9 de novembro de 2014

Back to Basics

Nos últimos tempos tem acontecido tanta coisa que, quando dei por mim, estava a começar uma espécie de viagem às minhas entranhas. À minha natureza. E, conclusão, a questionar um montão de coisas.

Não tem sido sempre uma jornada fácil, mas os resultados têm aparecido. Isto de nos pormos em causa traz alguma dor associada mas, lambidas as feridas, espremido o conteúdo, retiradas as “gorduras” ajuda-nos a perceber o que fazemos bem, nos orgulha e queremos manter, o que fazemos mal e queremos mudar.

Acima de tudo, ajuda-nos a perceber o impacto concreto que as nossas ações têm do outro lado. Do lado de quem as recebe. E a tirar a prova que quase nunca medimos esse impacto.

Faz-nos perceber que muitas das decisões e reações que tomamos e temos no nosso dia-a-dia, têm nos outros um eco muito maior do que poderíamos prever.

Faz-nos perceber que o que para nós é tantas vezes claro, cristalino, que não nos traz dúvidas (e, na nossa opinião, não deveria trazer a ninguém), pode ser escuro e turvo para quem está à nossa volta.

Que a nossa verdade não é a verdade absoluta. Que devemos estar mais abertos a ouvir. E que não devemos fechar os olhos aos sinais. Porque, no limite, eles estão lá. Estarmos vigilantes pode dar uma boa ajuda.

A realidade é que, por muito que nos esforcemos para fazer o que achamos estar certo, por vezes não passa disso mesmo: a nossa noção de certeza.

A vida, e tudo o que ela traz consigo, sejam os momentos bons ou momentos menos bons, molda-nos.

No meu caso, aprendi a controlar emoções e situações. A gerir o meu mundo sozinha e à minha maneira. Demasiadas vezes sem pensar que as pessoas que também lá vivem, se eu quiser que elas continuem a fazer parte desse mundo, podem e devem ter uma palavra a dizer.

Aprendi a proteger-me dos sentimentos que, pensava eu, cá fora me colocariam num qualquer lugar mais frágil.

Aprendi a viver medindo os prós e os contras à exaustão. Tantas vezes deixando os contras roubar o espaço que era dos prós por direito.

Este mergulho tem sido, no mínimo, desafiante. Levou-me para águas profundas. Eu diria até desconhecidas. Mas é importante, de tempos a tempos, questionar o caminho que estamos a fazer. Parar e olhar para dentro. Nem sempre para mudar o que vemos, é certo, mas para nos certificarmos que é o que queremos para nós. Para percebermos se é indo por ali que vamos conseguir continuar a crescer. E a seremos melhores pessoas. E, se não for, mudarmos de rumo.

Alguém disse um dia que nem tudo o que enfrentamos pode ser mudado. Mas acrescentou que nada pode ser mudado enquanto não for enfrentado.

Já iniciei esta viagem. Muito provavelmente estarei ainda no início. Não a espero curta nem fácil. Mas o primeiro passo está dado.






27 de outubro de 2014

Até que a morte nos separe?

É sobre um casal de velhotes que vive na minha rua.

A mulher quase nunca sai de casa.

Habituei-me a ver o marido dar grandes passeios com os dois cães, todos os dias, várias vezes por dia. Até que deixei de o ver.

Pensei que lhe tinha acontecido alguma coisa, até dar com o senhor, de novo, a passear os cães. Mas desta vez mais devagar, tinha um dos lados do corpo paralisado.

Mesmo assim, ela continuava sem sair à rua. Era, por isso, ele que, mesmo com meio corpo adormecido, passeava os seus dois amigos, devagarinho.

Os anos foram passando e os cães foram envelhecendo, como, de resto, ele. Os cães morreram, ele recuperou a mobilidade e foi buscar outro, com quem o vejo agora.

Há uns dias ouvi uma mulher, ao fundo, a gritar. À distância, deu-me ideia que refilava com alguém.

Espreitei. E lá estavam os dois, na varanda. Ela a barafustar com o marido. Mais para ser ouvida por todos que por ele. Que parecia nem a ouvir. Pelo meio, o cão ladrava. Os vizinhos passavam mas já nem ligavam.

E porque agora passam o dia nisto, hoje atirou-lhe um “sempre foste um malandro!”, e ele nada. Seguiu-se um “roubaste-me o dinheiro todo que eu tinha no banco para comprares a porcaria dos carros!”, e ele nada. “Se não tivesse sido eu, tu eras um vigarista!”. E ele continuou empoleirado no parapeito, a olhar lá para baixo, sem responder. Como se não fosse com ele. Como se não estivesse ali e a viver aquele momento. Até que ela disse “isso, atira-te, era o que fazias de melhor”. Ele endireitou-se, olhou para ela, sério, e respondeu apenas um “atira-te tu, velha.” E foi para dentro.

A mulher manteve-se na varanda, indiferente ao facto de já estar sozinha. Ligou para a GNR e gritou “venham rápido que eu estou pelos cabelos! Quero que o levem daqui!”.

Quem a ouve e conhece diz que está doente. Que os anos lhe baralharam a cabeça. “Ela não era assim, foi de um momento para o outro”, lembram.

“Eu recebo-te por meu esposo/a a ti, e prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida.”

Ambos o prometeram. Um deles está quase a desistir. Só me falta perceber qual.



1 de setembro de 2014

O amor e outras cenas esquisitas

Há uns dias perguntaram-me se eu acreditava nesta coisa do amor para sempre.

Foi uma conversa pouco provável, tida com uma pessoa ainda mais improvável. Porque a pergunta foi feita por um miúdo de 20 e poucos anos, giro que dói, na flor da idade e no auge da sua sexualidade.

Tenho que confessar que fui surpreendida pela profundidade da questão. Querer perceber isto do amor para sempre seria, à partida, um tema pouco interessante para um jovem desta idade. 

