19 de março de 2014

Volta sempre onde já foste feliz

Naquele tempo, as férias de verão duravam meses. E um deles era sempre passado na Portelinha, a terra da minha avó materna.
 
A Portelinha era uma aldeia perto de Tomar. Um local onde o tempo parecia parar. Tudo acontecia devagar, sem pressa de chegar a lado nenhum.
 
Não me lembro bem que idade tinha na altura, mas não devia ter mais que 4 ou 5 anos quando comecei a ir para lá.
 
Era o mês da liberdade, das aventuras, das brincadeiras pelas vinhas, pelas casas abandonadas.
 
Era o mês das tijeladas e do leite à porta de casa. E do peixeiro. E do padeiro. E do homem das mercearias. Gostava particularmente deste. Quando ele chegava, voava pelo quintal, só para ver o homem abrir a parte de trás da carrinha e espreitar lá para dentro. Aquilo era um mundo.
 
Chegar à Portelinha implicava sempre passar umas belas horas a limpar a casa que, por estar fechada durante grande parte do ano, acumulava pó e teias de aranha. Cada um fazia a sua parte.
 
A “casa da avó”, era assim que lhe chamávamos, era uma casa antiga e térrea. A porta da frente, que dava para um descampado que só acabava na casa do Tio Maximiano, irmão da avó, pouco ou nada era utilizada. Entrava-se quase sempre pelo pequeno portão de ferro pintado de preto que ficava na parte lateral da casa e que dava acesso ao seu melhor espaço: o alpendre. Onde passávamos a maior parte do dia. Tenho saudades daquele alpendre.
 
Ali se faziam as refeições, se recebiam os vizinhos. Ali se lavava a roupa, no velho tanque que estava encostado a um canto. Ali se sentia o tempo a passar, devagarinho, ao som da passarada que se divertia no cimo da figueira da vizinha, a Fernanda. A passarada e nós, que tantas vezes a subíamos para comer os figos gordos que nasciam dela.
 
Lembro-me muitas vezes da minha avó Olinda sentada à mesa, naquele alpendre, a descascar as batatas para o jantar. Ou a tomar o pequeno-almoço. Tinha o cabelo branco, curto, às ondas, como nuvens. Era gorducha, que as mulheres da altura não se queriam magras. Tinha uns óculos pretos, de massa. As mãos enrugadas e pintalgadas de sinais. Unhas pontiagudas, sempre arranjadas, sem verniz. Na mão esquerda, a aliança do meu avô, que juntou à dela quando ele lhe morreu. O Sr. Guimarães, reformado da polícia. Um homem respeitado por todos. São poucas as memórias que guardo dele. De vez em quando, a avó lá punha “o anel da pedra”, o meu preferido. Nas orelhas, os brincos de sempre, pequeninos, de ouro, em forma de lágrima. Nunca os tirava.
 
Para lá do alpendre ficava um bom pedaço de terreno que fazia as delícias das nossas brincadeiras.  O "quintal". No meio, um poço, que abastecia as necessidades de água da casa. Na ponta, gritávamos para a “casa do Pereira” nos devolver as palavras com o eco. Aquilo fascinava-nos. No fundo da rua, fugíamos de uma casa deixada vazia há anos. Era a “nossa casa assombrada”.
 
Daquele tempo guardo os cheiros. As emoções. As nódoas negras. As pernas arranhadas pelas silvas.
 
Quando a avó morreu, aquela casa deixou de fazer sentido e os filhos venderam-na.
 
Há 2 anos decidimos passar pela Portelinha, para mostrarmos à Carlota onde tínhamos sido felizes.
 
A casa estava lá, o alpendre também. Mas “em ponto pequeno”. Porque, na altura, tudo era muito maior que eu.
 
Já não havia a “casa do Pereira”. Nem a figueira da Fernanda. Nem poço. No lugar dele, um cesto de basquete. Ao lado, bicicletas de adulto, misturadas com outras, de criança. E isso fez-me acreditar que ali, onde um dia os nossos corações bateram rápido, alguém era feliz. Como nós fomos.
 

 

 

 

 

11 de março de 2014

A voar desde 1991

Para tudo, que hoje celebro a vida!                     

A família. Os amigos. O trabalho. Os inimigos. Porque, há 23 anos, a coisa foi tão complicada que, hoje, até os inimigos faço questão de celebrar.

1991. Foi o ponto de viragem. Não o mais doloroso mas, seguramente, o mais importante.

1991 foi a primeira grande prova. A que confirmou que, quando não chegou a nossa hora, simplesmente…não chegou a nossa hora.

Na vida, tudo aquilo pelo qual passamos muda-nos. Molda-nos. "Faz-nos”.

Tornei-me numa pessoa boa. A sério que, modéstia à parte, acho que me tornei numa pessoa boa. Acima de tudo, sou hoje alguém que todos os dias se esforça por ser melhor.

Quando olho para trás, para os momentos que se seguiram ao acidente que me deixou paraplégica, sinto um orgulho grande em mim. Mas uma gratidão ainda maior por todos os que me ajudaram a fazer aquele caminho.

Quando olho para trás, apesar da vida ter dado uma cambalhota com 3 mortais à frente (e encarpados, só para tornar a coisa mais animada!) não me lembro de estar triste. Não me lembro de chorar com pena de não andar. De não voltar a andar. E, apesar de saber que todos à minha volta choraram, foi importante terem-no feito sem eu perceber. Porque tornou o processo mais suportável. Ajudou-me a tornar-me forte o suficiente para poderem encontrar também em mim um pilar.

Há dias em que tento adivinhar o que teria sido da minha vida se aquele 11 de março de 1991 tivesse sido um dia normal. Um dia de acordar, tomar duche e sair para a escola com a Cláudia. Parar no café para fumar um cigarro às escondidas. Encontrar-me com o Brasas, o meu namorado. Voltar para casa ao fim da tarde, passear o Pantufa e o Coca, estar com os meus pais e irmã, dormir e pronto. Mas nunca saberei.

O universo surpreendeu-nos a todos e reservou-me outras cartas para jogar.

A verdade é que fui a jogo. Com algum medo, porque não conhecia as regras, mas fui. Resultado, venci. Goleei o adversário. Eliminei-o do campeonato.

Gosto de pensar que ganhei uma vida nova. Que ganhei o direito de começar de novo. Que ganhei resistência. Coragem. E, ainda, o tempo necessário para parar e perceber que todos os dias podemos melhorar um bocadinho e tentar fazer a diferença na vida de alguém.

Há 23 anos que não ando. Mas há 23 anos que voo. Alto.

É por isto que hoje para t-u-d-o, se faz favor. Afinal, celebro a vida. E vou viver o melhor que conseguir.

Um desejo? Que venham de lá, para início de conversa, os próximos 23!