10 de julho de 2016

Pedaços de uma vida feliz

Eu tinha 11 anos e nossa a televisão a cores cabia numa pequena prateleira daquele armário da sala, um bloco de madeira que ocupava uma parede inteira da divisão principal do nosso T3, que ficava no lado direito de um 1º andar, numa das transversais da Av. da Igreja. Cheio de livros, bibelots e gavetas, era um armário branco, grande, maior ainda por eu ser pequena.

Numa dessas gavetas, o meu pai guardava duas coisas que sempre me chamaram a atenção. Um frasco com o menisco, que tinha tirado quando deixou de ser jogador de futebol, e outro cheio de moedas de 25 escudos. No primeiro nunca toquei, por me fazer impressão, no outro toquei uma vez e foi para entregar tudo a uma família de ciganos que de vez em quando nos batiam à porta a pedir alguma coisa para comer. Costumava dar-lhes pão com manteiga ou Tulicreme, daquela vez despachei o saco das moedas de 25 escudos do meu pai e acabei o dia de castigo.

Naquela altura, os relatos de futebol ouviam-se num aparelhómetro da Orion que estava enfiado nesse armário, de onde a música também nos chegava através de cartuchos. Fado e música francesa.

Se fechar os olhos, regresso a 86 e à bola vivida e sofrida pela rádio. Ao cheiro do bolo de laranja que a minha mãe fazia para o nosso lanche. À escolha da “toilette” só para ir passear o cão. Às fugidelas para o parque infantil nas traseiras dos prédios, onde me fascinava a carruagem cheia de livros para ler, logo à entrada, e onde dei as maiores baldas dos baloiços, por lhes dar balanço a mais. Aos dias em que, depois do jantar, conseguia convencer a minha mãe a deixar-me ir a correr até à loja dos doces que havia no Centro Comercial, comprar Jubileus, gomas cristalizadas da Elba ou rebuçados Diamantes da Heller.


Se fechar os olhos, regresso aos dias em que, depois das aulas, subia diretamente ao último andar do prédio para lanchar o refresco de café e o pão com geleia feito pela D. Susana, a vizinha de cima, que era também a nossa segunda avó. Vivia com a filha, solteira, a Lurdinhas, costureira de uma casa de alta-costura muito prestigiada na altura. Sempre me fascinaram as sedas, os tules, a lantejoulas, as transparências. As muitas caixas das agulhas, as linhas coloridas. As rendas, os brilhos. A perfeição, o detalhe.

Se fechar os olhos, regresso a Alvalade, à Fernando Caldeira e a 25 anos de histórias que, mais do que contar, espero conseguir sentir para sempre.


E sim, estou de volta ao Blog da Canária! Pelo menos por hoje :)