14 de outubro de 2017

Não te esqueças de sorrir

O mundo dos sem-abrigo é um mundo em que a droga, o álcool e os problemas psiquiátricos são “reis e senhores”. Quem conhece o ambiente em que me movo às 4ªas feiras percebe o que eu quero dizer.

José, nome fictício, para o proteger. Quando me cruzei com ele na Gare, rapidamente percebi que não encaixava naquela equação. Sempre impecável, sempre educado, sempre discreto, sempre humilde.

Um dia aconteceu ficarmos à conversa e contou-me, finalmente, a sua história. Desavenças familiares, falhas enormes de comunicação e orgulhos em cima da mesa ditaram o afastamento.

Depois disso, o desemprego, outros países, outra vez a vida a virar-lhe as costas. Veio de assalto a falta de capacidade para se endireitar sozinho e, daí até à rua, foi um passo curto.

Ouvi-o, desejei-lhe força e coragem para continuar a enfrentar aquela realidade, e dei-lhe os parabéns por conseguir fazê-lo sempre sem cair nas tentações que a rua esconde a cada esquina. E fui para casa sem conseguir tirar aquilo da cabeça.

Foi naquele momento que me lembrei que, dias antes, vira um post do Vasco no Facebook, a pedir um copeiro para integrar a equipa no seu restaurante, situado numa zona nobre de Lisboa.

No dia seguinte liguei-lhe, arrisquei e perguntei-lhe “Queres dar uma oportunidade ao José? Algo me diz que ele não vai falhar.” Respondeu-me, sem hesitar, “Sim, quero”. Depois disto combinámos o dia para os apresentar e, mais uma vez, o José chegou mais cedo, impecável, educado, discreto e humilde. Já o Vasco chegou nervoso.

Lembro-me de duas coisas que ele lhe disse, logo para começar “O que tenho para ti é trabalho. Estás preparado para trabalhar?”. O José respondeu que sim. E terminou com um “Então amanhã vens ter comigo à porta do hotel, ao meio dia, e vamos ver como corre.”. “Chegarei às 11h”, respondeu o José, já de lágrimas nos olhos. Ele e eu, caraças.

Isto foi em julho. Daí para cá, eu e o Vasco íamos falando com muita regularidade e, sempre que lhe perguntava como estava a correr, ele descansava-me dizendo não podia ter encontrado melhor colaborador: dedicado, esforçado e profissional. “Não te preocupes, continuo 100% satisfeito, Marta!”.

Foi assim que o José saiu da rua e foi assim que a vida dele se começou a endireitar.

Naquele dia em que os apresentei, pedi ao José que me desse o seu número do telemóvel. Como não o sabia de cor, tirou um papel do bolso onde o tinha escrito e, para o conseguir ler, aproximou-o demasiado dos olhos. Percebi que algo de errado se passava e alertei o Vasco: “Assim que conseguirmos, temos que perceber se tem falta de vista.”

Há uns dias, o José deixou-se levar, finalmente, ao médico para fazer exames e sim, tinha falta de vista. A receita acusava, aliás, muita falta de vista. Próximo passo? Arranjar-lhe uns óculos para voltar a ver como deve de ser.

Mais uma vez recorri aos meus contactos e lembrei-me de outro amigo especial, também de há muitos anos, o Nuno, que já tinha respondido ao meu apelo uns dias antes para arranjar roupa ao José. Ele, a Deolinda e o Diogo, estes últimos amigos e colegas de trabalho que, tendo sabido da história, não quiseram ficar de fora e fizeram questão de ajudar a pôr nos eixos a vida de alguém que precisava e, acima de tudo, parecia querer.

Ontem o Nuno enviou-me uma mensagem a dizer “Os óculos estão prontos e pagos. São oferta do Grupo Olhos nos Olhos, loja de Telheiras”, empresa do Fernando Tomaz, sócio-gerente e Optometrista, que “é um dos melhores seres humanos que conheço”. Ele, o Cândido Ramos e o João Martins, também Optometristas e colaboradores do Grupo, que receberam o José de braços abertos no dia de escolher as armações. E acrescentou “Só têm um pedido em troca: que o José seja feliz com os óculos novos.”

