13 de agosto de 2015

Destinada...a ser feliz

Nunca gastei muito tempo a pensar “porquê eu?”.

Aceitei o que me tinha acontecido com uma pontinha de imaturidade, natural aos 15 anos.

O tempo foi passando, fui-me habituando a viver assim. Quando experimentava olhar para trás e começava a fazer perguntas, movimento que tentei fazer poucas vezes, dava conta que os amigos estavam lá, a família estava lá, o meu mundo continuava a rolar e, com pequenas alterações aqui e ali, era quase normal. Voltava-me para a frente e seguia.

E assim vivi a fase inicial do acidente que me deixou a herança de uma cadeira de rodas para gerir. Há heranças melhores, é um facto. Mas também haverá piores.

Aos 29, quando enfrentei aquele que até hoje considero o maior desafio da minha vida, a septicémia, voltei a não olhar muito para trás. Aqui já não contei com a imaturidade dos 15 anos, mas valeu-me a imbatível sabedoria dos 30. Foi uma fase dura de aguentar, em que senti a minha energia a chegar ao fim, mas foram poucas as vezes que parei para perguntar “porquê eu?”.

“Deus nunca tira vida, Deus dá sempre mais vida. Pode não ser a vida que desejamos, é a vida que precisamos.”. Hoje uma amiga publicou esta frase no seu mural, atribuída a um homem da igreja, que me fez pensar.

Fui criada no seio de uma família maioritariamente católica. Uns mais praticantes que outros, mas católicos. Cedo aprendi a rezar e a conversar com Deus, ensinamentos da minha avó Olinda que guardo até hoje e aos quais recorro sempre que me apetece. Muitas são as vezes em que dou comigo a falar com Ele, esperando sempre que me oiça. A maior parte das vezes apenas para agradecer o dia e para pedir proteção para os que me rodeiam. As que restam para pedir coragem para aguentar situações mais complicadas.

Costumo dizer a brincar que tenho canal direto lá para cima, tantos foram os momentos que me safei do pior, e tantos foram os momentos em que me consegui “organizar por dentro” para enfrentar casos mais bicudos.

Mas, confesso, a frase tem um travo amargo. Confesso a minha dificuldade em aceitar que este Deus, que me ouve e com quem converso, me tenha dado a vida “que eu preciso”. Porque precisar significa “necessidade”. Significa “não poder passar sem”. E eu poderia passar sem estas provas.

Não é que não tenha uma vida preenchida, ou que não seja feliz com ela, porque sou. Mas nunca ficou claro para mim o critério que escolhe confrontar uma miúda de 15 anos com a realidade de deixar andar, porque nunca percebi o critério de confrontar uma jovem que já não anda com uma septicémia que a deixa no limite das forças.

Dir-me-ão que devemos aceitar o que nos acontece e o que para nós está destinado. Mas eu aceitei. Aceitei e juntei todos os bocadinhos de coragem, força e determinação que o meu corpo tinha, para fazer o melhor que sei por mim, tendo em conta a nova realidade. Fiz mais: usei - e uso - isto tudo para poder fazer alguma diferença na vida de quem me rodeia. Mas daí a ter percebido, calma, porque vai uma longa distância. 

Partilhei com esta amiga a minha dúvida. Prometemos voltar ao tema com tempo, mas perceber? Perceber exige de mim um longo caminho que ainda me sinto a percorrer.

Até lá, et pardon my french, às vezes é só isto:


6 de julho de 2015

I (don´t) love you

Quem me conhece sabe que sou das que não se apaixona facilmente.

O filme repete-se com alguma frequência. Começa quase sempre quando surge alguém que consegue captar a minha atenção.

Liga-se uma espécie de luzinha e fico alerta. Primeiro tendo a manter-me à distância. Finjo que não reparo, mas vou reparando. E reparo em tudo mesmo, caso me interesse. Depois, se esse alguém se aproxima, disparam os botões todos. A cabeça começa a carburar e entro automaticamente em modo “ai-meu-Deus-vamos-lá-analisar-isto-a-fundo”. 

