não para me tratarem, mas porque começávamos a conversar e perdíamos o tempo. Enquanto ali estive internada, fiz amizades para a vida.

Lembro-me de um dos médicos me pedir para ir falar com a doente do quarto ao lado. Para a tentar animar. Uma miúda de pouco mais que 15 anos que, depois de uma infecção, teve que cortar partes dos membros, superiores e inferiores. Quase não falava com ninguém. Porque havia de falar comigo? Mas falou. Pouco, quase nada sobre o que lhe tinha acontecido, mas falou.
Anos mais tarde vi-a com o pai, já com próteses, feliz, no paredão da Costa, a andar. Uma vencedora. Chamava-se Carla.

No dia em que finalmente tive alta, depois de tantos meses, apenas com semanas de intervalo, chorei. Porque deixava ali as pessoas que me devolveram a vida. À vida. Porque tinha medo de sair de perto delas e de me sentir malde novo.
Elas também choraram. Mas também de felicidade, penso. Afinal eu tinha entrado ali a 18 de Janeiro, a dar as últimas, e agora estava a sair de lá ainda com um longo caminho a percorrer mas, finalmente, com a esperança de uma vida pela frente.

Esta semana voltei passar à porta do quarto 27. E a encontrar estas pessoas. Pessoas que passaram a fazer parte da minha vida. Pessoas que, mais uma vez, me ajudaram. Que me receberam com um abraço. Como aquele que me deram quando me viram sair. Com a saúde que elas me devolveram. Com os seus cuidados médicos, mas também com o carinho diário.
Por muitos anos que viva, e que fique claro que tenciono viver muitos, não vou esquecer o que sofri naquele quarto, naqueles corredores. Mas, mais do que os maus momentos, vou sempre preferir agarrar-me aos bons e a tudo o que aprendi ali. Do que ganhei. Que não foi pouco. Saúde e amigos. Afinal, o que é realmente importante.

2 de junho de 2013

"O rato que tem um só buraco não tarda a ser apanhado."

Há uns dias, em conversa com alguém da minha empresa, falávamos de sonhos. De ir atrás deles.

Esse alguém perguntava-me se eu era feliz no meu trabalho. Disse-lhe que sim. Mas que não tinha sido para aquilo que tinha estudado. Estava ali por mero acaso.

Perguntou-me “e estudaste para quê?”. “Para trabalhar em televisão”, respondi.

“E porque não seguiste o teu sonho?”. Respondi “a vida levou-me por este caminho, aceitei o desafio, comecei a ganhar algum dinheiro, necessário na altura, e fui-me deixando ir. Quando dei por mim, já não dava para voltar para trás.”

Mas às vezes penso “e será que não dava mesmo?”. Depois passo à frente.

Em miúda não fui diferente das outras crianças da minha idade. Quis ser hospedeira. Astronauta. Depois veterinária. Mas cedo decidi que o que queria mesmo era ser jornalista. De Televisão. E, quando surgiu, da SIC.

Era com aquele canal que me identificava. Com a Informação. E também visualmente. Sabia, tinha a certeza que ali eu ia ser feliz.

Mas a meio do caminho, um dia, na praia, uma amiga pergunta-me se eu estava interessada em ir a uma entrevista na empresa onde trabalhava, para a função de assessora de imprensa. Perguntei “isso não é para ministros?”, e ri-me. Mas fui.

Nesse dia pintei as unhas e vesti uma camisa da minha mãe. Cinzenta com riscas brancas. Nunca mais me esqueço. Estava-me larga e, por isso, tive que a prender debaixo do rabo.

Quando cheguei fui encaminhada por essa minha amiga para uma sala. “Ficas aqui que eu vou chamar a pessoa que te vai entrevistar.”

Quando ele entra na sala, vejo um homem com cerca de 40 anos, bom aspecto. Sentou-se e começou a fazer-me perguntas. Entre elas “percebe de computadores, interessa-se por esta área”. Pensei “estou frita! Nem aguento o Pac Man, quanto mais gostar disto…!” Mas respondi “nunca me debrucei sobre este tema, confesso que não sou muito sensível a tecnologia, mas aprendo rápido! Para além disso gosto de escrever e, se o fizer de uma forma que eu perceba, vos garanto que todos os jornalistas vão perceber o que aqui se faz”.
 