Engoli em seco. Agradeci. Liguei ao Vasco, dei-lhe a novidade. “Vou pôr-te em alta voz, o José está aqui ao meu lado, dá-lhe tu a notícia”. E foi-me dado esse privilégio. Do outro lado, primeiro houve silêncio, depois um “obrigado” mais uma vez carregado de humildade. Contou-me o Vasco que, depois disto, o José se agarrou a ele a chorar, de felicidade.

Hoje o José foi buscar os óculos. Ligou-me logo a seguir, mais uma vez para agradecer, e para me dizer que o fim de semana ia ser passado a ver o que há anos não via e tinha vergonha de confessar. 
As cores das flores, o mar. Tudo o que o rodeia. E a ele próprio.

O José voltou a ver como merece. O José voltou a ver e, devagarinho, vai voltando a sorrir.

E eu deito-me todos os dias com a certeza de que a vida só vale a pena quando nos rodeamos de boas pessoas, e que a minha está cheiinha delas.

Ao Vasco, ao Nuno, ao Fernando, ao Cândido, ao João, à Deolinda e ao Diogo: obrigada por estarem atentos e obrigada por estarem por perto.

Ao José, deixo-lhe a mesma mensagem que lhe deixei quando falámos: que ele já não está sozinho.




3 de outubro de 2017

O Rei dos Bolos

Passou por mim de manhã, mais uma vez com o já habitual “há bola, há pão com chouriço, há merenda”. Sempre demasiado carregado, sempre demasiado vestido, sempre vestido de preto.

Disse-me adeus de perto do mar, que a areia ali está mais dura e custa menos andar em cima dela.

Conhece-me desde miúda. E sempre daquela praia.

Depois seguiu o seu caminho, porque tinha que conseguir despachar tudo o que levava. “O negócio anda mal, sabe?”.

O dia avançou, ainda o vi passar para cima e para baixo mais algumas vezes.

Quando me preparava para sair da praia oiço um “menina Martaaaaa?” perto de mim. Reconheci-lhe a voz, olhei para trás e vi-o a aproximar-se. Ri-me e pensei “pronto, lá vem o Sr. Zé dar-me bolas de Berlim e chupa-chupas para os miúdos”. E deu. Mas depois levou a mão à mala e tirou de lá o meu livro.


Sem esperar, respondi com um sorriso envergonhado. “Oh Sr. Zé, que querido…! Dê cá para eu lhe escrever uma dedicatória”.

“Pedi a uma cliente ali da praia ao lado que a conhece para me comprar…”, respondeu-me feliz.

Passou-mo para a mão e, quando me preparava para escrever, disse em voz alta, “Ora bem, Caro Sr. Zé…”. Nesta altura ele interrompeu-me com um “Não, ponha Caro Rei dos Bolos…”.

Soltei uma gargalhada e escrevi. Quando terminei li-lhe a dedicatória: “Caro Rei dos Bolos, espero que encontre sempre o caminho para Ser Feliz e que nunca se esqueça que essa é sempre uma escolha sua. Com beijinho da Marta.”

Olhei para cima, para ele, que lá estava. Como sempre demasiado carregado, como sempre demasiado vestido, como sempre de preto, mas desta vez, a chorar. Tentou disfarçar, agradeceu, guardou o livro, e seguiu caminho.

Não foram raras as vezes que, debaixo de um sol que torra, pensei na vida difícil daquele homem. Enquanto uns aproveitam o dia de praia e se divertem, o Sr. Zé, o Rei dos Bolos, faz quilómetros para lá e para cá, sempre com a mesma cantilena na boca “há bola, há pão com chouriço, há merenda”. E agora também há um livro naquela sacola, que ele mostra a quem, pelo meio de um troco de um bolo, lhe dá 2 dedos de conversa.

Aconteceu hoje. Só que, sem ele saber, desta vez quem o ouvia também me conhecia desde pequena. Pediu-lhe para lhe tirar uma fotografia e enviou-ma. Fez-me o dia. Que, antes disto, tinha sido focado apenas em trabalho e sem tempo para me lembrar que há mais do que contactos, textos para rever e estratégias para definir. Muito mais.

Ser Feliz é, Mesmo, uma Escolha.