Naquele tempo, as
férias de verão duravam meses. E um deles era sempre passado na Portelinha, a
terra da minha avó materna.
A Portelinha era
uma aldeia perto de Tomar. Um local onde o tempo parecia parar. Tudo
acontecia devagar, sem pressa de chegar a lado nenhum.
Não me lembro bem que idade tinha na altura, mas não devia ter mais que 4 ou 5 anos quando comecei a ir para lá.
Era o mês da
liberdade, das aventuras, das brincadeiras pelas vinhas, pelas casas
abandonadas.
Era o mês das
tijeladas e do leite à porta de casa. E do peixeiro. E do padeiro. E do homem
das mercearias. Gostava particularmente deste. Quando ele chegava, voava pelo
quintal, só para ver o homem abrir a parte de trás da carrinha e
espreitar lá para dentro. Aquilo era um mundo.
Chegar à Portelinha
implicava sempre passar umas belas horas a limpar a casa que, por estar fechada
durante grande parte do ano, acumulava pó e teias de aranha. Cada um fazia a sua parte.
A “casa da avó”,
era assim que lhe chamávamos, era uma casa antiga e térrea. A porta da frente,
que dava para um descampado que só acabava na casa do Tio Maximiano, irmão da
avó, pouco ou nada era utilizada. Entrava-se quase sempre pelo pequeno portão
de ferro pintado de preto que ficava na parte lateral da casa e que dava acesso
ao seu melhor espaço: o alpendre. Onde passávamos a maior parte do dia. Tenho
saudades daquele alpendre.
Ali se faziam as
refeições, se recebiam os vizinhos. Ali se lavava a roupa, no velho tanque que
estava encostado a um canto. Ali se sentia o tempo a passar, devagarinho, ao
som da passarada que se divertia no cimo da figueira da vizinha, a Fernanda. A
passarada e nós, que tantas vezes a subíamos para comer os figos gordos que
nasciam dela.
Lembro-me muitas
vezes da minha avó Olinda sentada à mesa, naquele alpendre, a descascar as
batatas para o jantar. Ou a tomar o pequeno-almoço. Tinha o cabelo branco,
curto, às ondas, como nuvens. Era gorducha, que as mulheres da altura não se queriam
magras. Tinha uns óculos pretos, de massa. As mãos enrugadas e pintalgadas de
sinais. Unhas pontiagudas, sempre arranjadas, sem verniz. Na mão esquerda, a
aliança do meu avô, que juntou à dela quando ele lhe morreu. O Sr. Guimarães,
reformado da polícia. Um homem respeitado por todos. São poucas as memórias que
guardo dele. De vez em quando, a avó lá punha “o anel da pedra”, o meu
preferido. Nas orelhas, os brincos de sempre, pequeninos, de ouro, em forma de
lágrima. Nunca os tirava.
Para lá do
alpendre ficava um bom pedaço de terreno que fazia as delícias das nossas
brincadeiras. O "quintal". No meio, um poço, que abastecia as necessidades de água da casa. Na
ponta, gritávamos para a “casa do Pereira” nos devolver as palavras
com o eco. Aquilo fascinava-nos. No fundo da rua, fugíamos de uma casa deixada
vazia há anos. Era a “nossa casa assombrada”.
Daquele tempo
guardo os cheiros. As emoções. As nódoas negras. As pernas arranhadas pelas
silvas.
Quando a avó
morreu, aquela casa deixou de fazer sentido e os filhos venderam-na.
Há 2 anos
decidimos passar pela Portelinha, para mostrarmos à Carlota onde tínhamos sido
felizes.
A casa estava lá,
o alpendre também. Mas “em ponto pequeno”. Porque, na altura, tudo era muito
maior que eu.
Já não havia a “casa
do Pereira”. Nem a figueira da Fernanda. Nem poço. No lugar dele, um cesto de basquete.
Ao lado, bicicletas de adulto, misturadas com outras, de criança. E isso fez-me
acreditar que ali, onde um dia os nossos corações bateram rápido, alguém era
feliz. Como nós fomos.