 
Não estava nervosa. Ao contrário da minha amiga, que numa hora bebeu todas as garrafas de água que estavam em cima da mesa…

Explicaram-me a função, o objectivo da função e eu disse “se é para falar com jornalistas, se é preciso à vontade, isso sim, é comigo. Acho que me safo bem porque não me calo, falo pelos cotovelos...” E rimo-nos.
 
No fim da conversa, o entrevistador perguntou-me “quando pode começar?”. Apanhou-me de surpresa porque, podia não perceber nada de entrevistas de emprego, mas sabia que normalmente nos mandavam para casa e só depois nos contactavam com uma resposta. Mas ele disse “não vamos procurar mais. Parece-meque encontrámos a pessoa certa. Vamos experimentar?”. “Sim, vamos, se correr mal, volto à minha vida”, respondi com um sorriso despreocupado. Mas com curiosidade em perceber se ia estar à altura.

E assim fiquei na empresa onde estou há 14 anos. Cresci com ela, e ela comigo.

O outro sonho, o da televisão, passou para segundo plano. Guardei-o numa gaveta.

Continuei, porém, atenta a tudo o que se fazia naquele canal. Até hoje. Sempre que faz anos, sempre que muda de cenário, sempre que um dos jornalistas faz uma reportagem inovadora, original, o meu coração acelera. É como se fosse um bocadinho meu. Confesso.

Tenho hoje amigos ex-colegas em todos os canais. Mas, que me desculpem, aquele continua a ser O canal.

Entretanto, a pessoa com quem falei dos sonhos, tornou-se num bom exemplo. Seguiu o seu e tem hoje um cargo de topo na minha empresa. Começou devagarinho, foi ganhando cada vez mais responsabilidade. E, acreditem, chegou longe.

Hoje posso dizer que o meu coração tem dois amores. O que faço hoje e o que não fiz há uns anos.

Por muito que por vezes dê por mim a pensar “e se tivesse antes ido por ali?”, sou feliz. E, porque quem ama de verdade fica feliz pelo outro, fico ainda mais quando vejo o meu segundo amor a fazer um bom trabalho.

A verdade é que passamos demasiado tempo na vida…a planear a vida. E, enquanto estamos distraídos a controlar tudo, prever tudo, corremos o risco de estar a deixar escapar por entre os dedos outros caminhos que também nos podem fazer felizes. Contra mim falo.
 
Ter sonhos é óptimo, nunca devemos deixar de sonhar. Mas, para isto ser minimamente interessante, vale a pena acreditar que a vida tem reservadas para nós muitas surpresas.  

Afinal, como já li algures, “as coisas boas vem com o tempo. As melhores, de repente.”

1 de junho de 2013

Um dia de cada vez.

Há dias em que valem por uma montanha deles. Que devemos recordar…e saborear cada minuto.

Bem sei que deviam ser todos assim mas sabemos que isso não acontece sempre.

Mas o dia de hoje foi bom.

Para começar acordei sem as minhas famosas enxaquecas, que me dão náuseas, depois quebra total e no, fim, cabo dos nervos. Fico inutilizável. Imprópria para consumo. Nestes dias não presto p-a-r-a n-a-d-i-n-h-a.

Depois o meu pinhal estava lindo. Metade ao sol, metade à sombra. Metade verde alface, metade verde-escuro.

Os meus amigos corvos vieram brindar-me. Fartaram-se se cantar. Para mim.

Desta vez ouvi um piar novo. Tentei perceber de onde vinha mas o pássaro estava escondido nas árvores. Vou estar atenta porque quero saber se é tão lindo como canta.

O gato coxo lá estava. Passando por baixo dos carros estacionados no parque, rasteirinho, um a um. Até ao canteiro onde a senhora platinada, que desce todos os dias do autocarro à minha porta, lhe deixa água e comida.

