28 de dezembro de 2018

Fui feliz em 2018


Há uns dias, antes do Natal, o Nuno ligou, como liga sempre, de há anos para cá.

Trabalhamos juntos mas, para o Nuno, quando queremos mesmo desejar Boas Festas a alguém, pegamos no telefone. E é ele que está certo.

“Tem um Natal feliz e que 2019 seja tudo o que mereces e procuras”. Foi mais ou menos isto. Respondi que lhe desejava o mesmo. E desejo mesmo porque gosto dele.

Tínhamos estado juntos na festa de Natal da empresa e tínhamos ambos saído mais cedo. Ele porque não é de grandes ajuntamentos, eu porque tinha que acordar muito cedo para uma reunião do outro lado da cidade…e porque tinha outra festa à noite que, essa sim, ia acabar tarde. E eu queria estar bem, para a aproveitar até ao fim.

“Não sei como aguentas, na tua pele eu estava morto”, ainda me disse antes de desligar. Eu oiço isto e, a verdade, é que me sinto viva como nunca antes.

2018 foi feito de deixar cair o “eh pá, deve ser giro, mas se calhar é melhor não” e de optar pelo “deve ser giro, por isso vou.”.

Mas também foi um ano especialmente desafiante ao nível profissional, em que tantas vezes me forcei a marcar presença em alguns dos muitos eventos que aconteceram na minha área, porque senti que, indo, me acrescentariam alguma coisa, pessoal ou profissionalmente.

Foi o ano de voltar a estudar, porque o mundo não para e eu gosto de estar por dentro do que se passa à minha volta.

Foi o ano em que me esforcei para andar mais atenta ao que me rodeia, e em que tentei chegar aos que percebi que precisavam da minha ajuda.

Foi o ano em que acompanhei todas as Revenge of the 90s de Lisboa, para onde fiz questão de arrancar sempre sozinha, de táxi, sem hora para voltar, confiando numa equipa que me conhecia há pouco tempo, mas que algo me dizia que me iria receber de forma incrível.

Foi o ano em que fiz a minha primeira viagem de avião com o objetivo de dar uma palestra, e para um sitio onde conheci um grupo de pessoas muito especial e de onde trouxe mais amigos.

Foi o ano em que voltei a nadar no mar quente do nosso sul, e fi-lo com a ajuda de dois miúdos fantásticos que me levaram a andar de gaivota ao fim de mais de 30 anos sem o fazer.

Foi o ano em que festejei os 43 anos de vida rodeada dos meus amigos, ao mesmo tempo que me emocionei ao vê-los a chegar à festa “todos pi-pis”, e carregados de sacos de supermercado com alimentos que deixámos no CASA.

Foi o ano em que assisti a vários concertos - que a música tem um papel fundamental na minha vida - mas em que um deles foi de uma das minhas bandas preferidas, e ainda hoje não sei como não saltei da cadeira de tanto “pular” e como não perdi a voz de tanto cantar.

Foi o ano em que me apaixonei, desapaixonei e voltei a apaixonar, que o meu coração é teimoso o suficiente para conseguir desencantar algumas passagens secretas que a cabeça descuidou.

Foi o ano em que alarguei o meu leque de amizades com um grupo de pessoas com quem antes apenas me cruzaria profissionalmente, e onde encontrei mais do que conversas de circunstância.

2018 desafiou-me a crescer a todos os níveis, pondo-me tantas vezes à prova. Mas foi feito da massa que eu precisava para olhar para 2019 com vontade de voltar a deixar o coração agarrar um bocadinho as rédeas desta viagem, que isto tem sido divertido, e a dar tudo.

Venha ele.



9 de dezembro de 2018

Abre a boca e fecha os olhos



Entrei neste grupo pela mão da Ana P, que conheci em ambiente de trabalho, mas com quem senti uma química tão especial, que rapidamente percebi que ali se desenhava uma amizade para a vida.

Já conhecia alguns dos outros elementos - como a Suzanne, a Ana R, a Michelle, o Luís M, a Vanda, a Isabel, as Sofia T e a Luísa - tudo gente com quem tive a sorte de me ir cruzando neste percurso nas TI que já leva 20 anos. Pouco mais tarde, juntou-se o Manuel, outra amizade longa com que o mundo das Tecnologias me brindou e que tenho mantido por perto.

Jantamos com a regularidade que as vidas permitem, nunca podemos todos, mas lá vamos conseguindo juntar a maioria. E assim conheci o Luís D, a Maria, o Bruno, o Ricardo, o Diogo, as Joanas, o Alexandre. Desafiamo-nos pelo whatsapp, até conseguirmos uma data que encaixe na maioria das agendas - tramadas - que todos temos.

Descobrimos novos restaurantes, divertimo-nos nos rooftops mais badalados, mas o “onde” importa pouco, porque o que conta é relaxar depois de um dia afogado em responsabilidades próprias de malta atarefada, e acabá-lo com uma conversa descontraída e descomprometida, já sem gravatas e sem o filtro que o tempo no escritório tantas vezes impõe.

É sempre bom quando estamos juntos. Mas o último encontro vai ficar marcado no coração de cada um de nós de forma muito especial.

O desafio foi lançado pela Ana R com um “depois de falar com a Marta e com a Ana P, propus um programa diferente para o nosso jantar de Natal: uma experiência única, inesquecível e muito especial. Esta época natalícia pede um encontro que nos permita contar uma história e mostrar como se vê o que não se observa. Estejam atentos ao email.”