Achava eu. Mas há exceções. E ainda bem.

Explicava-me que gostava de namorar mas que não pensava prender-se facilmente por nenhuma miúda.

Confessou-me ainda que perdia rapidamente o interesse por elas porque, ou eram demasiado atrevidas ou demasiado acriançadas. Não lhe prendiam a atenção. Nem o coração.

Falou-me apenas daquela que ficou longe, na terra onde cresceu, e que encontrava sempre que lá ia. E que de alguma forma ainda mexia com ele. Mas já com alguma distância no discurso, senti eu.

Tenho quase 39 anos e, por isso, alguma experiência de vida. Respondi-lhe com o que ela me ensinou: que todos nós tinhamos um botão de alarme com dois níveis.

Que o primeiro era inflamação, vontade, corpo, “beijo à filme” e pressa em viver tudo num segundo. Era sofreguidão, vontade de estar, "nunca-mais-chega-a-hora-nunca-mais-chega-a-hora”. Algumas vezes, dor e lágrimas. O segundo era calma, tranquilidade, saborear, companheirismo, partilha de interesses e de opiniões, conhecimento, união, um “eu-estou-aqui-contigo-e-para-ti”. Complementaridade.

Que o primeiro durava pouco, tirava-nos o sono e o apetite, mas que era maravilhoso porque nos fazia sair da cama num salto. E que o segundo nos devolvia a paz, a tranquilidade, a vontade de existir devagar, um dia de cada vez. E que nos fazia sonhar com um “eu quero mesmo viver para sempre assim”.

Mais. Que também havia casos, raros mas havia, em que o 1º e o 2º nível do botão tinham uma relação muito equilibrada e durante muitos anos.

Ia-me acenando com a cabeça, como quem vai percebendo devagarinho que ainda tanto tem para viver. E aprender. E descobrir. 

Apesar de alguma desconfiança, ouviu a minha opinião. Pareceu dar-me o benefício da dúvida e acreditar que o destino ainda ia acabar por lhe trocar as voltas e passa-lo para o 2º nível. Na minha opinião, fazê-lo subir de nível. 

No fim da conversa pareceu-me um bocadinho assustado. Só que igualmente curioso para ver o que podia vir dali.

Não sou a pessoa mais crente nos jovens desta geração. Mas, se existem cabeças destas, acho que vou ter que mudar de opinião...


20 de agosto de 2014

Porque não eu?

Não foram muitas. Mas houve vezes em que me perguntei “porquê eu?”.

Sempre fui aquilo que se pode considerar uma "gaja porreira".

Boa miúda, equilibrada, cedo comecei a fazer amigos com muita facilidade. Já na escola, tornei-me numa pessoa popular, tanto junto dos colegas, como junto de alguns professores. 

Depois de ter ficado de cadeira de rodas, o mundo de grande parte das pessoas que me rodeavam passou a girar em torno do meu. A minha família, naturalmente, mas também alguns dos meus amigos, que não planeavam uma saída sem perceberem como me levar. As escadas das discotecas e dos restaurantes ou a areia da praia nunca foram obstáculos. Não havia nada que, juntos, não ultrapassássemos.

Os anos foram passando e também é verdade que foram aparecendo alguns inimigos. Mas nunca grave o suficiente para o mundo deles girar em torno do meu. Picardias. Irritações. Gente que me encanitava. Só isso. Até porque, com o tempo, fui aprendendo a mantê-los à distância.

Por isso digo que sempre fui uma "gaja porreira". E, precisamente por ser assim, houve vezes em que me perguntei, “porra, porquê eu, se há tanta gente ruim no mundo que merecia passar por uma m"#$%& destas…e nada lhes acontece?”

Os anos foram passando e com eles vieram alguma sabedoria e algum bom senso. Assim passei a formular a pergunta ao contrário. “Porque não eu?”. “Em que é que eu serei diferente, que impede que algo de mau me aconteça?”. 


Mas os anos trouxeram-me mais do que isso. Trouxeram-me outras formas de ver a vida e ensinaram-me a interpretar melhor o que me ia acontecendo. A questão passou a “tem que haver uma explicação para que isto me tivesse acontecido a mim.”

Quero acreditar que fui uma das escolhidas. Quero acreditar que tenho uma espécie de missão na vida, que espero que seja muito longa. Quero crer que, quem comigo se cruza, vê mais do que uma desgraçada que deixou de andar aos 15 anos e que esteve a patinar aos 29 com uma septicémia.

Quero, com a minha história de vida, poder servir de exemplo e ajudar quem precisa a perceber que nada é impossível. E que, por detrás de uma acontecimento trágico, não tem forçosamente que haver uma história de vida infeliz.

Não quero que me vejam como uma heroína, porque estou longe de o ser. Tenho dias em que nem para uma mosca sou exemplo. Mas quero que vejam alguém a quem a vida já passou algumas rasteiras e se levantou sempre. Alguém que tem sido posta à prova algumas vezes, mas que conseguiu encontrar o lado bom. Alguém que decidiu - repito "decidiu" - passar por cima dos buracos que o caminho da vida foi tendo e seguiu em frente. Uns dias com mais agilidade, outros com menos, mas sempre em frente e o melhor que pode.

Hoje consigo ver as coisas de uma forma muito mais clara. E cada vez acredito mais que, continuando a esforçar-me para superar os meus medos (algo em que tenho vindo a trabalhar nos últimos anos, com resultados) vai ser mais fácil a vida mostrar-me tudo o que de bom ainda me reserva. 

Que é muito, tenho a certeza. Até porque quem me conhece bem, sabe que não me contento com pouco.

15 de agosto de 2014

À procura da praia certa? Boa sorte.

