28 de dezembro de 2018

Fui feliz em 2018


Há uns dias, antes do Natal, o Nuno ligou, como liga sempre, de há anos para cá.

Trabalhamos juntos mas, para o Nuno, quando queremos mesmo desejar Boas Festas a alguém, pegamos no telefone. E é ele que está certo.

“Tem um Natal feliz e que 2019 seja tudo o que mereces e procuras”. Foi mais ou menos isto. Respondi que lhe desejava o mesmo. E desejo mesmo porque gosto dele.

Tínhamos estado juntos na festa de Natal da empresa e tínhamos ambos saído mais cedo. Ele porque não é de grandes ajuntamentos, eu porque tinha que acordar muito cedo para uma reunião do outro lado da cidade…e porque tinha outra festa à noite que, essa sim, ia acabar tarde. E eu queria estar bem, para a aproveitar até ao fim.

“Não sei como aguentas, na tua pele eu estava morto”, ainda me disse antes de desligar. Eu oiço isto e, a verdade, é que me sinto viva como nunca antes.

2018 foi feito de deixar cair o “eh pá, deve ser giro, mas se calhar é melhor não” e de optar pelo “deve ser giro, por isso vou.”.

Mas também foi um ano especialmente desafiante ao nível profissional, em que tantas vezes me forcei a marcar presença em alguns dos muitos eventos que aconteceram na minha área, porque senti que, indo, me acrescentariam alguma coisa, pessoal ou profissionalmente.

Foi o ano de voltar a estudar, porque o mundo não para e eu gosto de estar por dentro do que se passa à minha volta.

Foi o ano em que me esforcei para andar mais atenta ao que me rodeia, e em que tentei chegar aos que percebi que precisavam da minha ajuda.

Foi o ano em que acompanhei todas as Revenge of the 90s de Lisboa, para onde fiz questão de arrancar sempre sozinha, de táxi, sem hora para voltar, confiando numa equipa que me conhecia há pouco tempo, mas que algo me dizia que me iria receber de forma incrível.

Foi o ano em que fiz a minha primeira viagem de avião com o objetivo de dar uma palestra, e para um sitio onde conheci um grupo de pessoas muito especial e de onde trouxe mais amigos.

Foi o ano em que voltei a nadar no mar quente do nosso sul, e fi-lo com a ajuda de dois miúdos fantásticos que me levaram a andar de gaivota ao fim de mais de 30 anos sem o fazer.

Foi o ano em que festejei os 43 anos de vida rodeada dos meus amigos, ao mesmo tempo que me emocionei ao vê-los a chegar à festa “todos pi-pis”, e carregados de sacos de supermercado com alimentos que deixámos no CASA.

Foi o ano em que assisti a vários concertos - que a música tem um papel fundamental na minha vida - mas em que um deles foi de uma das minhas bandas preferidas, e ainda hoje não sei como não saltei da cadeira de tanto “pular” e como não perdi a voz de tanto cantar.

Foi o ano em que me apaixonei, desapaixonei e voltei a apaixonar, que o meu coração é teimoso o suficiente para conseguir desencantar algumas passagens secretas que a cabeça descuidou.

Foi o ano em que alarguei o meu leque de amizades com um grupo de pessoas com quem antes apenas me cruzaria profissionalmente, e onde encontrei mais do que conversas de circunstância.

2018 desafiou-me a crescer a todos os níveis, pondo-me tantas vezes à prova. Mas foi feito da massa que eu precisava para olhar para 2019 com vontade de voltar a deixar o coração agarrar um bocadinho as rédeas desta viagem, que isto tem sido divertido, e a dar tudo.

Venha ele.



9 de dezembro de 2018

Abre a boca e fecha os olhos



Entrei neste grupo pela mão da Ana P, que conheci em ambiente de trabalho, mas com quem senti uma química tão especial, que rapidamente percebi que ali se desenhava uma amizade para a vida.

Já conhecia alguns dos outros elementos - como a Suzanne, a Ana R, a Michelle, o Luís M, a Vanda, a Isabel, as Sofia T e a Luísa - tudo gente com quem tive a sorte de me ir cruzando neste percurso nas TI que já leva 20 anos. Pouco mais tarde, juntou-se o Manuel, outra amizade longa com que o mundo das Tecnologias me brindou e que tenho mantido por perto.