A experiência só foi revelada no dia anterior e ia ser brutal: o jantar seria vegetariano, típico sírio, cozinhado pelo Haitham Khatib, refugiado que vive em Portugal há pouco mais de 2 anos, onde trabalha em teatro. Seriamos guiados pela D. Ana, que, depois de uma meningite aos 5 anos, foi perdendo gradualmente a vista, até cegar por completo aos 37. Tudo isto no espaço da Paula Gamito, uma empreendedora de coração gigante que toda a vida promoveu/apoiou causas variadas, e que abraçou os Jantares às Escuras, projeto que criou e que conta com o apoio da Associação Promotora de Emprego de Deficientes Visuais.

À hora marcada tinha o Alexandre à minha espera na garagem da minha empresa para irmos juntos. Pelo caminho aproveitámos para saber mais um do outro, rimo-nos - e o que eu gosto de me rir.

Chegámos cedo à porta do prédio onde ia decorrer o jantar. Esperámos uns pelos outros no hall. Tínhamos mesmo que entrar todos ao mesmo tempo.

A expectativa do que estava para lá daquele rés do chão perdido numa das ruas de Lisboa era grande. 

A porta da casa abriu-se, finalmente. A Paula juntou-se a nós e explicou o que ia acontecer. Com ela vinha a D. Ana. Entrámos quase um a um, sem uma ponta de luz para nos guiar, apenas orientados por uma espécie de brilho que vinha da voz da D. Ana e que nos levou, direitinhos, aos nossos lugares.

Prato a prato, fomos sentindo o sabor de cada ingrediente. Enchemos os copos de vinho e água. E, já agora, a nós também, porque nos faltava a destreza de o fazer sem referências visuais, e o fazíamos recorrendo apenas ao toque.

Sabia que o Alexandre e a Maria estavam ao meu lado, e que ao lado deles estava o Ricardo e a Ana P. Ouvia o Luís D por perto, mas talvez mais perto do Manuel, da Ana R e da Michelle. Não conseguia situar o Diogo, a Joana e a Sofia N e sentia a Suzanne e a Sofia G próximas de nós. Mas, certezas? Quase nenhumas.

Dei por mim muitas vezes em silêncio a tentar perceber, recorrendo aos sons que me chegavam, como era a sala, como estava posicionada a mesa, quem estava onde. Dei por mim muitas vezes apenas focada na entrada e saída silenciosa da D. Ana, que circulava habilmente entre cada um de nós, quase sem nos tocar, sempre com um doce e, ao mesmo tempo, seguro “com licença, Marta, aqui tem o seu prato”, colocando-o delicadamente à minha frente.

Foram mais de 2h de conversas (e tantas gargalhadas) mergulhadas daquela escuridão total, que começaram nervosas, pelo desconhecido e pelo incerto, mas que devagar se foram transformando em tranquilidade e confiança, por sentirmos que estávamos a conseguir ver o que não observávamos.

No final do jantar, a luz de apenas uma vela iluminou a sala. Lá estava a Maria e o Alexandre, ao meu lado, depois o Ricardo e a Ana P, o Luís D logo a seguir. Na mesa seguinte, o Manel, a Ana R, o Diogo, a Joana, a Sofia N, a Michelle. Noutra, atrás da nossa, a Suzanne e a Sofia G.

E foi neste ambiente - quase íntimo - que soubemos um pouco mais sobre a vida da D. Ana e do projeto da Paula, que partilhou, orgulhosa, ter sido ela a empratar cada refeição, sem qualquer luz para a ajudar.

Foi também neste momento que percebi que a minha presença tinha sido mais um desafio lançado à Paula, que se empenhou para que eu me sentisse verdadeiramente integrada na experiência, esforçando-se por eliminar qualquer obstáculo físico que pudesse contaminar a minha experiência.

Antes de sairmos, a última surpresa: conhecermos finalmente o Haithamm, que nos mostrou cada prato que havia preparado para nós e explicou cada ingrediente.

Já na rua, ligámos os telemóveis, que falta nenhuma nos fizeram durante o jantar.

Devo confessar que depois disto tudo, talvez pela intensidade da experiência, e de sentir na pele de forma tão crua uma realidade que não é a minha, me senti mais próxima de cada um dos elementos daquele grupo.

Na despedida, que já era tarde, abraçámo-nos de forma carinhosa e com tempo, e cada um seguiu a sua vida. Mas algo me diz que, daqui em diante, a vamos ver com outros olhos. Literalmente.




3 de dezembro de 2018

Não sou (in) diferente


Deficiente. Nunca gostei desta palavra, talvez por isso cedo a tenha eliminado do meu discurso, mesmo que inconscientemente.

Mas hoje, sendo o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, tenho que a engolir. A ela e à data, que, num mundo justo, não devia existir.

Ter mobilidade condicionada - prefiro estas - em Portugal é ter que escolher onde almoço ou janto com os meus amigos pelos acessos e pela casa de banho.

É não conhecer as ruas do bairro onde vivo há anos. É não poder circular livremente na minha cidade e no meu país. É nunca, mas nunca sair de casa sem antes estudar cada centímetro de chão que vai ser percorrido pelas rodas da minha cadeira quando o fizer. É não conseguir uma casa de férias onde não precise de depender de alguém.

São os restaurantes onde não consigo entrar, os quartos de hotel onde ninguém pensa em mim, os aeroportos que não me sabem receber, os museus que não visito, os cafés onde não entro, as bibliotecas que não conheço, os jardins que não percorro, os cinemas que não me incluem, as praias que não me facilitam acessos, as salas de espetáculos que se esquecem de pensar num lugar para mim, as seções de voto colocadas eleição após eleição em espaços que ficam para lá de escadas.

