28 de maio de 2017

Fechar os olhos para não ver

Voluntariado. A minha primeira experiência já ia longe, em 1999, altura em que fui desafiada pela minha querida Conceição Zagalo, que pegou em mim e me levou até Palmeira, no norte de Portugal.

Missão: construir habitações para os sem-abrigo da zona. A ideia preocupou-me, confesso. Sabia que o ambiente de obras não era o ideal para a minha cadeira de rodas circular. Mas alguma coisa me fez aceitar o convite.

Entre o dizer que sim e o ir, vivi semanas de desconforto e dei por mim, várias vezes, a perguntar-me “oh maluquinha, mas que raio te deu para aceitares?”

Seriam 3 dias passados longe de quem estava sempre comigo, com um grupo que mal me conhecia. E isto implicava dormir sozinha num quarto de hotel e depositar nas mãos destas pessoas parte da minha intimidade. “Será que te desenrasca sozinha num quarto?”, “E se te dá uma dor de barriga?”, “E chichi, Marta Canário?”. O meu coração batia mais rápido sempre que pensava nisto, por isso evitava fazê-lo.

O dia chegou e a minha irmã levou-me até ao ponto de encontro. Passei a ponte com vontade de chorar e de voltar para trás. Estive mesmo perto, mas não o fiz. À hora, estava à porta da empresa, como todos os outros voluntários. “Seja o que Deus quiser”, pensei.

E a verdade é que fui muito feliz com eles durante os 3 dias em que ajudei a construir aquelas casas, lado a lado com quem nelas ia viver, e em que o meu papel, dada a já conhecida força dos meus braços, foi furar paredes com o berbequim. Pessoas que, sem sequer perceberem, marcaram a minha vida.

Passados 15 anos, decidi ser eu a desafiar-me. O Vasco Noronha, que tinha conhecido em ambiente profissional enquanto assessor de imprensa do ministro da Finanças da altura, colaborava com o Centro de Apoio ao Sem-abrigo (CASA) há alguns anos. Numa das suas idas, juntei-me a ele e ao grupo que, às quartas-feiras à noite, distribuía refeições quentes na Gare do Oriente, a quem dormia no acesso à estação.

Tinha prometido à minha mãe que aquilo seria uma experiência e que só voltaria se sentisse que o meu coração chegava a casa intacto. Não chegou. Chegou dorido por ter visto de perto a tristeza de quem não tem um teto para viver. E ainda mais dorido por ter visto de perto a indiferença de quem passa por eles sem sequer olhar. “É como se fechassem os olhos para não os ver. E assim custa-lhes menos”, pensei. Mas resisti e voltei.

27 de maio de 2017. Ontem fez 3 anos, desde que me deixei embarcar nesta aventura. Pelo caminho passei pelo desgosto de perder o Vasco, que nos morreu de forma inesperada há ano e meio, com uma estúpida falha naquele que era um dos corações mais generosos que conheci até hoje. Na altura pensei em desistir, mas rapidamente senti que, para além de “desistir” ser uma palavra difícil de engolir para mim, também por ele não o poderia fazer. Senti que manter-me ali, seria também uma forma de dar continuidade ao que o Vasquinho, como gostava de lhe chamar, defendia e me ensinou.

3 anos depois, as minhas quartas-feiras terminam melhor se conseguir organizar a agenda “ir à Gare”. Vou quase sempre estoirada e de cabeça cheia do dia de trabalho, mas aqueles momentos funcionam como uma espécie de injeção que me repõe a energia para os dias que se seguem.

O coração, esse, já se habituou mais ao que ali vê, e aprendeu a viver sabendo que deixa lá tudo o que pode para que consiga voltar todas as semanas.










23 de maio de 2017

Urgente: respeito procura-se

Estava um dia de calor intenso. Uma mosca insistia em rasar as nossas cabeças e colar-se às nossas peles. Não nos largava. Estávamos as duas sentadas num dos bancos de cimento que havia no pátio lá do liceu.

Em jeito de brincadeira, saiu-me “a mosca não nos larga porque tu és da cor do cocó”, e desatei-me a rir, achando que tinha dito a melhor piada do mundo, sem pensar que ela poderia ficar magoada com aquilo.

A Raquel olhou para mim e, sem sequer mudar de expressão, levantou a mão e espetou-me uma bofetada digna do nome. Nunca tinha levado uma bofetada. No segundo seguinte estava a pedir-lhe desculpa. Não por medo de levar mais, mas por vergonha daquilo que tinha acabado de dizer.

