26 de agosto de 2016

Carta (de amor) ao meu sobrinho Chico Canário.

Estás aqui ao meu lado. Ressonas como um porco. De vez em quando abres os olhos para te certificares de que não me fui embora. Espreguiças-te enquanto juntas as patas da frente. Pareces um bebé. Apetece-me apertar-te e não resisto. Baixo-me, faço-te uma festa na beiçola e dou-te um beijo no focinho. Nem abres os olhos. Respiras fundo. Confias.

Volto ao dia em que soube que ias fazer parte desta família.

Tínhamos perdido o Gaspar há 3 anos e comentávamos várias vezes que ainda não nos sentíamos com coragem para abrir as portas do nosso coração a outro cão. Mas, naquele dia, isto mudou. E tu foste o responsável.

Véspera de Natal. Entre bolos, loiças e faqueiros que só usamos em dias de festa, tocou-me o telefone. Era o Luís, colega da mana (tua mãe).

“É para te dizer que o Ricardo está neste momento a ir buscar 2 bulldogs franceses. Um é para ele, o outro é para a tua irmã. Decidimos juntar a equipa toda e oferecer-lhe um.”

(Fiquei em silêncio.) “Estou? Estás a ouvir-me?”, disse o Luís.

Quando consegui articular uma palavra, respondi: “Desculpa, mas não. Não faz nenhum sentido tomarem essa decisão sozinhos. Eu sei que a mana adorava ter um cão dessa raça, mas sabem melhor que ninguém que ela trabalha de manhã à noite, e ter um cão neste momento não vai ter apenas impacto na vida da Patrícia!”

Disse isto quase a espumar da boca. Foi a vez do Luís ficar sem saber o que dizer. E acrescentei, tentando manter-me calma e sem grandes alterações ao nível da minha voz: “Falem, sff, com a Patrícia antes de avançarem, não a surpreendam com isto. Ela falará naturalmente connosco antes de tomar uma decisão.” E, friamente, desliguei o telefone. Percebi que tinha deixado o Luís aflito, mas não podia fazer nada.

Voltei aos tachos e às panelas, mas o meu coração tinha ficado preso àquele telefonema e não ia voltar à cozinha tão cedo. Já não conseguia pensar no raio dos bolos nem no bacalhau. A minha mãe (tua avó) assistiu à conversa e ficou igualmente sem saber bem para que lado se virar.

A vontade de voltar a aumentar a família – porque é isso que, vocês, os nossos cães sempre foram – era grande mas também sabíamos que 1) a perda do Gaspar (o teu tio) ainda nos doía e 2) já nos tínhamos habituado à liberdade e despreocupação que quem não tem cães sente.

A meio da tarde a minha irmã e a Carlota (tua irmã) chegam a casa para ajudar na preparação da ceia de Natal. A Carlota foi para a sala, a Patrícia juntou-se a nós na cozinha. Ainda tentei não a olhar nos olhos mas cruzava-me sempre com os da tua avó, quase tão atrapalhada como que eu com o assunto. Somos todas demasiado transparentes, por isso foi impossível esperar que os colegas da tua mãe lhe ligassem. Expliquei o que se tinha acabado de passar, percebi que a minha opinião a deixava de rastos. Tentei ignorar mostrando firmeza. Nesta altura já a Carlota se tinha apercebido de tudo e suplicava para que aceitássemos “o presente”.


Senti que estava a perder força. “Mais firmeza, Marta, mais firmeza!” e enfiei-me (vá, escondi-me!) na casa de banho a secar o cabelo. Percebi que elas tinham ficado as 3 na sala a conversar sobre ti. 10 minutos depois entraram-me na casa de banho e voltaram a pedir-me para me juntar a elas na decisão. Desatei a chorar. Lembrei-me do Gaspar e dos 10 maravilhosos anos que vivi com ele. E, principalmente do sofrimento dos seus últimos momentos.

Mas o meu coração cedeu quando me mostraram uma fotografia tua. Mínimo, acabadinho de nascer. E lá se foi a firmeza com o caraças. Naquele momento a decisão ficou tomada. Tu irias entrar na nossa família. Mais do que isso, irias entrar na nossa família naquele momento: a minha irmã saiu disparada para te ir buscar. O teu primeiro dia nas nossas vidas seria, assim, naquela véspera de Natal. Foste “o nosso menino Jesus”.

9 meses depois fazes parte de tudo. Ganhaste uma família que voltou a reorganizar-se para que nada te faltasse.

És um companheirão. Vens connosco para todo o lado. E, se “os animais são proibidos”, continuamos à procura de um lugar onde não te resumam a um sinal redondo vermelho e branco com uma risca por cima. E, se não encontrarmos, não vamos e fica resolvido. Porque nenhum de nós alguma vez ficou para trás. E tu, Chico, agora és um de nós.

O mundo dedica-te o dia de hoje. Mas prometo-te que nós vamos dedicar-te os outros 364. Para sempre.

Um beijo da tia.


(mas vê lá se cresces e paras de me roer as pantufas, de sacar a roupa do estendal para comeres as molas, de puxar o rolo de papel higiénico para depois o comeres também, e de desatares a ladrar quando não te dão atenção)