Ter mobilidade condicionada em Portugal é viver num país que assobia para o lado quando sabe que um cidadão tetraplégico esteve 3 dias deitado numa cama, ao frio, enjaulado, à porta da Assembleia da República, em total exposição pública, e que se manifestava contra o facto de não poder recorrer ao programa Modelo de Apoio à Vida Independente por viver num lar. Já agora, lar esse para onde foi desde que começou a trabalhar e o Estado lhe “cortou” a assistente pessoal que todos os dias o ajudava, privando-o da sua autodeterminação e condenando-o a uma vida indigna.

Há uns dias, em conversa com uma amiga, ela perguntava-me se alguma vez me tinha sentido discriminada.

Podia ter-lhe respondido com tudo isto, mas a pergunta fez-me viajar até àquele dia em que a professora de alemão do secundário se referiu ao esforço que os meus colegas tinham que fazer para chegarmos até à sala de aula com um “eles é que têm que carregar consigo”. Dali saltei para a tarde de praia em que a irmã de um rapaz do meu grupo de amigos de férias me respondeu com um “tu nem da cadeira te levantas”, quando lhe levantei a voz numa discussão parva de adolescentes. Passei ainda pelo dia em que precisei de dizer à seguradora do meu banco que não precisava de agravar o meu seguro em 200% porque eu não ia morrer por estar de cadeira de rodas.

São 27 anos de cadeira de rodas e quase todos os dias passo por uma destas situações. Eu e quase 1 milhão de portugueses que (sobre) vive com algum tipo de limitação, e que não vemos nas ruas porque nem sempre se consegue ultrapassar estas barreiras, sejam elas físicas ou culturais..

Mas ter mobilidade condicionada em Portugal também é sentir na pele esta desigualdade e escolher combatê-la com um sorriso no rosto, como se tivéssemos uma espécie de superpoder que faz com que nunca desistamos. Mesmo perante um país que tantas vezes se esquece de nós e que assiste sem se insurgir à mais desumana das realidades: a indiferença.





26 de agosto de 2018

Com o sal do sul no corpo


Devo confessar que vou sempre de coração nas mãos para férias. E não é só porque sonho com elas o ano inteiro e quero que corram bem. É porque têm tanto por onde correr mal, que eu, virginiana pura, mergulho com demasiada facilidade em preocupações profundas e por antecipação, mesmo sabendo que não posso controlar o mundo.

É uma espécie de “filme de ação” que arranca em março, quando inicio a procura da casa ideal para férias. E a casa ideal para férias fica no sul do país, mínimo T2, acesso para mim (wc, quarto com cama alta, piscina com degraus para entrar), e permitir animais, porque o Chico faz parte desta família, como todos os nossos cães fizeram, e vem sempre connosco, como os outros vieram. Cereja no topo do bolo: que esteja dentro do orçamento familiar. Depois de uma procura exaustiva, a decisão final é sempre tomada por todas.

Nos meses que se seguem, e já com a casa reservada, gostamos de passar algum tempo a olhar para as fotos da eleita, e a imaginar como serão os pequenos almoços lá fora, os mergulhos na piscina, os grelhados ao fim do dia, qual o melhor caminho para a praia, encontrar restaurantes perto onde valha a pena ir e onde, claro, aceitem que levemos o Chico connosco.

Depois de fechado o local da estadia, chega a altura de me preocupar com aquilo que mais gosto de fazer no Algarve: ir a banhos. Será que a praia está em condições? Será que o tiralô (carrinho anfíbio que me leva até ao mar) está operacional? Será que o wc está a funcionar e limpo? Será que os Nadadores Salvadores deste ano são simpáticos? Estarão eles preparados para me ajudarem, sem eu sentir que sou uma espécie de mono e que estão a fazer-me um favor?

A verdade é que, no ano passado, a coisa não correu da melhor forma. O wc estava lá, mas também estava sempre imundo ou ocupado por quem dele não precisava, o tiralô existia, mas sem qualquer manutenção, havia Nadadores Salvadores impecáveis, mas com horários fixos para nos levar ao banho, entre outros problemas.

ver artigo sobre o ano passado

Durante todo o ano tentei contactar a entidades competentes (INR, neste caso), alertando para o que menos bem tinha corrido e a disponibilizar-me para ajudar a repensar estes acessos. Em vão, porque nunca me responderam.

Também por isso fui a medo lá para baixo. Se estivesse tudo igual ao ano passado, avizinhavam-se dias de stress e ia acabar por me chatear para conseguir usufruir do mar em pleno. Mas arrisquei e não mudei de praia.

Antes de descer até ao areal, decidi espreitar a casa de banho do bar. Abri a porta, pelo sim, pelo não, já sem respirar pelo nariz, e qual não foi o meu espanto quando percebi que estava tudo impecavelmente limpo, sem grão de areia no chão ou no lavatório, e a cheirar a lavado. Dirigi-me ao bar e disse ao que me pareceu o dono do bar “não sei se foi sorte, mas devo dizer-lhe que nunca vi a casa de banho tão limpa. Obrigada por isso.”. O homem agradeceu, um bocadinho envergonhado, mas visivelmente orgulhoso. É o novo concessionário daquela praia, e fica naturalmente contente quando o elogiam.

O dia estava de escalda, o mar chão e a uma temperatura que pedia que entrássemos nele. Da ponta do passadiço, vejo uma praia ordenada, organizada, como nos outros anos. Os colmos destinados para clientes com mobilidade reduzida continuam no mesmo sítio: logo à entrada da praia, quando o que diz o requisito de “praia acessível” é que estes estejam “o mais próximo possível do mar”. Mas não estão. Respiro fundo e desço a rampa que me leva até ao meu colmo.

