29 de junho de 2017

Para ti, Paula

Os dias que termino na Gare costumam ser uma espécie de injeção de energia que depois uso para aguentar os que se seguem, até voltar a ser 4ª feira, e regressar lá.

Mas ontem não foi assim. Cheguei cedo, encontrei a Mariana pelo caminho e fizemos juntas os últimos metros até ao ponto de encontro habitual.

Assim que me viu, o Chico, arrumador de carros que anda por ali desde que me lembro, veio ter comigo e disse-me “Então, Marta? Não me ligou para a ir ajudar…”. Ele sabe que o percurso por baixo da Gare, depois de sair do centro comercial, é demasiado inclinado, demasiado longo, e que me custa fazê-lo. No dia em que se apercebeu disso, deu-me o seu número de telefone e pediu-me que lhe ligasse antes de o iniciar. “Desço as escadas num instante e vou lá empurrar-lhe a cadeira, na boa, pá.” E sempre que lhe liguei foi. Mas ontem encontrei a Mariana, não liguei ao Chico e ele estranhou.

Quando chegámos, já lá estavam alguns dos nossos amigos de rua. Em fila, para receberem a refeição quente, o pão, a fruta, o bolo e o chá. E, quando é possível, a roupa.

Enquanto esperávamos que chegassem todos os voluntários, fiquei a conversar com os sem-abrigo que estavam mais próximos. E, nisto, “A Paula morreu...”, disse uma senhora que estava no início da fila.

De repente, fiquei só eu e aquela mulher. Como se todos os outros tivessem desaparecido. Nos minutos que se seguiram, tive a sensação de que a ouvia mas apenas ao longe.

 “Morreu? Mas morreu como!?”, perguntei eu, surpreendida.

 “Foi atropelada ali para cima, morreu na hora.”, respondeu.

Ainda a ouvi a dizer que a notícia estava na internet e que se via uma foto com uma ambulância ao lado de um corpo tapado com um lençol branco. Mas naquele momento, a minha cabeça focou-se apenas nas tantas vezes que eu e a Paula tínhamos ficado a conversar, antes ou depois da distribuição de refeições das 4ªs feiras.

Sabia pouco da história dela. Apenas que tinha perto de 45 anos e que se tinha juntado com o Francisco, um sem-abrigo que eu conhecia desde o meu 1º dia na Gare. Com eles sempre, a Funny, uma rafeira grande, de pêlo preto espetado, magrelas mas muito bem tratada. Parecia-me uma cadela feliz. E eu, claro, nunca lhe resistia.

O nosso amor pelos animais unia-nos mais do que outro tema qualquer, por isso era da Funny que falávamos. Contava-me como gostava dela, que era a sua maior companheira. Isto enquanto ela brincava com as garrafas de água, refastelada no pedal da minha cadeira.


Um dia a Paula apareceu com o lábio inchado e todo cozido. Tinha dificuldade em falar e disse-me apenas que tinha caído. Soube ontem que tinha sido por causa de uma bebedeira que tinha apanhado. Mais uma. A última, até àquele dia em que atravessou a estrada num sítio proibido e foi atropelada por um carro que não a viu. “Foi para os Santos, bebeu demais outra vez, passou pelo buraco da rede e decidiu atravessar ali a estrada.” alguém comentou. Já não bebia há meses, achava que estava a conseguir controlar o vício que a andava a matar aos poucos.

Voltei a concentrar-me na voz da colega de rua da Paula. “O Francisco ia com ela e disse-me que as suas últimas palavras foram para mim. Pediu para eu e o meu marido a perdoarmos.”. Não faço ideia do que poderia ter acontecido entre elas, mas perguntei “E perdoou?”. Respondeu-me que sim, e naquela altura senti um nó na garganta. Mas senti também alívio por perceber que o último pedido da Paula tinha sido atendido. 

O Francisco estava do outro lado da rua, com a Funny. Quando me viu aproximou-se, olhou-me nos olhos e disse-me “Morreu…e agora fiquei sozinho. Não tenho nada.”. Agarrou a Funny pela trela e afastou-se para o fim da fila.

Fiquei gelada, sem qualquer capacidade de reação e rezei para que não começasse a chorar.

A rua é muito cruel. As pessoas que vão ali ter connosco estão quase sempre magoadas, revoltadas e desiludidas. Com a vida e, tantas vezes, com elas próprias. Porque falharam e não conseguiram dar a volta. Depois disso, vem a vergonha, o não suportar encarar que estão naquela realidade. E eis que o álcool e a droga se instalam, como forma de esquecer tudo, pelo menos por momentos.

Uns resistem a tudo isto e conseguem regressar à sociedade. Outros nem tentam. Perderam a esperança e deixam-se estar por ali. Na rua, ao frio e ao calor. À espera. E nós, por muito pouco que levemos, nunca lhes faltamos.

Como disse aquela mulher que estava na fila: “Era boa miúda, foi descansar...”. 

