30 de julho de 2018

Parabéns, faço 20 anos.


Desta vez deixei passar a data. Mas apenas por dois dias.

28 de julho de 1998. Eu, uma pita de 23 anos, que só pensava em praia e saídas com amigos.

Já tinha 7 anos de cadeira de rodas no lombo, mas o meu mundo rolava numa boa, sem stresses e sem traumas do acidente.

Um dia, depois de torrar ao sol durante horas, fui a uma entrevista. “A minha empresa está à procura de alguém para começar a fazer a ligação com os media”, disse-me a Ana, uma amiga que trabalhava na Novabase.

“Novabase?”, perguntei. Nunca tinha ouvido falar. Na minha cabeça só havia espaço para um nome: SIC. Era o sonho de miúda. Ser jornalista e de televisão. Quando apareceu a SIC, ser jornalista de televisão e na SIC. Mais concretamente, apresentar o Jornal da Noite.

Mas fui. Vesti uma camisa da minha mãe, para não ir com pinta de quem tinha acabado de sair da praia, e lá fui.

Guess what? Falei pelos cotovelos, expliquei que não percebia da poda, mas que era uma miúda esperta e que aprendia. E que se o objetivo era ter conversa e conseguir fazer pontes, eu era a aposta certa.

Quiseram-me. Fiquei. A minha cadeira não foi tema de conversa.

Estávamos em julho de 1998 e, a partir daquele dia, passei a fazer parte de uma empresa que já tinha algum nome no mercado das Tecnologias da Informação, que contava com 200 colaboradores e que operava em alguns países fora de Portugal.

De lá para cá tudo mudou: o mundo, para começar, e a Novabase, porque sempre o acompanhou. Hoje somos mais de 2000 - ou, como diz o meu CEO, 2044, porque cada pessoa conta - e estamos espalhados por quase todos os continentes. Lá dentro sou a Marta do Marketing, mesmo sendo mais da Comunicação.  

Mas também sou a Marta que passou por tudo com a empresa. Que esteve lá quando os resultados foram bons, que se manteve quando eles não foram assim tão bons. Que conhece quem esteve antes, depois e quem está agora.

Há uns dias entrou um colega, que já tinha passado pela Novabase no início da carreira, mas que saiu atrás de outras oportunidades. Contaram-me que quando lhe disseram que ele ia ter uma reunião com o Marketing perguntou “a Marta ainda lá está?” Sim, estou.

Nestes 20 anos, encontrei pessoas que se entranharam na minha vida, que faço questão de que dela não saiam mais. Outras que saíram, porque também eu fiz questão disso.

Às vezes perguntam-me “como é que eu estás há tanto tempo na mesma empresa?”. E eu respondo “porque me sinto bem, porque me fazem sentir bem, porque sou feliz e gosto daquilo que faço.”

E acrescento que “mas mudarei, sim, se isto deixar de ser bom para todos e, principalmente, se isto deixar de ser bom para mim”. Até lá, vivemos esta espécie de romance, com altos e baixos (como todos os romances), mas em que os altos conseguem sempre superar os baixos. 

Há 4 datas que comemoro na minha vida: 21 setembro de 75, dia em que nasci, 11 de março de 91, dia em que sobrevivi a uma intoxicação por monóxido de carbono, 18 de janeiro de 2005, dia em que decidi entregar-me nas mãos dos médicos com uma septicémia grave, e este 28 de julho de 1998, dia em que entrei na Novabase.

Não sei se virão de lá mais 20 - porque a vida já me ensinou a viver mais devagar para a aproveitar o momento – mas estes já ninguém mos tira.

Parabéns a mim e, já agora, parabéns à Novabase. 😉




20 de julho de 2018

Mundo justo procura-se. Dá-se recompensa.


Recebo um convite para um evento da minha área, a da Comunicação. Quem o envia é uma mulher que admiro, pessoal e profissionalmente, que tem vindo a dar cartas no mundo dos media e - que sorte - é minha companheira de palhota de praia. Não quero mesmo faltar, é um passo importante na vida de uma amiga, quero estar por perto.

Vou à agenda e vejo que tenho uma reunião que promete terminar para lá da hora prevista para o início do evento. Reorganizo a semana para poder fazer essa reunião noutro dia. Resolvido.

Olho de novo para o convite, para perceber onde vai decorrer. Cinema São Jorge. Quase 70 anos de história e eis que se acende aquela luz que se acende sempre que tenho que me deslocar, em particular a um espaço tão antigo. A probabilidade de não estar preparado para me receber é ainda maior, há que averiguar antes de ir.

Ligo para o contacto geral, atende-me uma colaboradora simpática a quem pergunto “o São Jorge tem acesso para pessoas que se deslocam numa cadeira de rodas?”. A resposta vem pronta “temos sim, temos as plataformas elevatórias, casa de banho e lugares reservados nas salas”. Fico nas nuvens e remato com uma última pergunta “e há lugar de estacionamento perto do cinema?”, parecendo eu que sabia que vinha dali chumbo grosso. “Sabe, haver havia, mas a Câmara substituiu-o por uma estação de bicicletas Gira e deslocou o lugar para deficientes dez metros para a frente…”.