Ao longe, vejo o tiralô, estrategicamente estacionado perto da bandeira. Um pouco abaixo, os Nadadores Salvadores da praia. Olho com mais atenção e reconheço dois deles do ano passado, o João e o Rúben, que rapidamente se aproximam, me cumprimentam com um “Olá!” familiar, me apresentam aos outros elementos da equipa, e me perguntam “é para ir já lá para dentro?”. Respondo que sim, e gosto que eles se lembrem exatamente do que me leva até àquela praia todos os anos: ir ao mar.

Minutos depois, estou lá dentro com eles, entre gargalhadas e conversas parvas. No meio da palhaçada, olho para as a famosas “gaivotas” e comento que “há anos que não ando numa coisa daquelas…”. Quando dou por mim estou à beira mar, no tiralô, e ao meu lado a equipa de Nadadores Salvadores e de apoio às “gaivotas” a posicionarem uma para me colocarem lá dentro.

30 anos depois, com 42 anos, volto a fazer algo que só fazia em miúda, em Sesimbra. E mais, com a Carlota a comandar os destinos “do bicho” e, com dois elementos a acompanhar-nos com a prancha.

Comecei por vos dizer que fui a medo lá para baixo. E a verdade é que vou sempre, porque, na minha condição, ir – seja onde for - implica perder o controlo da situação e “entregar-me” um bocadinho à sorte. Neste caso, faço-o ao mesmo tempo em que me refugio no facto de não ir sozinha. Aconteça o que acontecer, resolve-se.

Mas depois destes dias, vou voltar. Espero que cada vez menos de coração nas mãos e cada vez mais com o sal do sul no corpo.



30 de julho de 2018

Parabéns, faço 20 anos.


Desta vez deixei passar a data. Mas apenas por dois dias.

28 de julho de 1998. Eu, uma pita de 23 anos, que só pensava em praia e saídas com amigos.

Já tinha 7 anos de cadeira de rodas no lombo, mas o meu mundo rolava numa boa, sem stresses e sem traumas do acidente.

Um dia, depois de torrar ao sol durante horas, fui a uma entrevista. “A minha empresa está à procura de alguém para começar a fazer a ligação com os media”, disse-me a Ana, uma amiga que trabalhava na Novabase.

“Novabase?”, perguntei. Nunca tinha ouvido falar. Na minha cabeça só havia espaço para um nome: SIC. Era o sonho de miúda. Ser jornalista e de televisão. Quando apareceu a SIC, ser jornalista de televisão e na SIC. Mais concretamente, apresentar o Jornal da Noite.

Mas fui. Vesti uma camisa da minha mãe, para não ir com pinta de quem tinha acabado de sair da praia, e lá fui.

Guess what? Falei pelos cotovelos, expliquei que não percebia da poda, mas que era uma miúda esperta e que aprendia. E que se o objetivo era ter conversa e conseguir fazer pontes, eu era a aposta certa.

Quiseram-me. Fiquei. A minha cadeira não foi tema de conversa.

Estávamos em julho de 1998 e, a partir daquele dia, passei a fazer parte de uma empresa que já tinha algum nome no mercado das Tecnologias da Informação, que contava com 200 colaboradores e que operava em alguns países fora de Portugal.

De lá para cá tudo mudou: o mundo, para começar, e a Novabase, porque sempre o acompanhou. Hoje somos mais de 2000 - ou, como diz o meu CEO, 2044, porque cada pessoa conta - e estamos espalhados por quase todos os continentes. Lá dentro sou a Marta do Marketing, mesmo sendo mais da Comunicação.  

Mas também sou a Marta que passou por tudo com a empresa. Que esteve lá quando os resultados foram bons, que se manteve quando eles não foram assim tão bons. Que conhece quem esteve antes, depois e quem está agora.

Há uns dias entrou um colega, que já tinha passado pela Novabase no início da carreira, mas que saiu atrás de outras oportunidades. Contaram-me que quando lhe disseram que ele ia ter uma reunião com o Marketing perguntou “a Marta ainda lá está?” Sim, estou.

Nestes 20 anos, encontrei pessoas que se entranharam na minha vida, que faço questão de que dela não saiam mais. Outras que saíram, porque também eu fiz questão disso.

Às vezes perguntam-me “como é que eu estás há tanto tempo na mesma empresa?”. E eu respondo “porque me sinto bem, porque me fazem sentir bem, porque sou feliz e gosto daquilo que faço.”

E acrescento que “mas mudarei, sim, se isto deixar de ser bom para todos e, principalmente, se isto deixar de ser bom para mim”. Até lá, vivemos esta espécie de romance, com altos e baixos (como todos os romances), mas em que os altos conseguem sempre superar os baixos. 

Há 4 datas que comemoro na minha vida: 21 setembro de 75, dia em que nasci, 11 de março de 91, dia em que sobrevivi a uma intoxicação por monóxido de carbono, 18 de janeiro de 2005, dia em que decidi entregar-me nas mãos dos médicos com uma septicémia grave, e este 28 de julho de 1998, dia em que entrei na Novabase.

Não sei se virão de lá mais 20 - porque a vida já me ensinou a viver mais devagar para a aproveitar o momento – mas estes já ninguém mos tira.

Parabéns a mim e, já agora, parabéns à Novabase. 😉




20 de julho de 2018

Mundo justo procura-se. Dá-se recompensa.


