30 de dezembro de 2016

2016 para sempre

Vai ser bom recordar 2016. Afinal, foi um dos melhores anos da minha vida.

Pela saúde que eu e os que me rodeiam tivemos. Porque abri, finalmente, o meu coração a um novo “cãopanheiro”, o Chico, que me ajudou a superar o trauma de ter perdido o Gaspar. E, em lugar de bom destaque, por ter escrito o Ser Feliz É Uma Escolha. 

Porque com ele levei mais longe aquilo em que verdadeiramente acredito: perante as adversidades, há sempre dois caminhos. Perante os desafios, podemos sempre escolher por onde seguir. E que, quando escolhemos, decidimos. E que, quando decidimos, crescemos. E que, só escolhendo e decidindo, nos tornamos seres humanos mais completos e com maior consciência de nós próprios.

Em 2016 contei a história como eu sentia que ela já merecia ser contada. Uma história sem filtros e sem vergonha de misturar o lado forte e resistente de uma miúda que deixou de andar aos 15 anos, com a fragilidade de uma mulher de 30 que se viu muito perto de perder aquilo que mais gostava: viver.


Em ambos os momentos escolhi seguir em frente. Em ambos os momentos escolhi continuar o meu caminho por sentir agarrado a ele uma missão para cumprir. Em ambos os momentos escolhi ser feliz. E se da primeira vez o fiz com um inesperado empurrão da inocência própria da idade, da segunda pesou-me a maturidade dos 30 e precisei do colo de quem me rodeou para continuar.

O Ser Feliz É Uma Escolha foi uma espécie de fecho de ciclo. Porque há uma Marta antes e outra Marta depois dele. E a que agora fecha o ano, tem mais a acrescentar ao mundo. A que agora fecha o ano, vê de uma forma mais clara o trilho que deve percorrer para chegar onde quer. E a que agora fecha o ano, está muito mais bem acompanhada para o fazer. Porque 2016 foi tão generoso ao colocar novas pessoas no meu caminho, como ao afastar outras, dando-me ainda mais certeza de que só permanece nele quem tem valor real para lhe acrescentar.

2017 trará, também por tudo isto, um desafio adicional a todos os anos que começam: ajudar-me a superar o 2016. E vou superar, porque a decisão de o fazer será sempre minha.

Bom ano e escolham. Sempre. Ser feliz.

6 de outubro de 2016

Porque não choro pelas pedras da calçada (portuguesa)

Se há coisa que me lixa é a enorme falta de solidariedade entre o ser humano e a total incapacidade de se colocar “nos pés dos outros”.

Nasci e cresci em Lisboa, no Bairro de Alvalade. Aos 15 anos, fiquei de cadeira de rodas. Dos 15 aos 25 vivi numa casa onde não entrava a minha cadeira. Mesmo. Dos 15 aos 25 andei ao colo de familiares e amigos, que nunca me deixaram para trás, só porque a minha cidade não estava preparada para me receber.

Aos 25 mudei-me para fora de Lisboa por várias razões, mas pesou muito na decisão o facto de não haver oferta de casas adaptadas para as minhas necessidades a um preço que eu conseguisse pagar. Optei pela margem sul do nosso Tejo, onde encontrei o que procurava e acabei por juntar o útil ao agradável: uma casa perto do mar que cumpre o que preciso para ser autónoma. No entanto, o meu local de trabalho continua a ser na cidade onde nasci.

Há 25 anos que não sei o que é poder fazer um passeio sozinha por Lisboa. Há 25 anos que planeio cada milímetro do que vou fazer, para não ter surpresas. Há 25 anos que me sinto cidadã de segunda, apesar de descontar e cumprir tanto ou mais que uma de primeira.

Por isso, só vou dizer isto mais uma vez: se ainda não perceberam a importância de mudar os passeios de Lisboa, é porque não querem.

A calçada portuguesa, mesmo mantida, não serve. Porque é por natureza irregular, essa irregularidade causa instabilidade, e escorrega. É perigosa para quem se desloca de cadeira, para um invisual, para uma grávida, para um carrinho de bebé, para um velhote (e sabemos que há cada vez mais…). Até para quem não tem qualquer limitação, que a única coisa que não quer é espalhar-se e partir uma perna ou torcer um pé

Qual é a parte desta realidade que não conseguem entender?

Percebam que o desporto mais radical que posso praticar não é asa delta ou rafting, mas sim sair de casa e aventurar-me a rolar nos passeios lisboetas com a minha cadeira de rodas. Percebam que quando o faço, as minhas pernas saltam do pedal que as suporta e as rodas pequenas encalham ao mais pequeno desnível. E o que é que acontece? Caio e magoo-me. Conseguem sentar-se, mesmo que mentalmente, na minha cadeira e passar por isto? Chama-se empatia e não é mais do que a maravilhosa capacidade de nos colocarmos nos sapatos dos outros, para perceber o que eles sentem. Será que só calçando os meus sapatos, neste caso só experimentando sentarem-se na minha cadeira e “ficarem” paraplégicos, vão entender verdadeiramente o tema?