Escrevo estas linhas enquanto vejo as pessoas a passarem para a praia. Um dia quente, que devem estar mais de 30 graus. Mas eu estou ao fresco, na nossa varanda. E vocês sabem como eu gosto de varandas.

Este ano alugámos uma casa no Alvor, num pequeno condomínio que fica a 10 minutos a pé daquele mar tão azul que, desde que o descobri, no ano passado, passou a fazer as minhas delícias.

Cá estamos as 4. As de sempre, claro.
Têm sido dias calmos. Acorda-se cedo (sem despertador mas o hábito de quase 11 meses fala mais alto), prepararam-se as sanduíches para a praia, mergulha-se na piscina da parte da tarde e janta-se na vila ou na varanda lá de casa. Pelo meio, passeia-se a pé ou de carro, já que Alvor fica a meio caminho de quase tudo.
Amigos novos. Vizinhos com quem se partilha a relva à beira da piscina. Vizinhos com filhos de idades próximas, que acabam por partilhar os mergulhos, as bombas, os gelados e as gargalhadas. Vizinhos que se tornam amigos e que acabam por fazer parte das nossas férias. Vizinhos com que se trocam nºs de telemóvel e páginas de Facebook no último dia.
Durante estes dias procurámos Praias Acessíveis. Entenda-se por “acessível” uma praia com estacionamento para pessoas com mobilidade reduzida, passadiço até ao bar, que deve ter um wc adaptado, e depois até ao areal. Já aí, meia dúzia de chapéus de sol reservados para quem não pode escolher o espacinho mais simpático da praia. De preferência com um deck de madeira em volta e na 1ª linha. Por perto, deve haver 1 a 2 tiralôs – carrinho azul e amarelo anfíbio que transporta pessoas com mobilidade reduzida até ao mar – e, no mínimo, 2 monitores formados para saberem ajudar as pessoas que precisam, tanto na transferência como a levá-las ao banho.
Há poucas praias com estas condições. E as que existem, ou pelo menos as que conheci, são quase todas ridículas. O Alvor preenche praticamente todos estes requisitos, sendo que este ano apenas falhou no número de monitores. E não é por serem caros porque, segundo percebi, recebem até 160€ para lá estarem das 10 às 18h, com 2 horas de almoço. Vergonhosamente mal pagos, portanto, pela Junta de Freguesia. O que comprova que esta não é, de todo, uma prioridade desta malta.
Bom, experimentámos a Meia Praia.
Tudo começa pelo miserável parque, em piso de terra batida e, com tanto buraco, que torna o estacionamento na superfície da lua brincadeira de meninos.
Depois, os passadiços, que já não seriam de jeito quando colocados pela primeira vez, calcule-se agora, com anos de gente a passar por cima deles e sem qualquer manutenção.
Casa de banho do bar, como tantas vezes, a servir de arrecadação. Aquele “espacinho porreiro” para arrumar o que não cabe em mais lugar nenhum como, no caso, janelas velhas encostadas a uma das paredes. O cheiro, nauseabundo. Um misto de tudo-aquilo-que-se-faz-numa-casa-de-banho, com cheiro a refogado, borrifado com detergente foleiro.
Chichi feito de nariz tapado, acompanhado da 1ª náusea, desço até à praia e paro num dos 2 chapéus com a tabuleta a dizer “reservado para deficientes”. Tenho a 2ª náusea quando leio aquilo mas respiro fundo. Outra náusea quando constato que estes 2 chapéus estão a 300 metros do mar e a 15 dos outros. Ainda procuro nestes últimos a tabuleta a dizer “reservado para eficientes” mas, vá se lá perceber esta coisa das igualdades, não encontro.


10h e os monitores que nos ajudam nas andanças do tiralô, nem vê-los. Aparece finalmente um, magrelas, quase às 11h, com pinta de quem curtiu a noite toda. Pede desculpa e, ainda meio a dormir e com falta de duche, lá vem ajudar. Perto das 11h30/12h chega o colega, igualmente com poucas horas de sono.
Mas espanto foi quando percebemos que nem sequer conheciam a técnica de transferência para me pôr no raio do carrinho. Fica a explicação, para o caso de um dia precisarem: são necessárias 2 pessoas com alguma força de braços. Uma fica atrás e põe os braços por baixo dos meus. Outra à frente, que agarra por baixo dos joelhos. 1, 2, 3, coordenados, levantam e, sem largar, sentam-me no braço do tiralô (uma boia amarela onde se faz a primeira pausa). 1, 2, 3, coordenados novamente, levantam e sentam-me no tiralô. Depois, banho connosco. Alguns de nós saem do carrinho e nadam, outros ficam mais confortáveis no tiralô. Difícil? Não. Apenas alguma técnica, jeito e vontade de fazer bem.
Tomei um banho e vim-me embora da praia. Porque ninguém gosta de estar em locais que não são pensados para nos fazerem sentir bem. Tal como aqueles pais que se recusam a ir para hotéis estúpidos onde não se aceitam crianças, ou aquelas casas que não aceitam os nossos animais de estimação.
Obviamente que esta falta de organização tem consequências: nem um “tusto” gasto naquele espaço. Nem meu, nem dos milhares e milhares de turistas com mobilidade reduzida que todos os anos se deslocam ao Algarve. 

Já agora, deixem-me relembra-los que um dia podem ser vocês, caso partam uma perna no dia anterior a irem de férias, ou tenham sido operados aos joanetes, ou estejam grávidas, ou circulem com carrinhos de bebés. Ou decidam levar a vossa avó à praia. Ou. Ou. Ou. 
Enquanto o mundo não souber a diferença entre integração e inclusão, isto não vai longe. E enquanto for só um grito de meia dúzia de gatos-pingados, pouco ou nada mudará.