Recebo um convite para um evento da minha área, a da Comunicação. Quem o envia é uma mulher que admiro, pessoal e profissionalmente, que tem vindo a dar cartas no mundo dos media e - que sorte - é minha companheira de palhota de praia. Não quero mesmo faltar, é um passo importante na vida de uma amiga, quero estar por perto.

Vou à agenda e vejo que tenho uma reunião que promete terminar para lá da hora prevista para o início do evento. Reorganizo a semana para poder fazer essa reunião noutro dia. Resolvido.

Olho de novo para o convite, para perceber onde vai decorrer. Cinema São Jorge. Quase 70 anos de história e eis que se acende aquela luz que se acende sempre que tenho que me deslocar, em particular a um espaço tão antigo. A probabilidade de não estar preparado para me receber é ainda maior, há que averiguar antes de ir.

Ligo para o contacto geral, atende-me uma colaboradora simpática a quem pergunto “o São Jorge tem acesso para pessoas que se deslocam numa cadeira de rodas?”. A resposta vem pronta “temos sim, temos as plataformas elevatórias, casa de banho e lugares reservados nas salas”. Fico nas nuvens e remato com uma última pergunta “e há lugar de estacionamento perto do cinema?”, parecendo eu que sabia que vinha dali chumbo grosso. “Sabe, haver havia, mas a Câmara substituiu-o por uma estação de bicicletas Gira e deslocou o lugar para deficientes dez metros para a frente…”.

“Espera, Marta, ouviste mal…”, ainda penso, e peço para repetir. Mas não. A Câmara Municipal de Lisboa decidiu afastar o local reservado a pessoas com mobilidade reduzida que havia mesmo em frente ao São Jorge e colocar bicicletas no seu lugar. Faço uma pausa de três segundos na conversa e esforço-me para que não me saia uma asneira cabeluda pela boca fora. Respiro fundo, ao mesmo tempo que respondo quase entre dentes “pois, é uma vergonha, e peço-lhe que passe o meu desagrado à direção do São Jorge”. Conto o episódio nas minhas redes sociais e rapidamente o cinema me responde que esta foi uma decisão exclusiva do município e que pouco pode fazer, mas que dentro do edifício tenho asseguradas todas as condições necessárias.

No dia, lá vou eu, acompanhada por uma amiga que já conhece de cor os malabarismos que precisamos de fazer se formos surpreendidas por escadas ou casas de banho onde nem sequer entra a cadeira. Chegamos com uma hora de atraso porque o trânsito de Lisboa se tornou caótico nos últimos anos. O lugar de estacionamento está, claro, ocupado por quem dele não precisa, mas bloqueado – e bem - pela EMEL. Arranjamos outro, por sorte, muito perto, mas não prioritário.

Assim que me aproximo da entrada principal, sou imediatamente abordada por dois membros do staff que me encaminham até à 1ª plataforma. Quando olho para ela percebo que está nova, o que bate certo com o que outra amiga me tinha dito sobre a recente aposta em acessibilidades feita por aquele espaço. “Está a estreá-la”, comenta o rapaz, não escondendo a felicidade de ver aquilo a funcionar e a ser útil. O sol brilha, as borboletas voam felizes, os passarinhos cantam e está tudo perfeito, não está? Não, não está. Quando olho para o espaço onde era suposto a plataforma terminar o percurso, percebo que é também o espaço onde está montada a esplanada do quiosque que fica no patamar do cinema. Toca de levantar os clientes, arredar as mesas e os bancos para eu passar. Uma maravilha. Do mais digno que há.

Já no hall do edifico, dirijo-me à 2ª plataforma, para poder ter acesso à sala onde ainda decorre a apresentação. Assim que olho para o final das escadarias, e mais uma vez para o espaço onde devo “estacionar” a plataforma, reparo em toda a parafernália da equipa de som que, à pressa, a desvia. A minha amiga, já tão ou mais em brasa quanto eu, comenta “e estavam à tua espera, imagina se não estivessem.”.

E a questão é mesmo esta. Quem, como eu, se desloca de cadeira de rodas, precisa de planear a sua vida ao minuto, antes de sair de casa. E precisa porque, se não o fizer, vão surgir (ainda mais) obstáculos por toda a parte. Alguns que se conseguem ultrapassar, outros que nem com toda a boa vontade do mundo se resolvem. Faço-o há 27 anos, tentando prever, e precaver-me, de cada situação que possa surgir e transformar a minha vida num inferno. Por vezes, “viver ao sabor do vento” é bom, no meu caso é impossível.

Deste dia destaco, no entanto, a disponibilidade para me ajudar da parte de todos os que comigo se cruzaram. Agradeço, mesmo, saibam, mas, perdoem-me, não chega. E não chega porque eu não quero ter que gritar para o mundo inteiro ouvir cada vez que decido pôr uma roda fora de casa. Não chega porque eu não quero ter que me chatear cada vez que chego a algum lado e me deparo com faltas de sensibilidade para o tema da mobilidade reduzida. Faltas de sensibilidade que são tantas vezes faltas de respeito, como é o caso da substituição do lugar reservado a pessoas com mobilidade reduzida pela estação de bicicletas, ao que parece, mais importantes que eu. Eu, que trabalho e desconto cada cêntimo que o Estado me impõe, e que deveria de ter o direito a usufruir do meu país e da minha cidade como qualquer outra pessoa. Eu, tão cidadã como os outros, mas que continuo a ser tratada como cidadã de 2ª.