Antes de ir em frente, e antes de me deixar bater de frente, peso os prós e os contras. O que, vendo bem, é positivo, porque devemos ser ponderados. Mas eu sou mais do que isso. Volto repetidamente aos prós, e depois também aos contras. E gasto algum tempo aqui. 

Deixo-me inebriar pelos primeiros, que me seduzem. No momento imediatamente a seguir olho para trás...e lá estão os segundos. Que aceleram o passo, ganham espaço. Na maior parte das vezes são estes que acabam por se aninhar inteligentemente no meu colo, e por lá ficar, parecendo apostar todas as fichas na paz que sabem que me trazem. E que sabem que gosto.

Costumo dizer que nestas alturas entro numa espécie de transe que dura pouco tempo, porque o músculo da razão está mais trabalhado que o do coração e acaba por abafá-lo. Mais tarde ou mais cedo – e tem sido sempre mais cedo que mais tarde. Mas ele tenta, coitado. Bate mais rápido, esquiva-se das investidas da razão, esmifra-se para ser ouvido. Só que ela esgota-o, seca-o, mesmo que devagarinho, round a round, e knockout com ele. Há alturas em que o pobre diabo chega a acreditar que daquela vez é que foi, daquela vez é que ganhou. Mas a razão ri-se, de orelha a orelha, porque sabe que saiu, mais uma vez, vencedora. Nada de novo afinal. Siga.

Não há grande volta a dar, é mesmo assim. Sou mesmo assim.

Avanço, mas sem tirar os pés do chão. Vou em frente, mas antes meço e planeio cada milímetro do meu caminho. Não me perco com facilidade. Nem nos amores, nem em nada. Antes encontro-me sendo “caninamente” fiel àqueles que me trazem a tranquilidade que tanto gosto.

E por tudo isto, ou sou a careta de serviço - porque não te soltas, porque não vives a vida em pleno - ou sou a esperta - que com alguma facilidade consegues evitar a maioria dos sobressaltos que a vida nos traz.

Sei que com isto umas vezes ganho, outras perco. Sei disso tudo. Mas aos "quase-40", e sentindo-me bem assim, não se muda facilmente. E se um dia isso acontecer, não é porque a razão perdeu para o coração. No limite, é porque os dois se entenderam.




3 de junho de 2015

Begin with the end in mind

Conhecemo-nos um pouco antes de eu entrar para a Novabase. Ainda estava a estudar. Devia ter uns 20 anos.

Era fim de semana e eu tinha ido com a minha irmã assistir a uma das muitas convenções de fitness que ela frequentava.

Nessa altura, como hoje, gostava daquele movimento. Da música alta. De dançar.

Já estava de cadeira de rodas mas isso não impedia o meu corpo de vibrar com toda aquela adrenalina. Não podia participar, mas deliciava-me a ver. Aliás, como ainda hoje.

Não sabemos quem nos apresentou. Alguém foi. Falámos um bocado. Eu devo ter falado muito, porque falo sempre muito.

A convenção acabou, despedimo-nos e nem pensámos se a vida nos voltaria a colocar no mesmo caminho. “Adeus, até um dia destes, quando houver nova convenção apareço!”

Anos mais tarde, com 23 anos, voltámo-nos a cruzar. Desta vez, no mundo do trabalho. Depois de uma entrevista, fui contratada para fazer a ponte entre a empresa onde ele trabalhava e os media, agora que se avizinhava uma entrada em bolsa e era necessário ganhar alguma visibilidade-extra. 

Cruzámo-nos montanhas de vezes no corredor ao longo dos anos e era engraçado ter por ali alguém que me conhecia fora daquele ambiente. Que conhecia a minha irmã e alguns dos meus amigos. Alguém mais “familiar” que os outros. Trabalhámos juntos umas vezes mas a empresa foi crescendo e fomo-nos perdendo de vista.

No fim do ano passado a minha equipa passou para o andar dele e voltámo-nos a ver com mais frequência. Sempre que nos cruzamos dizemos umas graçolas um ao outro, e seguimos.