E o argumento de que é um ataque ao património, à história é, no mínimo, infeliz. Porque eu também faço parte da história da minha cidade e pouco ou nada usufruo daquilo que ela tem para me oferecer. E depois, quando finalmente ganho esperança de que isso vá acontecer, aparecem-me os Velhos do Restelo. Ponho-me no lugar deles e não consigo. Porque não consigo perceber como é que se escolhe história quando está em causa a igualdade entre todos os cidadãos. Aquela pela qual eu desespero todos os dias.

Já agora, não caiam na asneira de defender apenas zonas específicas em piso liso. Não estão a incluir, estão apenas a integrar. Porque incluir significa que o passeio deve existir para todos. E integrar é destinar uma zona para quem tem necessidades diferentes das vossas. Vocês de um lado, nós, do outro. Para além de que sabemos que depois acabam todos por preferir andar no “nosso” lado, porque sentem que é mais “confortável” e menos perigoso. Enfim.

Finalmente, vejo uma cidade que se começa a preocupar com a qualidade de vida de todos (incluindo com a das pessoas com mobilidade reduzida), e há quem se insurja chamando-lhe "ditadura do betão"? Ganhem juízo. E não contem comigo para chorar pelas pedras da calçada. 





26 de agosto de 2016

Carta (de amor) ao meu sobrinho Chico Canário.

Estás aqui ao meu lado. Ressonas como um porco. De vez em quando abres os olhos para te certificares de que não me fui embora. Espreguiças-te enquanto juntas as patas da frente. Pareces um bebé. Apetece-me apertar-te e não resisto. Baixo-me, faço-te uma festa na beiçola e dou-te um beijo no focinho. Nem abres os olhos. Respiras fundo. Confias.

Volto ao dia em que soube que ias fazer parte desta família.

Tínhamos perdido o Gaspar há 3 anos e comentávamos várias vezes que ainda não nos sentíamos com coragem para abrir as portas do nosso coração a outro cão. Mas, naquele dia, isto mudou. E tu foste o responsável.

Véspera de Natal. Entre bolos, loiças e faqueiros que só usamos em dias de festa, tocou-me o telefone. Era o Luís, colega da mana (tua mãe).

“É para te dizer que o Ricardo está neste momento a ir buscar 2 bulldogs franceses. Um é para ele, o outro é para a tua irmã. Decidimos juntar a equipa toda e oferecer-lhe um.”

(Fiquei em silêncio.) “Estou? Estás a ouvir-me?”, disse o Luís.

Quando consegui articular uma palavra, respondi: “Desculpa, mas não. Não faz nenhum sentido tomarem essa decisão sozinhos. Eu sei que a mana adorava ter um cão dessa raça, mas sabem melhor que ninguém que ela trabalha de manhã à noite, e ter um cão neste momento não vai ter apenas impacto na vida da Patrícia!”

Disse isto quase a espumar da boca. Foi a vez do Luís ficar sem saber o que dizer. E acrescentei, tentando manter-me calma e sem grandes alterações ao nível da minha voz: “Falem, sff, com a Patrícia antes de avançarem, não a surpreendam com isto. Ela falará naturalmente connosco antes de tomar uma decisão.” E, friamente, desliguei o telefone. Percebi que tinha deixado o Luís aflito, mas não podia fazer nada.

Voltei aos tachos e às panelas, mas o meu coração tinha ficado preso àquele telefonema e não ia voltar à cozinha tão cedo. Já não conseguia pensar no raio dos bolos nem no bacalhau. A minha mãe (tua avó) assistiu à conversa e ficou igualmente sem saber bem para que lado se virar.

A vontade de voltar a aumentar a família – porque é isso que, vocês, os nossos cães sempre foram – era grande mas também sabíamos que 1) a perda do Gaspar (o teu tio) ainda nos doía e 2) já nos tínhamos habituado à liberdade e despreocupação que quem não tem cães sente.

A meio da tarde a minha irmã e a Carlota (tua irmã) chegam a casa para ajudar na preparação da ceia de Natal. A Carlota foi para a sala, a Patrícia juntou-se a nós na cozinha. Ainda tentei não a olhar nos olhos mas cruzava-me sempre com os da tua avó, quase tão atrapalhada como que eu com o assunto. Somos todas demasiado transparentes, por isso foi impossível esperar que os colegas da tua mãe lhe ligassem. Expliquei o que se tinha acabado de passar, percebi que a minha opinião a deixava de rastos. Tentei ignorar mostrando firmeza. Nesta altura já a Carlota se tinha apercebido de tudo e suplicava para que aceitássemos “o presente”.