Já disse isto milhares de vezes, mas vou voltar a fazê-lo, para ver se alguém me ouve: enquanto esta for uma luta das “Martas desta vida”, não vamos longe. Enquanto as queixas forem feitas apenas por quem vive de perto uma limitação, isto não muda. O famoso Livro de Reclamações está disponível para todos, online e em papel. Hoje em dia, até apps que simplificam o processo de fazer uma denúncia existem. É o caso da “+ Acesso”, lançada recentemente pela Associação Salvador, e que qualquer pessoa pode ter instalada no seu smartphone, ao lado do Instagram, do Facebook e de outras aplicações que se tornaram imprescindíveis na vida de tantos. Já não há desculpas para não sermos todos cidadãos atentos, preocupados e solidários. Com ou sem limitações físicas.

Visto-me de branco por Timor, envio roupas e alimentos para Pedrogão Grande, compro Pirilampos Mágicos, vendo livros em 2ª mão para ajudar associações de crianças com Trissomia 21, distribuo refeições a Pessoas em Condição de Sem Abrigo. Para além disso, disponibilizo-me para levar o lema “Ser Feliz é Uma Escolha”, título que escolhi para o livro que conta a história da minha vida, o mais longe que posso. Desdobro-me com uma vontade gigante de tentar minimizar o sofrimento de quem está do outro lado. Não era altura de sermos muitos mais a pensar no tema das acessibilidades e a lutar para que elas se tornassem universais, fazendo do mundo um lugar um pouco mais justo para todos?



14 de junho de 2018

“Conhecemo-nos há pouco tempo, mas houve aqui qualquer coisa...”



Agradecemos pouco. Deixamos a vida passar rápido demais e não nos lembramos de o fazer.

Começamos o dia a mando do despertador e com os minutos contados. O meu toca quase sempre um pouco antes das 7h. A partir daí, é sempre a abrir: 10 minutos para o pequeno almoço, 5 para o banho, 30 para me vestir e maquilhar, 10 para deixar a casa em ordem, quase 1 hora para o caminho até à empresa.

1ª reunião, sessão de fotos, almoço com colega, 2ª reunião. Quando dou por mim são quase 7 da tarde e termino o dia de trabalho a mergulhar num projeto de responsabilidade social que me inunda o coração de ternura e que reforça a minha esperança no ser humano.

Táxi atrasado, aproveito e arrumo mais uns emails antes de sair, para me distrair. Mas não consigo evitar: os “fornicoques” para chegar à festa são lixados.

Já a caminho, comento com o motorista, que me conhece os hábitos, que vou festejar os Santos Populares para o Campo Pequeno. “Campo Pequeno?” pergunta ele, sabendo que dali não vinha nenhuma tradição. Respondo que é o 2º ano que a equipa Revenge of the 90’s organiza um arraial naquelas bandas, e que desta vez esperamos umas 20 mil pessoas. E digo “esperamos” sem esconder o orgulho de sentir que faço parte da equipa. “Então e depois como é que vai para casa?”, pergunta-me. Descanso-o dizendo-lhe que combinei ligar para outro senhor que trabalha durante a noite, que no limite tenho que esperar um pouco porque é noite de Santos e não se fazem marcações, mas que se for preciso espero, sem problema. Responde-me “ligue-me que eu venho busca-la. É só o tempo de tomar um duche, vestir-me e venho. Quem começa a trabalhar às 6h, começa às 5h.”. Percebi que nem valia a pena tentar dissuadi-lo, restou-me agradecer, muito, e aceitar.

Estaciona, tira-me do carro e fecha-o, porque me quer deixar mesmo no sítio “onde estão os seus amigos.” Mais uma vez sem hipótese, agradeço. Nesta altura aproximam-se 2 seguranças e dizem “podemos ajudar? Nós levamo-la.” Olho para o motorista, e ele para mim sem tirar as mãos da minha cadeira, aceno positivamente, ele liberta-a e lá me deixa com aqueles dois homens que, do nada, quiseram ajudar. “Ligue-me 30 minutos antes de se querer vir embora, que eu venho.”, relembrou ainda.

Entro na festa, encontro amigos em todo o lado, gente que não via há anos, outros tantos com quem combinei ali estar. Reparo no varandim, estrategicamente colocada pela produção perto da zona VIP, e na rampa que lhe dá acesso. “O palco é mais pequeno, desta vez pode ser mais arriscado ires lá para cima, mas daqui vês tudo e estás perto de um wc adaptado, se precisares”, diz-me alguém da equipa que sabe que são questões fundamentais para mim. Isto deixa-me descansada, eu que arranco sempre sozinha para estas festas, fazendo questão de não estar dependente de ninguém mas que, para que tudo corra bem, preciso de algumas condições. Ali estavam todas asseguradas e por pessoas que me conhecem há pouco mais de 6 meses.

Por opção, decido ir antes para a frente de palco, situado no lado oposto, onde o meu grupo de amigos estacionou, deixando para pensar em como chegar ao wc apenas na altura em que precisar. Quem me conhece, não me reconhece nesta decisão, eu que, por regra, quero tudo planeado ao minuto e com antecedência.

Danço, canto, como nunca cantei ou dancei, e até descubro que sei mais letras de música pimba do que aquilo que esperava. Algumas horas depois, torna-se inevitável: preciso de uma casa de banho. Pergunto a outro membro da equipa qual a melhor forma de lá chegar. 10 minutos depois tenho outros 2 seguranças prontos para afastar 20 mil pessoas até ao espaço preparado para mim. Uma aventura, que acaba bem, comigo pronta para mais algumas horas de pura diversão.