A Raquel tinha chegado de Angola há alguns anos e vivia num prédio em ruínas, ali para os lados do Campo Grande. Eramos colegas de turma. Não tínhamos mais do que 10 ou 11 anos.

Ainda hoje sinto o coração a ficar mais pequeno, quando penso nisto.


Esta história marcou-me profundamente. Como me marca cada notícia que leio nos jornais ou vejo na televisão sobre este assunto que, quase de um momento para o outro, passou a fazer parte do alinhamento de todos os noticiários.

Naquele tempo, não havia nome para isto. Era apenas a profunda estupidez e maldade de uma pré adolescente parva a funcionar, neste caso, minha. Hoje poderia ser considerado uma espécie de bullying, e muito bem.

Li recentemente que, segundo alguns investigadores, uma em cada cinco crianças em idade escolar está ou esteve envolvida em algum caso de bullying. Uma em cada cinco crianças agride ou é agredida direta ou indiretamente. Contas feitas pelos mesmos investigadores, estamos a falar de quase 250 mil miúdos que maltratam ou são maltratados. 250 mil futuros adultos, entre médicos, engenheiros, eletricistas, mecânicos, veterinários, jornalistas, ou profissionais de quaisquer outras áreas, com potenciais problemas de segurança e autoestima. 250 mil seres humanos com menos capacidade para lutarem por aquilo em que acreditam. Mais grave ainda, por aquilo que os faz felizes. E, se assim for, o que é que lhes restará?

É preciso olhar para o problema do bullying como um dos maiores flagelos da idade jovem. Se olharmos à nossa volta, não há quem não sofra, quem não abuse, ou quem não conheça quem veja e cale. É urgente explicar a estes jovens que o respeito pelo outro é a base de uma sociedade saudável. E que sem esse respeito pelo outro, nunca conseguirão ser, também eles, respeitados. 

Quanto à Raquel, apesar daquele espisódio infeliz, mantivemos a nossa amizade. Mais tarde, com o passar do tempo, perdemo-nos uma da outra. Se um dia a reencontrar volto a pedir-lhe desculpa. 

14 de maio de 2017

F de “Ficar quietinho”

Já muito se escreveu sobre os 3 Fs que levaram Portugal e os Portugueses ao rubro nos últimos dias. Chegou a minha vez.

Entrámos no fim de semana com a vinda do Papa a Fátima, que juntou no santuário muitos milhares de pessoas. 55 países representados, entre velhos e novos, gente com mais ou menos conforto financeiro. Cada um com a sua história, cada um com o seu objetivo, cada um com a sua fé. Enquanto uns pagam promessas, outros fazem-nas, crendo que a vida ficará mais leve.

Do avião saiu mais do que o representante máximo da Igreja Católica. Saiu um homem simples, de sorriso e toque fácil, de afetos. Um homem que une quem acredita e quem não acredita. Um homem que tem o dom de aproximar países. Um homem que faz política sem a fazer. Que diz o que muitos nunca tiveram coragem de dizer. Que toca nas feridas. Um homem bom.




Às 18h15, grande parte dos portugueses vibrou com a vitória do Benfica frente ao clube de Guimarães e, dizem, mais de 200 mil juntaram-se no Marquês de Pombal, para comemorar o “tetra”.

Ao início da noite, famílias inteiras sentaram-se em frente da televisão para assistirem à atuação de Portugal, pela belíssima voz de Salvador Sobral, no Festival da Eurovisão. Há 20 ou 30 anos que ninguém o fazia, tal tem sido a fraca qualidade do que Portugal lá tem levado. “Vergonha alheia”, respondiam quando se lhes perguntava porque não seguiam o programa. “Vergonha alheia” foi também a minha resposta tantas vezes. O “Amar pelos Dois” uniu pais e filhos, avós e netos, Portugueses ou não, na esperança de trazer o caneco para o nosso país. E trouxe.

No dia seguinte, foram outros tantos os que se deslocaram ao Aeroporto de Lisboa para receberem o miúdo em braços, como se de um “Salvador” se tratasse.

Em apenas 3 dias, vimos Portugal a unir-se por 3 causas: Fátima, Futebol e Festival. E foi emocionante, ninguém põe em causa. Mas que tão facilmente se unisse também pela causa dos que vivem na rua, pelos que são vítimas de violência doméstica, pelos que procuram emprego, por todos os que precisam de ajuda para fazerem gritar a sua palavra, e tantas vezes os seus direitos, mais alto.

Porque como já alguém disse - e bem - se o objetivo é ir rápido, devemos ir sozinhos, mas para irmos longe, só acompanhados. Ou, nas palavras do Papa "o todo é superior à parte".