Ontem reencontrámo-nos, com mais tempo, na copa. Ele encostou-se ao balcão a comer uma gelatina, eu tirei um café.

Conversámos sobre o dia a dia e revivemos aquele em que, há mais de 15 anos, nos conhecemos. E o Carlos - é o nome dele - relembrou-me a nossa conversa. Do conteúdo da nossa conversa. Que já me tinha esquecido.

Eu andava no último ano da faculdade e estava cheia de planos, que partilhei com ele. “Notava-se que querias conquistar o mundo.” 

(E percebeu bem, porque queria.)

Apesar de não me ter demonstrado, o Carlos tinha ficado com medo que eu não conseguisse. “Vi-te cheia de vontade e com a certeza absoluta de que ias chegar longe. Mas confesso-te que achei que, tendo em conta a sociedade em que vivemos, cheia de preconceitos, ia ser difícil.”

Engraçado, pensei, essa hipótese nem me passava pela cabeça. Se eu queria, eu ia conseguir. Ponto final. Não havia outro desfecho possível.

Olhei para o Carlos que me disse “vendo onde chegaste, não sabes como eu fico feliz por me ter enganado…”

E ele nem sabe que isto é só o começo. Ou se calhar sabe. Agora já sabe.


23 de abril de 2015

Never forget. To live.

Já me fazia falta trabalhar cá fora, ao sol.

A rua está cheia de passarada colorida, que não se cala. Gosto de os ouvir enquanto trabalho. Trazem-me um misto de tranquilidade e inspiração que me ajuda a ter um dia produtivo. Tenho sempre a sensação que se esforçam ao máximo para cantar o melhor que sabem.

Aqui, onde moro, quando o tempo aquece, os coelhos arriscam-se pelos caminhos onde andam os humanos. E eu vejo-os ainda mais de perto. 

O meu pinhal está cheio de vida. Daquela que se vê, que se sente e que se cheira.


No meio disto tudo, toca-me o telefone. “Estás na empresa, posso ir ter contigo à tua sala para trocarmos umas ideias?” Respondo “podes vir ter comigo sim, mas à minha varanda.” "Epá, que bom, quem me dera! Mas não posso, falamos pelo telefone, sem problema". E falámos, resolvemos e pusemos tudo a andar.

Quando desligámos fiquei a pensar no que o meu colega me tinha dito, da sorte. Eu sei que tenho. Mas também sei como é que isto tudo começou.

Fez há poucos dias 10 anos que tive alta do 1º internamento da septicémia. Causado por uma escara lixada que infetou e que tentou dar um empurrão no meu mundo, com vontade de o fazer cair. Abanão que me forçou a ajustar o tempo que passo sentada na cadeira, decisão que tantas vezes me priva de estar mais tempo com algumas pessoas que me fazem bem. Que me obrigou a abdicar de coisas que gosto.

Voltar ao modelo antigo seria arriscar a saúde que, nem sei bem ainda como - e se calhar nunca saberei - , não me fugiu na altura. Ou que não deixámos escapar, porque nunca estive sozinha.

Por isso, se tenho sorte? Tenho sim. A sorte de ter a vida inteirinha pela frente para olhar para este pinhal, para estes pássaros. Para sentir estes cheiros e aproveitar cada segundo que posso passar nesta varanda.

Porque não se desperdiça uma segunda oportunidade. E eu não me esqueço disto. Nunca.

17 de janeiro de 2015

Não desiste. Insiste.

Já não escrevo há mais de 2 meses. Os dias têm sido preenchidos e com pouco espaço para a inspiração. Mas o calendário da minha vida tem datas que não posso deixar que passem em branco. Para que nunca as esqueça.

Foi há 10 anos. Estava com 40 quilos. Quem me rodeava só não desviava o olhar por respeito. Magra e de pele esverdeada. Tinha aguentado quase um ano de enjoos e a vomitar. Um ano com uma ferida aberta que acabou por infetar. Um ano de muito trabalho que me fazia agarrar aos dias melhores e aguentar os piores para o conseguir cumprir.