8 de julho de 2014

Home sweet office

Vinha de um problema na vesícula que me tinha emagrecido até aos 40 quilos. Não era bonito de se ver. Toda aquela magreza trazia para a vista um esqueleto de metro e setenta e dois coberto de pele. E pouco mais que isso.

Precisamente por causa dessa magreza, tinha feito uma ferida de pressão na bochecha do rabo, lado direito. Estávamos no final de 2005.

Pernas em forma de palito, maminhas nem vê-las, braços fininhos, dedos de pele e osso. A cara era encovada, os dentes e os olhos pareciam maiores. Mas mantinha um sorriso.

Até a roupa era tamanho S e com recurso a alfinete de dama para prender atrás das costas o tecido que sobrava das camisolas.

Mas, mesmo assim, era neste estado que todos os dias me arranjava e me punha a caminho de mais 9 horas de trabalho em Lisboa. 9 horas que, juntando às outras que começam a contar desde que acordava até que me deitava, chegavam a 16 ou 17 em cima da cadeira. O mesmo será dizer, em cima da ferida. Non stop.

Um dia ela queixou-se e infetou. Sempre acompanhada por uma médica, tratei-a como podia. Mas sem pânicos. Afinal não era a primeira nem seria a última escara da minha vida. Alguém na minha condição já sabe que, de tempos a tempos, aparece uma.

Houve alturas em que melhorou, mas outras em que piorou. E assim andou durante uns meses. Eu, sempre magra, fazia febre de vez em quando. Tomava antibiótico, melhorava, parava de tomar, voltava a febre. Recomeçava tudo.

Lembro-me que passei bem o Natal. Não havia sinais de infeção há algum tempo e andava a comer bem há umas semanas. Mas a febre voltou em meados de janeiro.

Cansadas daquele sobe e desce infernal, fomos ao hospital perceber se havia mais alguma coisa a fazer. Havia. Havia mas demorou 9 meses até ficar resolvido. Só regressei ao trabalho em setembro, depois de uma septicémia em último grau. Depois de me desviar de mais um encontrão da vida.

Já chegava. A aquela experiência tinha sido avassaladora para toda a família. Foi tempo de fazer uma análise fria do que me poderia acontecer caso continuasse com o mesmo tipo de vida que tinha tido até ali.

Sabia que o pior tinha passado, mas também sabia que ainda havia um longo caminho a percorrer até recuperar a 100%. E sabia que a minha saúde, no futuro, só dependeria de mim. Se quisesse continuar por cá, teria que ter, finalmente, juízo.

Uma das primeiras decisões que tomei foi partilhar esta preocupação com a empresa. Expliquei que gostaria de continuar a trabalhar com eles mas que teria que intervalar as minhas idas ao escritório com alguns dias de trabalho de casa.

Todos aceitaram esta condição e assim começou uma nova era no meu trabalho. 2 vezes por semana na empresa para entrevistas, reuniões, idas a eventos, o que fosse preciso, 3 de casa. Horário de trabalho: o normal. Que, para quem me conhece, é quase sempre on.


Há quem não consiga habituar-se a este tipo de trabalho. Atacam o frigorífico, trabalham fora de horas, não resistem a uma sesta depois de almoço... Eu habituei-me. Aliás, queria muito mostrar que era merecedora da confiança que tinham depositado em mim e que ia conseguir cumprir todos os meus objetivos. Queria provar que estar em casa ou no escritório, era igual para a empresa. E melhor para mim.

Comprovou-se depois que era melhor para todos. Estar em casa, mais sossegada, era sinónimo de estar também mais concentrada. Mais focada. Raramente cheguei ao fim do dia com tarefas a meio. Mas o que interessava mesmo era que estar em casa libertava-me o corpo.

E depois havia sempre o outro lado. Trabalhar remotamente, deu-me a oportunidade de ver crescer a Carlota e de poder fazer parte dos fins de tarde em que lhe dava banho, lhe preparava o jantar e brincava com ela. De repente havia tempo para tudo.

Nos dias em que ia à empresa, sempre que tinha um break nos compromissos, divertia-me a circular pelos corredores, a meter-me com as pessoas, a angariar informações necessárias para o meu trabalho ou dia a dia através de conversas informais. Porque quem está fisicamente na empresa, faz isto de forma tão natural que nem dá conta de como estes momentos são tão importantes.

Já passaram quase 9 anos. Continuo no mesmo sistema. Graças a esta forma de trabalhar consegui recuperar a parte física e equilibrar a parte psicológica, que na altura da septicémia levou um grande abanão.

Hoje acordo cedo, tomo o pequeno-almoço, arranjo-me, visto uma roupa confortável e ligo o computador. Onde fico sempre, religiosamente, até à hora de almoço. Não aceito convites para almoçar quando trabalho de casa. Não me quero dispersar. Prefiro comer qualquer coisa rápida e voltar ao trabalho, direto, até às 18h30/19h. Durante o dia, não são raras as vezes que uso o skype para falar com a minha agência em Moçambique. Ou que faço uma reunião com direito a videoconferência com a minha equipa que está no escritório em Lisboa.

Tudo com uma concentração quase irritante. Mas, no fim da tarde, paro tudo para receber a Carlota, já crescida mas ainda a requerer atenção – vá, mesmo que não precise eu gosto de parar para a receber -, e sempre que é necessário adianto o jantar. O que adoro fazer.

Pelas 21h volto ao computador e despacho trabalho que tenha ficado pelo caminho. Ou já nem volto. Faço como me apetecer. Mas, regra geral, apetece. Porque o trabalho assim não é um fardo. E não é um fardo porque não me rouba tempo que eu quero ter para outras coisas. Cabe tudo da minha vida. Pessoal e profissional.