Jantamos com a regularidade que as vidas permitem, nunca podemos todos, mas lá vamos conseguindo juntar a maioria. E assim conheci o Luís D, a Maria, o Bruno, o Ricardo, o Diogo, as Joanas, o Alexandre. Desafiamo-nos pelo whatsapp, até conseguirmos uma data que encaixe na maioria das agendas - tramadas - que todos temos.

Descobrimos novos restaurantes, divertimo-nos nos rooftops mais badalados, mas o “onde” importa pouco, porque o que conta é relaxar depois de um dia afogado em responsabilidades próprias de malta atarefada, e acabá-lo com uma conversa descontraída e descomprometida, já sem gravatas e sem o filtro que o tempo no escritório tantas vezes impõe.

É sempre bom quando estamos juntos. Mas o último encontro vai ficar marcado no coração de cada um de nós de forma muito especial.

O desafio foi lançado pela Ana R com um “depois de falar com a Marta e com a Ana P, propus um programa diferente para o nosso jantar de Natal: uma experiência única, inesquecível e muito especial. Esta época natalícia pede um encontro que nos permita contar uma história e mostrar como se vê o que não se observa. Estejam atentos ao email.”

A experiência só foi revelada no dia anterior e ia ser brutal: o jantar seria vegetariano, típico sírio, cozinhado pelo Haitham Khatib, refugiado que vive em Portugal há pouco mais de 2 anos, onde trabalha em teatro. Seriamos guiados pela D. Ana, que, depois de uma meningite aos 5 anos, foi perdendo gradualmente a vista, até cegar por completo aos 37. Tudo isto no espaço da Paula Gamito, uma empreendedora de coração gigante que toda a vida promoveu/apoiou causas variadas, e que abraçou os Jantares às Escuras, projeto que criou e que conta com o apoio da Associação Promotora de Emprego de Deficientes Visuais.

À hora marcada tinha o Alexandre à minha espera na garagem da minha empresa para irmos juntos. Pelo caminho aproveitámos para saber mais um do outro, rimo-nos - e o que eu gosto de me rir.

Chegámos cedo à porta do prédio onde ia decorrer o jantar. Esperámos uns pelos outros no hall. Tínhamos mesmo que entrar todos ao mesmo tempo.

A expectativa do que estava para lá daquele rés do chão perdido numa das ruas de Lisboa era grande. 

A porta da casa abriu-se, finalmente. A Paula juntou-se a nós e explicou o que ia acontecer. Com ela vinha a D. Ana. Entrámos quase um a um, sem uma ponta de luz para nos guiar, apenas orientados por uma espécie de brilho que vinha da voz da D. Ana e que nos levou, direitinhos, aos nossos lugares.

Prato a prato, fomos sentindo o sabor de cada ingrediente. Enchemos os copos de vinho e água. E, já agora, a nós também, porque nos faltava a destreza de o fazer sem referências visuais, e o fazíamos recorrendo apenas ao toque.

Sabia que o Alexandre e a Maria estavam ao meu lado, e que ao lado deles estava o Ricardo e a Ana P. Ouvia o Luís D por perto, mas talvez mais perto do Manuel, da Ana R e da Michelle. Não conseguia situar o Diogo, a Joana e a Sofia N e sentia a Suzanne e a Sofia G próximas de nós. Mas, certezas? Quase nenhumas.

Dei por mim muitas vezes em silêncio a tentar perceber, recorrendo aos sons que me chegavam, como era a sala, como estava posicionada a mesa, quem estava onde. Dei por mim muitas vezes apenas focada na entrada e saída silenciosa da D. Ana, que circulava habilmente entre cada um de nós, quase sem nos tocar, sempre com um doce e, ao mesmo tempo, seguro “com licença, Marta, aqui tem o seu prato”, colocando-o delicadamente à minha frente.

Foram mais de 2h de conversas (e tantas gargalhadas) mergulhadas daquela escuridão total, que começaram nervosas, pelo desconhecido e pelo incerto, mas que devagar se foram transformando em tranquilidade e confiança, por sentirmos que estávamos a conseguir ver o que não observávamos.

No final do jantar, a luz de apenas uma vela iluminou a sala. Lá estava a Maria e o Alexandre, ao meu lado, depois o Ricardo e a Ana P, o Luís D logo a seguir. Na mesa seguinte, o Manel, a Ana R, o Diogo, a Joana, a Sofia N, a Michelle. Noutra, atrás da nossa, a Suzanne e a Sofia G.