Senti que estava a perder força. “Mais firmeza, Marta, mais firmeza!” e enfiei-me (vá, escondi-me!) na casa de banho a secar o cabelo. Percebi que elas tinham ficado as 3 na sala a conversar sobre ti. 10 minutos depois entraram-me na casa de banho e voltaram a pedir-me para me juntar a elas na decisão. Desatei a chorar. Lembrei-me do Gaspar e dos 10 maravilhosos anos que vivi com ele. E, principalmente do sofrimento dos seus últimos momentos.

Mas o meu coração cedeu quando me mostraram uma fotografia tua. Mínimo, acabadinho de nascer. E lá se foi a firmeza com o caraças. Naquele momento a decisão ficou tomada. Tu irias entrar na nossa família. Mais do que isso, irias entrar na nossa família naquele momento: a minha irmã saiu disparada para te ir buscar. O teu primeiro dia nas nossas vidas seria, assim, naquela véspera de Natal. Foste “o nosso menino Jesus”.

9 meses depois fazes parte de tudo. Ganhaste uma família que voltou a reorganizar-se para que nada te faltasse.

És um companheirão. Vens connosco para todo o lado. E, se “os animais são proibidos”, continuamos à procura de um lugar onde não te resumam a um sinal redondo vermelho e branco com uma risca por cima. E, se não encontrarmos, não vamos e fica resolvido. Porque nenhum de nós alguma vez ficou para trás. E tu, Chico, agora és um de nós.

O mundo dedica-te o dia de hoje. Mas prometo-te que nós vamos dedicar-te os outros 364. Para sempre.

Um beijo da tia.


(mas vê lá se cresces e paras de me roer as pantufas, de sacar a roupa do estendal para comeres as molas, de puxar o rolo de papel higiénico para depois o comeres também, e de desatares a ladrar quando não te dão atenção)

10 de julho de 2016

Pedaços de uma vida feliz

Eu tinha 11 anos e nossa a televisão a cores cabia numa pequena prateleira daquele armário da sala, um bloco de madeira que ocupava uma parede inteira da divisão principal do nosso T3, que ficava no lado direito de um 1º andar, numa das transversais da Av. da Igreja. Cheio de livros, bibelots e gavetas, era um armário branco, grande, maior ainda por eu ser pequena.

Numa dessas gavetas, o meu pai guardava duas coisas que sempre me chamaram a atenção. Um frasco com o menisco, que tinha tirado quando deixou de ser jogador de futebol, e outro cheio de moedas de 25 escudos. No primeiro nunca toquei, por me fazer impressão, no outro toquei uma vez e foi para entregar tudo a uma família de ciganos que de vez em quando nos batiam à porta a pedir alguma coisa para comer. Costumava dar-lhes pão com manteiga ou Tulicreme, daquela vez despachei o saco das moedas de 25 escudos do meu pai e acabei o dia de castigo.

Naquela altura, os relatos de futebol ouviam-se num aparelhómetro da Orion que estava enfiado nesse armário, de onde a música também nos chegava através de cartuchos. Fado e música francesa.

Se fechar os olhos, regresso a 86 e à bola vivida e sofrida pela rádio. Ao cheiro do bolo de laranja que a minha mãe fazia para o nosso lanche. À escolha da “toilette” só para ir passear o cão. Às fugidelas para o parque infantil nas traseiras dos prédios, onde me fascinava a carruagem cheia de livros para ler, logo à entrada, e onde dei as maiores baldas dos baloiços, por lhes dar balanço a mais. Aos dias em que, depois do jantar, conseguia convencer a minha mãe a deixar-me ir a correr até à loja dos doces que havia no Centro Comercial, comprar Jubileus, gomas cristalizadas da Elba ou rebuçados Diamantes da Heller.


Se fechar os olhos, regresso aos dias em que, depois das aulas, subia diretamente ao último andar do prédio para lanchar o refresco de café e o pão com geleia feito pela D. Susana, a vizinha de cima, que era também a nossa segunda avó. Vivia com a filha, solteira, a Lurdinhas, costureira de uma casa de alta-costura muito prestigiada na altura. Sempre me fascinaram as sedas, os tules, a lantejoulas, as transparências. As muitas caixas das agulhas, as linhas coloridas. As rendas, os brilhos. A perfeição, o detalhe.

Se fechar os olhos, regresso a Alvalade, à Fernando Caldeira e a 25 anos de histórias que, mais do que contar, espero conseguir sentir para sempre.


E sim, estou de volta ao Blog da Canária! Pelo menos por hoje :)