Sinto verdadeiramente que ganhei muito com este sistema. E a verdade é que, se nunca tivesse tido um problema de saúde como tive, ainda hoje lutava contra o relógio como tantas colegas fazem para conseguir arranjar espaço para tudo. E talvez nunca conseguisse chegar lá. Como, infelizmente, elas não chegam.

Dizem que Aquele lá em cima escreve direito por linhas tortas. Eu sempre acreditei nisso.




6 de julho de 2014

O que aprendi com os anos

Decididamente, estou melhor com a idade.

Há uns anos, toda eu era convicções. De que ia ser jornalista de televisão, mais tarde de que ia voltar a andar, de que nunca ia querer ser mãe, de que tinha sempre razão.

Com o tempo, com o avançar do tempo, as certezas deram lugar às dúvidas, aos “ talvez não”.

Não fui jornalista, não voltei a andar, gostava de ter sido mãe e tantas são as vezes em que não tenho razão.

Fui uma jovem com o coração na boca. Bem-disposta, divertida, feliz, rodeada de amigos, mas que fervia em pouca água. Na história feminina da minha família nunca houve mulheres calmas, eu não fui exceção.

Também acho que nunca soube o que eram inimigos de verdade. Daqueles com quem deliberadamente travamos lutas corpo a corpo, numa raiva assumida. Contra quem traçamos planos de ataque para que saiam do nosso caminho. Nunca soube porque, vendo bem, quem não devia estar no meu, com o tempo – e, lá está, o tempo – acabou por ir saindo. Mas a verdade é que nunca fui uma pessoa de grandes confrontos e conflitos.

Não que não tenha força e coragem para ir à luta se for preciso ou, no limite, dar uma boa chapada na tromba de alguém. Só defino relativamente bem onde gasto a minha energia.

Os anos, e sobretudo alguns dos momentos pelos quais passei, trouxeram-me alguma tranquilidade, mais ponderação. Novas perspetivas.

Percebi que nunca vamos agradar a todos e que nunca vamos conseguir estar apenas rodeados de quem gostamos. Por isso tornei-me especialista em distinguir entre amigos e Amigos, entre conhecidos e Conhecidos. Sem dramas por saber que temos que fazer esta distinção. A vida é mesmo assim. É uma questão de adaptar o discurso e o comportamento.

Aprendi a aceitar as coisas como elas são, dando-lhe apenas a devida importância.

Só que as experiências que os anos nos trazem também nos vão moldando como se fossemos uma peça de barro que vai ganhando forma nas mãos de alguém. A verdade é nem sempre consigo agir da maneira mais distanciada. Se por um lado os anos me acalmaram as entranhas, por outro tornaram-me mais sincera, mais honesta, mais verdadeira. Talvez por isso, tenha passado a ser cada vez menos tolerante perante algumas situações que antes aceitava ou engolia, deixava passar. Nem ligava, acho eu.


Quem bem me conhece, sabe que hoje tento não fazer senão aqueles fretes inevitáveis. Quem bem me conhece, sabe que hoje não deixo de dizer o que me vai no coração, se achar que ouvir o que sinto ajudará quem está à minha frente. Quem bem me conhece, sabe que comigo, hoje mais do que nunca, não colam conversas de gorduras, corpos perfeitos, cabelos, unhas e compras. Que se há coisa que me enerva é a vidinha “Sexo e a Cidade”. E não é por não gostar de estar em forma, de cabelos arranjados, unha feita e enfeirar. Só me encanita o excesso.

Não lido bem com quem não consegue elogiar, com quem não dá uma palmadinha nas costas. Com quem dá feedback para o lado em vez de o fazer na direção certa. Gente que começa as frases por “não” em vez de “sim”.

Não lido bem com gente que fala nas costas. Gente que ouve aqui e conta ali, achando-se melhor por ter mais informação que os outros. Não lido bem com pessoas que muram o seu quintal e que não deixam ninguém entrar lá dentro. Não tolero pessoas que escolhem a dedo os alvos que os podem fazer subir na vida e que por isso os cobrem com elogios. Ou aquela gentinha que nos tenta manipular para conseguir o que quer, os amigos de momento.

Não percebo quem não gosta de crianças e animais. Quem apenas vê e não contempla. Quem não ouve o coração. Quem não tenta fazer a diferença na vida de alguém, por pequena que seja essa diferença. Quem tudo tem e nada dá a quem nada tem. Quem fecha os olhos ou desvia o olhar quando passa por quem precisa, só para não sentir o coração mais pequeno e ter mesmo que ajudar. Quem faz caridade em vez de solidariedade.

Aprendi a olhar para quem se aproxima de mim e a fazer uma análise muito simples: ou tem dentro dela algo que eu sinto no meu coração que vale a pena, ou sai fora. Ou encontro ali valores e princípios que cruzam bem com os meus, ou nada feito. No limite, ou é alguém que, perdido, precisa e quer uma orientação para melhorar, ou nem perco tempo.

Estou quase com 40 anos. Atingi, muito provavelmente, metade do tempo que irei viver. Por isso, um dos meus objetivos de vida é tornar a rede do filtro cada vez mais fina. Para poder viver tranquila, sem máscaras. E chegar ao dia em que nem sequer vou precisar de ter alguma coisa para filtrar. 

É que isto agora vai passar muito mais rápido e eu quero aproveitar.

20 de junho de 2014

A coragem de seguir em frente

A minha vida tem sido, e tentando usar aqui uma palavrinha simpática, desafiante.

Ainda na barriga da minha mãe, uma placenta prévia ia-me ceifando a possibilidade de sentir o mundo. “Vamos tentar salvar a mãe, que para a filha já vamos tarde”, lembro-me de me contarem. Mas nasci e cresci, saudável.

Aos 15 anos, foi altura de um estúpido de um esquentador me ter levado a força nas pernas. E, mesmo sem essa força, passei por cima. Renasci.