E foi neste ambiente - quase íntimo - que soubemos um pouco mais sobre a vida da D. Ana e do projeto da Paula, que partilhou, orgulhosa, ter sido ela a empratar cada refeição, sem qualquer luz para a ajudar.

Foi também neste momento que percebi que a minha presença tinha sido mais um desafio lançado à Paula, que se empenhou para que eu me sentisse verdadeiramente integrada na experiência, esforçando-se por eliminar qualquer obstáculo físico que pudesse contaminar a minha experiência.

Antes de sairmos, a última surpresa: conhecermos finalmente o Haithamm, que nos mostrou cada prato que havia preparado para nós e explicou cada ingrediente.

Já na rua, ligámos os telemóveis, que falta nenhuma nos fizeram durante o jantar.

Devo confessar que depois disto tudo, talvez pela intensidade da experiência, e de sentir na pele de forma tão crua uma realidade que não é a minha, me senti mais próxima de cada um dos elementos daquele grupo.

Na despedida, que já era tarde, abraçámo-nos de forma carinhosa e com tempo, e cada um seguiu a sua vida. Mas algo me diz que, daqui em diante, a vamos ver com outros olhos. Literalmente.




3 de dezembro de 2018

Não sou (in) diferente


Deficiente. Nunca gostei desta palavra, talvez por isso cedo a tenha eliminado do meu discurso, mesmo que inconscientemente.

Mas hoje, sendo o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, tenho que a engolir. A ela e à data, que, num mundo justo, não devia existir.

Ter mobilidade condicionada - prefiro estas - em Portugal é ter que escolher onde almoço ou janto com os meus amigos pelos acessos e pela casa de banho.

É não conhecer as ruas do bairro onde vivo há anos. É não poder circular livremente na minha cidade e no meu país. É nunca, mas nunca sair de casa sem antes estudar cada centímetro de chão que vai ser percorrido pelas rodas da minha cadeira quando o fizer. É não conseguir uma casa de férias onde não precise de depender de alguém.

São os restaurantes onde não consigo entrar, os quartos de hotel onde ninguém pensa em mim, os aeroportos que não me sabem receber, os museus que não visito, os cafés onde não entro, as bibliotecas que não conheço, os jardins que não percorro, os cinemas que não me incluem, as praias que não me facilitam acessos, as salas de espetáculos que se esquecem de pensar num lugar para mim, as seções de voto colocadas eleição após eleição em espaços que ficam para lá de escadas.

Ter mobilidade condicionada em Portugal é viver num país que assobia para o lado quando sabe que um cidadão tetraplégico esteve 3 dias deitado numa cama, ao frio, enjaulado, à porta da Assembleia da República, em total exposição pública, e que se manifestava contra o facto de não poder recorrer ao programa Modelo de Apoio à Vida Independente por viver num lar. Já agora, lar esse para onde foi desde que começou a trabalhar e o Estado lhe “cortou” a assistente pessoal que todos os dias o ajudava, privando-o da sua autodeterminação e condenando-o a uma vida indigna.

Há uns dias, em conversa com uma amiga, ela perguntava-me se alguma vez me tinha sentido discriminada.

Podia ter-lhe respondido com tudo isto, mas a pergunta fez-me viajar até àquele dia em que a professora de alemão do secundário se referiu ao esforço que os meus colegas tinham que fazer para chegarmos até à sala de aula com um “eles é que têm que carregar consigo”. Dali saltei para a tarde de praia em que a irmã de um rapaz do meu grupo de amigos de férias me respondeu com um “tu nem da cadeira te levantas”, quando lhe levantei a voz numa discussão parva de adolescentes. Passei ainda pelo dia em que precisei de dizer à seguradora do meu banco que não precisava de agravar o meu seguro em 200% porque eu não ia morrer por estar de cadeira de rodas.

São 27 anos de cadeira de rodas e quase todos os dias passo por uma destas situações. Eu e quase 1 milhão de portugueses que (sobre) vive com algum tipo de limitação, e que não vemos nas ruas porque nem sempre se consegue ultrapassar estas barreiras, sejam elas físicas ou culturais..

Mas ter mobilidade condicionada em Portugal também é sentir na pele esta desigualdade e escolher combatê-la com um sorriso no rosto, como se tivéssemos uma espécie de superpoder que faz com que nunca desistamos. Mesmo perante um país que tantas vezes se esquece de nós e que assiste sem se insurgir à mais desumana das realidades: a indiferença.