A certa altura já não aguento o frio (e de levar com os confetis), por isso recolho-me na tenda de apoio ao palco, onde me continuo a divertir à grande. Quando dou conta, sou rodeada por parte da equipa, que me pega na cadeira e me sobe até ao palco, onde outros já puxavam, como fazem sempre, pelo público. De repente, aquele espaço, que antes era pequeno e arriscado, ficou enorme e seguro com olhos deles postos em cima de mim. Não estava previsto e eu percebia porquê, fui apanhada desprevenida, mas a verdade é que a minha noite ganha outro colorido vivida dali. E eles sabem disso.

Um arraial - de quem nunca ligou “pêva” a arraiais - que teve direito ao jantar trazido pela Andreia, às garrafas de água sempre perto, graças ao Tiago, à alegria da Sandra e da Isabel, ao “conhecemo-nos há pouco tempo, mas houve aqui qualquer coisa...” da Mané, à ternura do Miguel, aos high-five do Paulo, à graça da Mória, às piadas dos Brunos, ao sorriso da Tatiana, à loucura boa do Dúdú, à cara “Marta, és doida” do Véstia, e às 234 vezes em que respondi a vários membros da equipa “sim estou ótima, não preciso de nada, obrigada”.

Uma noite em que terminei aquecida pelo blusão do vizinho da frente que não acreditou quando me viu “a correr de um lado para o outro no palco”, com quem partilhei o táxi para a casa, numa conversa boa que fez com que ele deixasse de ser “o vizinho da frente, porreiro, com uma família gira”, para ser o Kiko.

Nunca o meu colo foi tão de tantos como ontem. Mas o que eles não sabem ainda, é que os seus colos também já são um bocadinho meus.

A todos os que me deram isto tudo, retribuo com um OBRIGADA assim, grande, para que se veja e sinta, de jeito.

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1 de junho de 2018

A vingança dos anos 90

Devo confessar que resisti um bocadinho a dedicar uma crónica a este tema. Não porque tivesse alguma dúvida que o tema o merecesse, mas porque receei que fosse considerado interesse próprio e ser alvo de interpretações erradas. Contudo, a vida também já me ensinou a marimbar-me para aquilo que os outros pensam e, por isso, cá está: esta crónica é dedicada à “the one and only” Revenge of the 90’s, o maior acontecimento dedicado aos anos 90 que Portugal já alguma vez viu e, quem sabe, o mundo.
Mas antes, o melhor é mesmo começar pela declaração de interesses: faço parte da equipa de relações públicas dos Revenge of the 90’s, missão que desempenho com dedicação e, acima de tudo, um orgulho enorme.
Como diria o Netinho, cantor brasileiro, na sua noventeira música “Oh Mila”, “tudo começou há um tempo atrás” (sendo que o “atrás” está aqui a mais, bem sei, mas também não vou ser eu a acordá-lo para a dura realidade gramatical), numa festa de Natal de empresa.
Ver texto completo no Delas.

12 de maio de 2018

Às minhas enfermeiras


Uma das memórias mais duras - mas também das mais bonitas - que guardo do que passei com as minhas enfermeiras aconteceu no dia de ida ao bloco. 

Horas antes, os médicos tinham-me avisado que de era preciso abrir a minha perna para ver, porque desconfiavam que a bactéria estava a gozar do conforto da cabeça do meu fémur. Mas era preciso abrir para ter a certeza.

Andávamos em luta com a bactéria que me tinha entrado pelo corpo adentro através de uma ferida  e que me tinha atirado para uma septicemia há muitos meses. O meu corpo já tinha perdido grande parte da sua energia e aquele momento de febre ao fim do dia, levava-lhe o resto, devagarinho. Apesar de não querer entregar os pontos, confesso que houve uma altura que achei que isso que ia acabar por acontecer.

Não me deram pequeno almoço, deixaram-me passar uma toalha perfumada pelo corpo, lavar os dentes e pentear-me. Tiraram-me a t-shirt colorida que a minha mãe me tinha trazido, vestiram-me uma bata que atava nas costas. Vi-as fazer tudo devagar. No ar quase que se conseguia ouvir uma espécie de música de fundo tranquila, que acompanhava os passos delas em câmara lenta.

Era agora ou nunca. Ou saía do bloco pronta para recomeçar, ou saía sem perna, ou sem solução à vista. Engoli em seco quando percebi que aquele era “o” momento. Mas pedi para irmos. Queria voltar a sentir-me bem, queria retomar a minha vida.

Saí do quarto, percorri o corredor deitada na cama, sem saber como regressaria. O pensamento foi tão básico como: “Marta, mais vale viveres sem uma perna do que morreres.” Nestas alturas, o meu corpo não se perde em grandes considerações e não viaja na maionese, prefere antes focar-se no essencial. Era só isto que me ocupava o espírito.

Encostadas às paredes daquele corredor, lá estavam elas. Vestidas de branco, quietas, de olhos postos em mim, e de mãos em cima dos meus lençóis, enquanto algumas quebravam o silêncio para me sussurrarem baixinho: “vai correr tudo bem”, “força, miúda”, “até já”, “ficamos à tua espera”. Foi neste momento que tive a certeza de que estava rodeada de anjos.

A verdade é que voltei. E voltei com a certeza quase absoluta de que tinham conseguido eliminar aquele bicho que havia decidido que eu era um bom petisco e que insistia em não me deixar em paz há tanto tempo. Até ao dia em que, naquele bloco operatório, conseguiram enfraquecê-lo e expulsá-lo do meu corpo para sempre.

Já em casa, os meses seguintes foram de grande ansiedade, até percebermos que a coisa era mesmo assim, e que ele não ia voltar. Houve alguns avanços e muitos recuos, que mais uma vez só foram possíveis de ultrapassar, porque as minhas enfermeiras estiveram lá. E, à cabeça, uma que viveu cada segundo como se tudo se passasse também no corpo dela.  A Zezinha.