Aos 29, uma infeção numa ferida na bochecha do rabo – atenção que antes dizia “nádega” por me parecer “politicamente mais correto” mas, desculpem, a idade trouxe com ela a falta de saco para merdices – emagreceu-me até aos 40 quilos e deixou-me a patinar por quase meio ano. Recuperei as forças ainda hoje não sei bem como, reagi aos quilos de antibióticos estranhos que tomei, e passei à frente. Mais um renascer, este duro como nenhum outro. Para o corpo mas, acima de tudo, para a mente.

Os dois anos que se seguiram foram passados no fio da navalha. Entre engordar à força, recuperar de cirurgias plásticas de reconstrução e acreditar que o meu corpo ia aguentar o tranco. Que aguentou.

Um dia, plim!, os contratempos decidiram dar-me umas tréguas. Depois de tantas batalhas perdidas, perceberam que, finalmente, tinham perdido a guerra. Desistiram.


Quase 9 meses depois, regressei ao trabalho. Vendo bem, nunca o deixei a 100%, porque não foram poucas as vezes em que trabalhei deitada na cama, na do hospital ou já em casa. Aos poucos voltei, retomei a vida onde ela tinha, literalmente, parado. Com mais algumas limitações, mas em bom, como diz uma amiga.

Estou livre de chatices graves há 8 ou 9 anos. Sinceramente, desisti de contar. Aprendi a viver uma vida de prevenção. Declarei guerra às feridas. Prometi a mim própria que nunca mais as ia ter. Posicionei-me em primeiro lugar na minha lista de prioridades. Até de fumar deixei.

Hoje acredito que sou o fruto claro destes momentos. Para alguns um exemplo a seguir, para outros…“preferencialmente, uma vez sem exemplo”.

Aos meus próprios olhos, sou uma mulher de coragem. Com dias em que sinto o mundo a cair-me em cima e o chão a escapar-me debaixo dos pés, outros em que levo a vida às costas - a minha e a dos outros -  mas porreirinha da vida. Dias em que acho que aguento tudo, outros em que, ao mais pequeno toque, trau!, caio para o lado. 

Mas sempre com uma certeza: se procurar bem dentro de mim encontro, como sempre encontrei, o que preciso para seguir em frente. Coragem.


5 de junho de 2014

"É aqui que durmo"

Sr. António, que gosta de ler e que guarda na sua saca velha 3 livros que alguém lhe deu. Está a acabar o último. A jovem de 20 e poucos anos, grávida de 8 meses, que mais uma vez se zangou com o pai do que ainda nem nasceu. O que não vai para lado nenhum sem o seu cão. Aquele a quem passamos o saco do pão, mas que o deixa escapar da mão. A mesma que, antes do provável AVC, conseguia agarrar aquilo que mais falta lhe faz. O que se apaixona com facilidade. O que apanha mentiras porque as conhece como ninguém. O estrangeiro. O jovem envergonhado. O menos jovem, igualmente envergonhado. O roto. O bem vestido.

Várias histórias, vários protagonistas. Todos diferentes, mas todos com o mesmo olhar. O olhar de quem não vive mais do que um dia de cada vez. O olhar de quem não sabe se para a semana tem uma vida. Nem que seja aquela estranha forma de vida.

Nunca tinha estado tão perto do submundo. Sabemos que existe, já todos nós o vimos, quanto mais não seja pela televisão. Mas assim, de perto, mergulhada nele, nunca. E com ele entranhado, muito menos.

Passei o dia a pensar no meu fim de dia. Se ia conseguir articular uma palavra. Se devia articular uma palavra. Se me ria, se fechava o sorriso. Se tratava com mais ou menos carinho. Se ia ser bem ou mal recebida. Se isto seria um capricho ou um dever.

21h30. Gare do Oriente. Mas a parte da Gare que só conhece quem sabe o que ali se passa. No fim do túnel. Perto do último acesso à rua. Primeiro, poucos. Com o passar dos minutos, tantos.

Cobertores, mochilas, sacos, carrinhos de supermercado. Caras estragadas pelo tempo. Pelo sofrimento. Pela falta. De tudo. De sorte.

Fazem fila. Olham para dentro das caixas, e para quem ali está sobretudo para dar o que tem nas mãos. Para os que, mesmo depois de um dia de trabalho, se partilham com eles.


“Pão de azeitonas, pão de hambúrguer ou pão simples?” “Iogurte?”. Os mais exigentes, que o gosto não se vai com a falta de dinheiro, perguntam se ainda há com pedaços. Não há, aceitam do outro.

Atrás de mim um jovem envergonhado. Um de nós pergunta se quer uma refeição. Responde com um encolher de ombros que esconde fome.

Fico nos sumos. Mas não encho os copos porque tenho medo que me tremam as mãos. “Quer um?” Quase todos dizem que sim. “Obrigado e saúde”, respondem.

A minha cadeira suscita curiosidade. São vários o que me perguntam o que me deixou assim. Explico com a simplicidade possível e de quem não está ali para ter atenção. Passo à frente.

O cão de um dos sem-abrigo não me larga. Quer festas mas nota-se que tem as do dono com fartura. “Trate-o sempre bem”, peço-lhe. “Ele é que me trata bem a mim”, responde-me com generosidade. E inteligência.

A fila não parece acabar. Mas há jantar para todos. De vez em quando oiço um “Marta, tudo em cima?”. É o coordenador, que se divide entre a distribuição de um prato quente e o aperto que sabe que sinto no coração.

Depois de comerem, voltam para os muros da Gare, que lhes serve de cama. Estendem as mantas, reúnem o pouco que lhes pertence. Falam pouco. Falar de quê...?

Já passa das 23h. Acomodam-se como podem. Aninham-se. Viveram mais um dia. Sobreviveram mais um dia.