(Para ti, Paula)

23 de junho de 2017

Isto é sobre viver

(texto originalmente escrito para o portal O Tuga com o título Ser Feliz é Uma Escolha)
Já contei a minha história muitas vezes e em fóruns diversos. Já tive duas horas para o fazer, já tive menos de uma, já tive dezassete minutos, o recorde foi conta-la em dez. E, todas as vezes que a contei, nunca o consegui fazer sem ser pelo seu lado positivo.
Fiquei de cadeira de rodas com 15 anos. Era uma adolescente feliz, cheia de planos. Tinha tido uma infância fantástica, marcada pela liberdade de quem vivia no centro da cidade, mas que desde muito cedo pôde fugir dela ao fim de semana, para uma casa perto da praia.
Da outra margem do Tejo ficava a Caparica. Era lá que tínhamos a maioria dos nossos amigos. Era lá que saltávamos os muros dos vizinhos para lhes roubar a fruta dos quintais. Era lá que gastávamos os 1000 escudos da semanada em gelados ou campeonatos de matraquilhos e snooker. Era lá que os meus pais nos deixavam passar o dia a andar de bicicleta pelas estradas de terra batida que se enchiam de poças lamacentas quando chovia e era também era lá que nos deixavam ficar na rua até tarde.
Já a semana era passada em Lisboa, entre o Bairro de Alvalade e a Avenida de Roma. Um dia, sozinha em casa, enquanto tomava um duche para mais um dia de escola, senti-me zonza, sentei-me, desmaiei ainda lá dentro e entrei em coma. Quando acordei, 5 horas depois, já no hospital, disse “estou bem mas não sinto as pernas”. Estava paraplégica. Tinha 15 anos e o meu cérebro tinha perdido a capacidade de comandar a parte inferior do meu corpo. Tinha deixado de poder andar.
Marta Guimarães Canário
 Os anos que se seguiram foram de tratamentos, dentro e fora de Portugal. Mas também de regresso à normalidade, numa vida que, a partir daquele momento, passou a ser vivida sentada numa cadeira.
Quando, depois de 4 anos a fazer de tudo para voltar a andar decidi largar os tratamentos (que, já agora, não traziam resultados), era uma jovem de quase 20 anos feliz, que continuava cheia de planos e que se sentia capaz de conquistar o mundo. A cadeira estava lá, mas o único papel que eu deixava que tivesse na minha vida era o secundário: apenas uma forma de me deslocar. E isso era algo que eu devia a mim, claro, mas, acima de tudo, a todos os que me rodearam de carinho e de atenção durante aqueles anos, onde a família teve lugar de destaque. E a vida, essa, seguiu em frente.
Tudo decorria dentro da normalidade, até que, aos 29 anos, depois de sair de um problema simples de vesícula, mas que me tinha feito perder muito peso, fiz uma escara na nádega que infetou e se complicou. As escaras são feridas comuns em pessoas em que a mobilidade está condicionada. E, normalmente, são feridas profundas que demoram algum tempo até fecharem. Já tinha tido várias, tinha conseguido curá-las sempre, mas aquela descontrolou-se e infetou. Fui tratando dela, como já tinha feito com as outras, mas a verdade é que a deixei avançar demais e, quando dei por mim, o meu corpo debatia-se contra uma infeção generalizada – conhecida por septicémia – e já estava em risco de vida.
Voltei ao hospital, mas desta vez para uma experiência mais dolorosa: dois meses de internamento, seguido de outro, e mais um, e mais um. Passei por altos pouco altos, baixos muito baixos, dias em que achei que tinha perdido a esperança de me safar, mas outros em que me agarrei a tudo o que me restava e a todos os que me rodeavam para sobreviver. Quando olhei para trás, tinha passado 6 meses internada e mais de 2 anos entre médicos disto ou daquilo, até me voltar a sentir bem.
Estive presa por um fio mas, mais uma vez, ganhei.
Foi durante este período que percebi que também eu tinha um limite, e que, para não me deparar de novo com ele, tinha que ouvir mais o meu corpo. Prestar-lhe mais atenção.
Desde essa altura, declarei guerra às escaras. Passaram-se 12 anos, e nunca mais tive nenhuma.
O livro “Ser Feliz É Uma Escolha”, que escrevi há 1 ano, conta estas histórias, mas também conta muitas outras. Porque estas duas, por si só, não me definem. A mulher em que me tornei foi influenciada por elas, é certo, mas marcaram-me igualmente os fins de semana na Caparica, as férias grandes passadas entre Magoito e Tomar, os primeiros namorados, as saídas à noite. E, ainda, o nascimento da minha sobrinha, o amor pelos meus cães, o meu trabalho, os meus sonhos, as minhas causas e até os meus medos. Está tudo naquelas páginas.
O “Ser Feliz É Uma Escolha” é a minha vida passada em revista. São 40 anos contados na 1ª pessoa, sem filtros e apenas com um objetivo: mostrar que, apesar dos solavancos, a vida vale cada minuto.