“Espera, Marta, ouviste mal…”, ainda penso, e peço para repetir. Mas não. A Câmara Municipal de Lisboa decidiu afastar o local reservado a pessoas com mobilidade reduzida que havia mesmo em frente ao São Jorge e colocar bicicletas no seu lugar. Faço uma pausa de três segundos na conversa e esforço-me para que não me saia uma asneira cabeluda pela boca fora. Respiro fundo, ao mesmo tempo que respondo quase entre dentes “pois, é uma vergonha, e peço-lhe que passe o meu desagrado à direção do São Jorge”. Conto o episódio nas minhas redes sociais e rapidamente o cinema me responde que esta foi uma decisão exclusiva do município e que pouco pode fazer, mas que dentro do edifício tenho asseguradas todas as condições necessárias.

No dia, lá vou eu, acompanhada por uma amiga que já conhece de cor os malabarismos que precisamos de fazer se formos surpreendidas por escadas ou casas de banho onde nem sequer entra a cadeira. Chegamos com uma hora de atraso porque o trânsito de Lisboa se tornou caótico nos últimos anos. O lugar de estacionamento está, claro, ocupado por quem dele não precisa, mas bloqueado – e bem - pela EMEL. Arranjamos outro, por sorte, muito perto, mas não prioritário.

Assim que me aproximo da entrada principal, sou imediatamente abordada por dois membros do staff que me encaminham até à 1ª plataforma. Quando olho para ela percebo que está nova, o que bate certo com o que outra amiga me tinha dito sobre a recente aposta em acessibilidades feita por aquele espaço. “Está a estreá-la”, comenta o rapaz, não escondendo a felicidade de ver aquilo a funcionar e a ser útil. O sol brilha, as borboletas voam felizes, os passarinhos cantam e está tudo perfeito, não está? Não, não está. Quando olho para o espaço onde era suposto a plataforma terminar o percurso, percebo que é também o espaço onde está montada a esplanada do quiosque que fica no patamar do cinema. Toca de levantar os clientes, arredar as mesas e os bancos para eu passar. Uma maravilha. Do mais digno que há.

Já no hall do edifico, dirijo-me à 2ª plataforma, para poder ter acesso à sala onde ainda decorre a apresentação. Assim que olho para o final das escadarias, e mais uma vez para o espaço onde devo “estacionar” a plataforma, reparo em toda a parafernália da equipa de som que, à pressa, a desvia. A minha amiga, já tão ou mais em brasa quanto eu, comenta “e estavam à tua espera, imagina se não estivessem.”.

E a questão é mesmo esta. Quem, como eu, se desloca de cadeira de rodas, precisa de planear a sua vida ao minuto, antes de sair de casa. E precisa porque, se não o fizer, vão surgir (ainda mais) obstáculos por toda a parte. Alguns que se conseguem ultrapassar, outros que nem com toda a boa vontade do mundo se resolvem. Faço-o há 27 anos, tentando prever, e precaver-me, de cada situação que possa surgir e transformar a minha vida num inferno. Por vezes, “viver ao sabor do vento” é bom, no meu caso é impossível.

Deste dia destaco, no entanto, a disponibilidade para me ajudar da parte de todos os que comigo se cruzaram. Agradeço, mesmo, saibam, mas, perdoem-me, não chega. E não chega porque eu não quero ter que gritar para o mundo inteiro ouvir cada vez que decido pôr uma roda fora de casa. Não chega porque eu não quero ter que me chatear cada vez que chego a algum lado e me deparo com faltas de sensibilidade para o tema da mobilidade reduzida. Faltas de sensibilidade que são tantas vezes faltas de respeito, como é o caso da substituição do lugar reservado a pessoas com mobilidade reduzida pela estação de bicicletas, ao que parece, mais importantes que eu. Eu, que trabalho e desconto cada cêntimo que o Estado me impõe, e que deveria de ter o direito a usufruir do meu país e da minha cidade como qualquer outra pessoa. Eu, tão cidadã como os outros, mas que continuo a ser tratada como cidadã de 2ª.

Já disse isto milhares de vezes, mas vou voltar a fazê-lo, para ver se alguém me ouve: enquanto esta for uma luta das “Martas desta vida”, não vamos longe. Enquanto as queixas forem feitas apenas por quem vive de perto uma limitação, isto não muda. O famoso Livro de Reclamações está disponível para todos, online e em papel. Hoje em dia, até apps que simplificam o processo de fazer uma denúncia existem. É o caso da “+ Acesso”, lançada recentemente pela Associação Salvador, e que qualquer pessoa pode ter instalada no seu smartphone, ao lado do Instagram, do Facebook e de outras aplicações que se tornaram imprescindíveis na vida de tantos. Já não há desculpas para não sermos todos cidadãos atentos, preocupados e solidários. Com ou sem limitações físicas.

Visto-me de branco por Timor, envio roupas e alimentos para Pedrogão Grande, compro Pirilampos Mágicos, vendo livros em 2ª mão para ajudar associações de crianças com Trissomia 21, distribuo refeições a Pessoas em Condição de Sem Abrigo. Para além disso, disponibilizo-me para levar o lema “Ser Feliz é Uma Escolha”, título que escolhi para o livro que conta a história da minha vida, o mais longe que posso. Desdobro-me com uma vontade gigante de tentar minimizar o sofrimento de quem está do outro lado. Não era altura de sermos muitos mais a pensar no tema das acessibilidades e a lutar para que elas se tornassem universais, fazendo do mundo um lugar um pouco mais justo para todos?