Olho para aquilo tudo e penso “vou mesmo voltar. E vou levar alguns livros, para o Sr. António poder continuar a mergulhar na vida de quem ainda tem como viver.”

23 de maio de 2014

Não desistas de ninguém

A história que vos conto hoje é simples mas, por isso mesmo, de contar.

Deram-nos aquela orquídea há uns meses. Largos meses.

Esteve linda durante muito tempo, mas foi perdendo o brilho, transformando-se lentamente num pau seco, sem cor. Encarquilhado.

E assim ficou. E ficou. E ficou. Murcha. Morta. Morta? Veremos.

Todos os dias passava por ela e pensava “minha amiga…está na altura de ires para o lixo”.

Mas todos os dias via a minha mãe a pegar no vaso, a pôr-lhe água, a trata-la. Todos os dias via a minha mãe a escolher paciente e cirurgicamente o melhor local da casa para colocar aquele pau que um dia já tinha sido uma flor. Locais estratégicos. Onde houvesse mais luz, lá estava a orquídea. Durante muito tempo num dos quartos, ultimamente no chão da cozinha, perto da varanda.

Habituei-me a vê-la aqui e ali. Confesso que não lhe liguei muito. De vez em quando olhava para ela e pensava “já foste, coitadita”.

Nunca tivemos muita sorte com plantas ou flores aqui em casa. Aquela era só mais uma.

Lembro-me de ter comprado 10 vasos e sementes de todas as espécies, idealizando uma varanda cheia de vida e cor natural…e de ter acabado numa loja de chineses a comprar flores de plástico. A verdade é que ainda hoje estão na varanda da frente. E lindas. Trabalho? Nenhum.

Até que, nas últimas semanas, a natureza me surpreendeu, mais uma vez.

“Olha, já viste? Está a rebentar por todos os lados!” disse-me, entusiasmada, a minha mãe.

Arrastada, fui ver. E estava. Lá estava. Cheia de “altinhos” ao longo do tronco, que já não era seco, era verde, vivo. Alguma coisa estava a querer nascer dali.


Durante as semanas seguintes fiquei mais atenta. Mas não lhe mexi, porque as minhas mãos não são as da minha mãe. Tive medo que as estranhasse e se deixasse morrer de novo. Limitei-me a ficar mais atenta.

Mas passava por ela e já não a adivinhava no lixo. Passei a acreditar. “Já te safaste”.

E safou. Hoje a valente orquídea está linda. Viva da Silva. Cheia de luz. Resultado apenas do carinho e da persistência de alguém que não desistiu dela. Resultado da dedicação, do tempo e do carinho que a minha mãe lhe dedicou.

Ver esta transformação fez-me pensar no ser humano.

Quantas vezes desistimos das pessoas antes de apostarmos tudo o que podemos e temos nelas?

Quantas vezes deixamos ficar para trás alguém que, pode até ter metido os pés pelas mãos mas que, com um bocadinho da nossa atenção, pode voltar a entrar nos carris e a seguir no sentido certo?

Quantas vezes seguimos o nosso caminho sem sequer olhar para quem não consegue seguir o seu?

A resposta é: vezes demais.

Ver aquela transformação e pensar no ser humano, fez-me ter a certeza que temos muito a aprender com a natureza. 

E, vendo bem, começando por mim.


Se às vezes digo que as flores sorriem – Alberto Caeiro

Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.

18 de abril de 2014

A curiosidade (quase) matou o gato

Acordei e fui tomar o pequeno-almoço na varanda. Como, aliás, faço sempre que o tempo o permite.

É dali que o costumo observar. Por entre os carros, em cima das árvores, esparramado no quente do alcatrão da estrada. Ou perto das taças que estão no canto do estacionamento, que os vizinhos enchem todos os dias com restos de comida ou de ração.

Mas hoje, quando acordei, não foi assim.

A rua estava em silêncio. Ao longe vi a Carla, vizinha do rés-do-chão do prédio do lado, à procura de alguma coisa ou de alguém. A acompanhá-la estava o Kiko, o seu gato, amarelo e gordo, que a seguia com uma fidelidade e dependência mais próprias de um cão.

Passou pelo meio dos carros, espreitou por baixo de cada um, olhou por entre os arbustos e por trás dos muros. Nada.

Não sabíamos do gato coxo. Tinha desaparecido sem deixar rasto.

Nos últimos anos, era por aqui que andava. Tornou-se senhor da rua. Não havia cão que por ali parasse. Ou que o parasse. 

Já há uns dias que ninguém lhe punha a vista em cima. A Carla do rés-do-chão ainda se meteu algumas vezes no carro para o procurar nas redondezas. Mas vinha sempre de lá sem ele.

Do prédio em frente saiu uma senhora loira com um saco de plástico na mão cheio de ração. Enquanto se dirigia à taça de comida, olhava para todos os lados, esperando que o gato coxo fizesse como sempre fazia e viesse ter com ela. Nada. Estranhou. Olhou em volta…mas nada, outra vez. Voltou para casa, literalmente com o saco cheio.

De tarde foi a vez do dono do Mike, o cão que também vive no prédio em frente. Meteu-se no carro, deu umas voltas pelas ruas que ficam ali mais acima, regressou. Parou no meio da estrada, saiu do carro, abriu o porta-bagagens. Tirou de lá um saco de ração e um garrafão de 5 litros de água. Olhou em volta e….nada. Mesmo assim deixou comida e água ao bicho, não fosse ele aparecer e ter fome.

Da varanda fui-me apercebendo disto tudo. Com o coração pequeno. O que raio tinha acontecido ao gato, pensei eu.