Seguiram-se meses de cama de hospital. De exames. De visitas constantes de homens e mulheres vestidos com batas brancas, especialistas em tudo. Do som das campainhas que tocavam perto do balcão das enfermeiras sempre que alguém de outro quarto precisava de uma delas. Do cheiro dos almoços que chegavam sempre tarde demais e dos jantares antes da hora. Da rotina das manhãs. Do medo das palavras por não serem as que eu queria ouvir. “Isto está a correr bem, não tarda estás em casa.” Em vez disso “ainda não sabemos, estamos a fazer exames, por enquanto tens que ficar cá connosco”. E era sempre um “connosco” carinhoso, preocupado, de “faremos tudo o que pudermos”. 
Mas não era convosco que eu queria estar. Era com elas, lá em casa, e com os outros, no trabalho, na praia. Onde fosse. Mas não ali.

Foram meses sem a minha casa, o meu ambiente, os meus cheiros, as minhas rotinas. A minha história foi transportada para outro cenário, e durante tempo demais se desenrolou ali. Senti-me num palco que não era o meu e num tempo que não acabava.­

A passagem para o quarto isolado foi ao mesmo tempo um alívio e um problema. Sabia que ia ter o sossego que tanto pedia mas também sabia que quem ia para ali não ia por estar a melhorar. Preferi ignorar e focar-me na tranquilidade que passaria a ter.

Lembro-me de numa das idas a casa ter piorado ao fim de apenas dois dias e de me ter apetecido desistir. Era a 3ª ou 4ª vez que voltava tudo ao início e senti-me sem força. “Se é para morrer, que seja rápido, estou farta”. Senti cá dentro e cheguei mesmo a verbalizar. A minha mãe olhou para mim com um ar sério e disse “calma, um dia de cada vez, isto vai passar, vamos lá regressar ao hospital.” Sabia que eu estava no meu limite, valeu-me não ter mostrado o seu.


Depois disso, vieram ter comigo e comentaram que era urgente passar para um tratamento menos conservador, tínhamos que dar o tudo-por-tudo. Para não me perderem. Aceitei sem saber muito bem o que estava a aceitar, mas sem alternativa. Entreguei-me nas mãos deles, mais uma vez.

De novo o frio da sala de operações, a música de fundo. O aproximar das batas brancas de olhar carinhoso, sempre preocupadas em aquecer o meu corpo e em me dar algum conforto. O possível. E de adormecer devagarinho.

Dessa vez não acordei tranquilamente. A cirurgia tinha sido maior, as drogas mais fortes, o que me deixou mais em baixo. Mas foi a última. E a que me safou. Foi o “fecha o capítulo, passa para o próximo”.

A recuperação foi essencialmente feita em casa, já rodeada do meu mundo, ainda limitado, adaptado à situação, mas do meu mundo.

Os jantares de família aconteciam no quarto, tal como os serões. Uns na cama, outros no chão, mas ali, à minha volta. E nunca ninguém se queixou da falta de conforto.

Os dias passaram, as semanas passaram, fui sobrevivendo devagar, um dia de cada vez. Vieram os meses, com eles as forças. E cada vez menos dores no corpo. E na alma. Na minha e na de todos.

Um dia enchi-me de coragem e, mesmo sem estar a 100%, voltei à empresa. Precisava de voltar rapidamente às rotinas. Em cima da mesa as fotos, os copos cheios de canetas, os blocos de notas, os jornais daquele que foi o último dia de trabalho antes de tudo acontecer. O tempo parecia não ter passado. Estava tudo no mesmo lugar em que deixei, e isso fez-me sentir que pertencia ali. Que me queriam ali.

Daquele tempo, para além destas memórias, restam as cicatrizes. Hoje, 10 anos depois, sempre que me sinto menos confiante ou com mais dificuldade em tomar uma decisão, olho para elas. E lembro-me que, depois de superado tanto desafio, há pouca coisa impossível. 

E sigo em frente. Mais uma vez.