Passam poucos minutos e vejo o gato amarelo, companheiro de aventura do coxo, a aproximar-se devagarinho. Amigos, amigos, mas cada um come do seu. Ali há regras. Ali o amarelo não pica. E ele sabe. Por isso, fica a uns palmos, e espera que ele acabe. Depois enfiam-se os dois no pinhal. Deixo de os ver.
 
Toca-me o telemóvel e vejo no visor o nome de uma amiga que gosto muito. Daquelas de quem podemos estar algum tempo afastada, mas que liga sempre no momento certo. Falamos a correr mas deixamos a certeza de que estamos ali para o que der e vier. "Beijinhos, tenho que desligar, depois falamos!"

Volto para dentro e para o computador. Comprometi-me com a Sónia dar-lhe uma entrevista para o jornal onde trabalha e estava quase na hora. Rubrica “Lutadores”. Quando me pediu pensei: bom, lá vou eu repetir a minha história. Mas como já não o faço há algum tempo, aceito. Combinamos falar via skype.

Toca o “telefone”, atendo com vídeo. Do outro lado, uma cara de quem apenas conheço o blog “Cocó na Fralda”, que vejo de vez em quando. É giro quando ouvimos a voz e vemos a cara de quem conhecemos apenas o nome e os textos.

Começamos a falar…e o tempo voa.

Esperava uma entrevista igual às outras mas não. Foi divertida e fez-me reviver alguns momentos que guardo na memória. Uns bons, outros nem por isso. Mas todos importantes para ser o que sou hoje.
 
Quando estamos à conversa oiço do outro lado “Marta, dá-me um bocadinho que estão a bater-me à porta. Não saias daí.” Não saí. Oiço uma mãe a receber um filho, que lhe conta do exame da escola. E lembro-me da Carlota, que faz exactamente o mesmo assim que entra em casa depois de um dia de teste. Percebo depois que era suposto a Sónia ter ido buscar o filho à carrinha e que entre palavras se esquece do tempo…e do filho!

Hora e meia depois de muita conversa, e ainda mais gargalhadas, despedimo-nos. Mas prometemos voltar a falar porque “o espaço para esta rubrica é muito pequeno para tanta coisa e vou querer fazer algo mais com o material que me deste”. Com muito prazer, Sónia.

Volto ao trabalho, envio mais uns emails. Preparo o trabalho da semana para poder acompanhar mais de perto a cirurgia da minha mãe na segunda-feira.  
 
Faço-lhe um poema. Nunca tinha feito nenhum. Não está brilhante mas está como me saiu. Do coração. E percebo mais uma vez que é tão mais fácil escrever o que sinto. Sai-me melhor…

Está tudo preparado para mais esta prova. Mas andava-me a irritar a ideia dela estar no hospital sem poder ter acesso ao email e ao Facebook – que aprendeu a gostar e sempre que pode espreita – quando eu me venho embora.

Lembro-me do meu tablet, do meu querido tablet. Que a minha mãe “achava giro mas para ti”. Ponho-lhe um cartão de dados, configuro-lhe o acesso à conta de Facebook, o email do trabalho e ensino-a a mexer naquilo. Já passaram 2h e ainda não o largou. Já lhe mexe como eu. E assim fico descansada porque vai poder estar mais distraída quando eu não estiver por perto.

Abro o meu Facebook e deparo-me com uma foto da Carlota postada pela mãe, a minha irmã. Amanhã é o dia da criança. E a nossa vai estar ainda mais feliz porque sabe que tem uma surpresa.

A noite já caiu e o dia está quase acabar. Olho para trás, e sabe-me bem recordá-lo.

O trabalho correu bem. Conheci uma pessoa que me pareceu especial. Vi a minha mãe mais animada. E amanhã é o dia de uma das pessoas mais importantes da minha vida.

Foi um dia bom. Os próximos também vão ser. E vividos um de cada vez.

Há dias cheios de vírgulas. Outros cheios de reticências. Alguns com parêntesis a mais. Muitos com pontos finais. Mas hoje o meu acabou com um granda ponto de exclamação!