Nessa tarde, quando voltei a ver a Carla, perguntei-lhe se já tinha encontrado o gato. Disse-me que não. Que tinha sido levado há 3 dias por duas senhoras da rua de cima para ser esterilizado. É que o raio do gato tinha como hábito ir ter com as gatas das vizinhas e não lhes dava tréguas. Depois da operação, as senhoras, que mal não lhe queriam, libertaram-no perto da autocaravana que está estacionada num dos cantos do nosso parque de estacionamento. Mas, desde esse dia, há 2 dias, mais ninguém lhe pôs a vista em cima. Explicou-me a Carla que lhe tinham feito uma espécie de armadilha para o apanhar, porque de outra forma ele não iria com elas. À bruta. Tal foi o susto que, quando se viu livre das mãos delas, desapareceu.

Pensei que a história do gato ficaria por aqui, e que não o voltaria a ver, mas não. A Carla não desistiu e voltou a procura-lo. Enfiou-se mais uma vez no pinhal e por lá andou quase uma hora. Do gato, nem vê-lo.

Quando se preparava para voltar a casa, lembrou-se de passar pelo pinheiro onde ele tinha por hábito esconder-se dos cães que tantas vezes o perseguiam quando era mais pequeno. E lá estava ele, bem lá em cima. Num daqueles ramos onde só os gatos conseguem chegar. Encontrámo-lo…

Quem me conhece sabe que prefiro cães. Mas rendo-me a este gato…

E lá está ele agora, à hora que escrevo estas palavras. Naquele cantinho onde nenhuma mão humana lhe pode fazer mal. Dali não sai. Nem se aproxima da lata de paté de atum. Mas daqui a uns dias, espero, o susto passou.

Quanto às vizinhas da rua de cima, podem dormir descansadas. Ou não. É que, no que depender deste “quebra-corações”, as crias das suas gatas já não vão poder ter genes com esta pintarola.

Porque como alguém um dia disse, “um gato é um italiano educado em Inglaterra. Sente como um italiano mas porta-se como um lorde”.




19 de março de 2014

Volta sempre onde já foste feliz

Naquele tempo, as férias de verão duravam meses. E um deles era sempre passado na Portelinha, a terra da minha avó materna.
 
A Portelinha era uma aldeia perto de Tomar. Um local onde o tempo parecia parar. Tudo acontecia devagar, sem pressa de chegar a lado nenhum.
 
Não me lembro bem que idade tinha na altura, mas não devia ter mais que 4 ou 5 anos quando comecei a ir para lá.
 
Era o mês da liberdade, das aventuras, das brincadeiras pelas vinhas, pelas casas abandonadas.
 
Era o mês das tijeladas e do leite à porta de casa. E do peixeiro. E do padeiro. E do homem das mercearias. Gostava particularmente deste. Quando ele chegava, voava pelo quintal, só para ver o homem abrir a parte de trás da carrinha e espreitar lá para dentro. Aquilo era um mundo.
 
Chegar à Portelinha implicava sempre passar umas belas horas a limpar a casa que, por estar fechada durante grande parte do ano, acumulava pó e teias de aranha. Cada um fazia a sua parte.
 
A “casa da avó”, era assim que lhe chamávamos, era uma casa antiga e térrea. A porta da frente, que dava para um descampado que só acabava na casa do Tio Maximiano, irmão da avó, pouco ou nada era utilizada. Entrava-se quase sempre pelo pequeno portão de ferro pintado de preto que ficava na parte lateral da casa e que dava acesso ao seu melhor espaço: o alpendre. Onde passávamos a maior parte do dia. Tenho saudades daquele alpendre.
 
Ali se faziam as refeições, se recebiam os vizinhos. Ali se lavava a roupa, no velho tanque que estava encostado a um canto. Ali se sentia o tempo a passar, devagarinho, ao som da passarada que se divertia no cimo da figueira da vizinha, a Fernanda. A passarada e nós, que tantas vezes a subíamos para comer os figos gordos que nasciam dela.
 
Lembro-me muitas vezes da minha avó Olinda sentada à mesa, naquele alpendre, a descascar as batatas para o jantar. Ou a tomar o pequeno-almoço. Tinha o cabelo branco, curto, às ondas, como nuvens. Era gorducha, que as mulheres da altura não se queriam magras. Tinha uns óculos pretos, de massa. As mãos enrugadas e pintalgadas de sinais. Unhas pontiagudas, sempre arranjadas, sem verniz. Na mão esquerda, a aliança do meu avô, que juntou à dela quando ele lhe morreu. O Sr. Guimarães, reformado da polícia. Um homem respeitado por todos. São poucas as memórias que guardo dele. De vez em quando, a avó lá punha “o anel da pedra”, o meu preferido. Nas orelhas, os brincos de sempre, pequeninos, de ouro, em forma de lágrima. Nunca os tirava.
 
Para lá do alpendre ficava um bom pedaço de terreno que fazia as delícias das nossas brincadeiras.  O "quintal". No meio, um poço, que abastecia as necessidades de água da casa. Na ponta, gritávamos para a “casa do Pereira” nos devolver as palavras com o eco. Aquilo fascinava-nos. No fundo da rua, fugíamos de uma casa deixada vazia há anos. Era a “nossa casa assombrada”.
 
Daquele tempo guardo os cheiros. As emoções. As nódoas negras. As pernas arranhadas pelas silvas.
 
Quando a avó morreu, aquela casa deixou de fazer sentido e os filhos venderam-na.
 
Há 2 anos decidimos passar pela Portelinha, para mostrarmos à Carlota onde tínhamos sido felizes.
 
A casa estava lá, o alpendre também. Mas “em ponto pequeno”. Porque, na altura, tudo era muito maior que eu.
 
Já não havia a “casa do Pereira”. Nem a figueira da Fernanda. Nem poço. No lugar dele, um cesto de basquete. Ao lado, bicicletas de adulto, misturadas com outras, de criança. E isso fez-me acreditar que ali, onde um dia os nossos corações bateram rápido, alguém era feliz. Como nós fomos.