Pela manhã, sempre muito cedo, sem falhar, a Zezinha subia no elevador com um saco de tratamento maior do que ela, cheia de produtos novos que não se cansava de experimentar em mim, fazendo com que o meu corpo acabasse por reagir e voltasse a querer agarrar o mundo com as duas mãos

Foi a ela que me fez acreditar que aquilo não passava de um momento mau. Com a sua genica, com a sua experiência, com a sua sensibilidade, com a sua empatia, com o seu amor. E, mesmo quando ela própria teve dúvidas se a minha história ia acabar bem – algo que mais tarde veio a confessar que teve –, jamais o deixou transparecer.

Gosto de pensar que os médicos me salvaram o corpo, mas os enfermeiros, esses, salvaram-me a alma. Por isso, todos os dias, por muitos que viva e cheia de saúde, jamais esquecerei o que fizeram por mim.

A todos: só foi possível porque vocês nunca desistiram. 

Obrigada.


Ilustração feita por Rita Salgueiro em 2008

26 de abril de 2018

O jogo da (minha) cadeira (de rodas)

As semanas anteriores a ter que voar são quase sempre de algum desconforto. A verdade é que não gosto de sair do chão nem de saber que a minha cadeira vai longe de mim e que algo lhe pode acontecer. Ou de sentir que se precisar de ir à casa de banho a meio da viagem, vai ser um circo. Por isso, durante os dias que antecedem uma viagem de avião, ando ansiosa e a pedir lá “pra” cima que a hora do regresso chegue rápido.
Chego ao aeroporto com a minha mãe duas horas antes do voo.
Balcões de check-in vazios, ótimo, posso escolher. Opto pelo que tem a colaboradora mais velha, acreditando que me vai ajudar o facto de ser experiente. Entrego o bilhete eletrónico e explico que quero ir na minha cadeira até ao avião, que foi isso que combinei quando comprei o bilhete.
A senhora levanta-se, empoleira-se na caixa do check-in, olha atentamente para a minha cadeira, abana as mãos e a cabeça ao mesmo tempo e pergunta “consegue andar ou…” Respiro fundo – percebo que tenha que fazer a pergunta, mas encanita-me da mesma forma – respondo “paraplégica”. E sorrio.
Ver texto completo no Delas.


11 de março de 2018

#BestFriendsForever

E num telefonema, numa mensagem, junta-se tudo. Com muitos deles, quase um ano depois da última vez.
São os amigos. Os que sabem tudo sobre nós. Os que vivem de perto os momentos bons, e ainda mais de perto os outros, os menos bons. Os que perguntam sempre como estamos, apesar de saberem de cor se estamos bem ou mal só de olharem para nós. Os que acabam as nossas frases. Os que deliram com as nossas piadas parvas e respondem com outras, ainda mais parvas. Os que nos defendem até ao fim. Os que nos colocam no trilho de novo, a bem ou a mal, se sentirem que nos desviámos daquilo que sabem que temos cá dentro.
Ver texto completo no Delas.

20 de fevereiro de 2018

O teu umbigo não é o mundo

O Jorge era uma das pessoas que eu acompanhava no meu trabalho enquanto voluntária do CASA – Centro de Apoio ao Sem-Abrigo. Com a nossa ajuda, em junho encontrou um emprego que lhe permitiu endireitar a vida, esperamos nós, definitivamente. E é hoje um dos melhores colaboradores do local onde trabalha. Esforça-se sempre – e muito – para não desiludir quem acreditou nele.
Todas as semanas recebo uma mensagem do Jorge a agradecer-me. Alguém que passou de não ter quase nada, para ter mais qualquer coisa, e que luta diariamente para vir a ter mais, não pede. Só agradece.
Passamos a vida descontentes com o que temos. Passamos a vida a sentir que “a galinha da vizinha é melhor do que a minha”. Passamos a vida a achar que merecemos mais. E a pedir mais.
Esquecemo-nos de pensar na sorte que temos. Mesmo quando passámos o ano com saúde, a dar ao pedal, com as contas pagas, e um pingo de sorte, pedimos mais. Chamamos-lhes desejos de ano novo. Vale tudo. Ao ponto de usarmos cuecas com a cor a condizer com o pedido, ou subirmos para cima de um banco com uma nota na mão, entre tantas outras superstições sem fundamento (para não as chamar idiotas).
Ver texto completo no Delas.


5 de janeiro de 2018

E que tal perder o medo da diferença?

Aquele era mais um dos nossos dias de praia. A Ana também lá estava e, a certa altura, disparou: “O que me dizes de ires a uma entrevista lá na empresa para a função de assessora de imprensa?”. Fiquei a olhar para ela, respondi “Eu?”, e ri-me. Nunca tinha pensado em começar a trabalhar antes de acabar a faculdade, mas a Ana insistiu no assunto e decidi aceitar. Não tinha nada a perder.
Por isso lá fui e, às tantas, vi-me numa conversa cheia de perguntas, às quais respondi de uma forma sincera, sem a pressão de agradar. O meu objetivo era trabalhar em televisão (estava a estudar para isso), pelo que tinha para mim que aquele momento seria apenas uma experiência nova, e que voltaria rapidamente à minha vida de estudante, em que a única preocupação era focar-me em terminar o curso, para depois seguir o meu sonho de miúda.
O caminho estava, de facto, traçado na minha cabeça há muito tempo. Estava, mas não foi por ele que segui. A verdade é que acabei por ficar com o lugar e foi assim que me tornei assessora de imprensa.
Ver texto completo no Delas.