6 de outubro de 2016

Porque não choro pelas pedras da calçada (portuguesa)

Se há coisa que me lixa é a enorme falta de solidariedade entre o ser humano e a total incapacidade de se colocar “nos pés dos outros”.

Nasci e cresci em Lisboa, no Bairro de Alvalade. Aos 15 anos, fiquei de cadeira de rodas. Dos 15 aos 25 vivi numa casa onde não entrava a minha cadeira. Mesmo. Dos 15 aos 25 andei ao colo de familiares e amigos, que nunca me deixaram para trás, só porque a minha cidade não estava preparada para me receber.

Aos 25 mudei-me para fora de Lisboa por várias razões, mas pesou muito na decisão o facto de não haver oferta de casas adaptadas para as minhas necessidades a um preço que eu conseguisse pagar. Optei pela margem sul do nosso Tejo, onde encontrei o que procurava e acabei por juntar o útil ao agradável: uma casa perto do mar que cumpre o que preciso para ser autónoma. No entanto, o meu local de trabalho continua a ser na cidade onde nasci.

Há 25 anos que não sei o que é poder fazer um passeio sozinha por Lisboa. Há 25 anos que planeio cada milímetro do que vou fazer, para não ter surpresas. Há 25 anos que me sinto cidadã de segunda, apesar de descontar e cumprir tanto ou mais que uma de primeira.

Por isso, só vou dizer isto mais uma vez: se ainda não perceberam a importância de mudar os passeios de Lisboa, é porque não querem.

A calçada portuguesa, mesmo mantida, não serve. Porque é por natureza irregular, essa irregularidade causa instabilidade, e escorrega. É perigosa para quem se desloca de cadeira, para um invisual, para uma grávida, para um carrinho de bebé, para um velhote (e sabemos que há cada vez mais…). Até para quem não tem qualquer limitação, que a única coisa que não quer é espalhar-se e partir uma perna ou torcer um pé

Qual é a parte desta realidade que não conseguem entender?

Percebam que o desporto mais radical que posso praticar não é asa delta ou rafting, mas sim sair de casa e aventurar-me a rolar nos passeios lisboetas com a minha cadeira de rodas. Percebam que quando o faço, as minhas pernas saltam do pedal que as suporta e as rodas pequenas encalham ao mais pequeno desnível. E o que é que acontece? Caio e magoo-me. Conseguem sentar-se, mesmo que mentalmente, na minha cadeira e passar por isto? Chama-se empatia e não é mais do que a maravilhosa capacidade de nos colocarmos nos sapatos dos outros, para perceber o que eles sentem. Será que só calçando os meus sapatos, neste caso só experimentando sentarem-se na minha cadeira e “ficarem” paraplégicos, vão entender verdadeiramente o tema?

E o argumento de que é um ataque ao património, à história é, no mínimo, infeliz. Porque eu também faço parte da história da minha cidade e pouco ou nada usufruo daquilo que ela tem para me oferecer. E depois, quando finalmente ganho esperança de que isso vá acontecer, aparecem-me os Velhos do Restelo. Ponho-me no lugar deles e não consigo. Porque não consigo perceber como é que se escolhe história quando está em causa a igualdade entre todos os cidadãos. Aquela pela qual eu desespero todos os dias.

Já agora, não caiam na asneira de defender apenas zonas específicas em piso liso. Não estão a incluir, estão apenas a integrar. Porque incluir significa que o passeio deve existir para todos. E integrar é destinar uma zona para quem tem necessidades diferentes das vossas. Vocês de um lado, nós, do outro. Para além de que sabemos que depois acabam todos por preferir andar no “nosso” lado, porque sentem que é mais “confortável” e menos perigoso. Enfim.

Finalmente, vejo uma cidade que se começa a preocupar com a qualidade de vida de todos (incluindo com a das pessoas com mobilidade reduzida), e há quem se insurja chamando-lhe "ditadura do betão"? Ganhem juízo. E não contem comigo para chorar pelas pedras da calçada.