24 de janeiro de 2014

Mundo, e nós?

Todos nós temos um lado B. É normalmente aquele lado que nem sempre conseguimos “vestir” no nosso dia-a-dia, pelo menos com a frequência que gostaríamos.
 
O meu lado B tem sido dedicado a partilhar algumas das minhas experiências com as outras pessoas. Seja através deste blogue, seja através de palestras que já dei sobre a minha história e como seguir em frente. Tantas vezes a tentar mostrar que o mundo não está preparado para receber pessoas que, como eu, se encontram em situação de mobilidade reduzida. Noutras, simplesmente pondo a boca no trombone.
 
Hoje falo-vos disto mesmo: mobilidade reduzida.
 
Mas, antes de continuar, uma nota, para que fique claro como água: uma pessoa com mobilidade reduzida não é apenas uma pessoa com uma deficiência. Mobilidade reduzida é também, a amiga grávida ou a prima que passeia o carrinho de um bebé. É o tio que se espatifou pelas escadas abaixo, partiu numa perna e teve que ser operado. É o irmão que torceu o raça do tornozelo e que vai ter que andar de muletas 3 semanas. Ou o avô que está velhinho e já não consegue mexer-se tão bem. No limite, a D. Joana, a vizinha do 2º esquerdo, que encravou uma unha e não pode pôr o pé no chão nos próximos dias.
 
Mobilidade reduzida é tudo, desde que haja dificuldade em andar, em mover-se de forma normal. Seja temporária ou permanentemente.
 
Há alguns anos, quando se falava em oportunidades de negócio cujo público-alvo fossem pessoas com mobilidade reduzida, usava-se a expressão “nicho”. Afinal, as estatísticas apontavam – e ainda apontam - para que cerca de 10% da população portuguesa tivesse a sua mobilidade condicionada. Conclusão: ter um negócio que pudesse ter impacto num milhão de pessoas seria, no mínimo, um bom negócio.
 
Tudo muito bem, mas este não é o raciocínio certo. Não estamos a ver o problema de forma inteligente. Porque, pelo menos uma vez na vida, a probabilidade de qualquer pessoa passar por um episódio de mobilidade reduzida, é gigante. Somos 10 milhões de portugueses...
 
É, por isso, fundamental que todos os locais estejam/sejam preparados para receber de forma digna quem se encontra, desde sempre ou não, impedido de se deslocar de forma independente. Porque, como expliquei acima, essa pessoa pode ser, simplesmente…qualquer pessoa.
 
São muito poucos, é certo, mas ainda há bons exemplos de empresas que lidam bem com esta questão. O MyWay da ANA, que presta um serviço personalizado de assistência a passageiros com mobilidade reduzida que se desloquem num estado membro da União Europeia, é um deles. Imaginem-se com uma importante viagem de trabalho marcada. Galo: fazem uma rotura de ligamentos na futebolada semanal com os amigos. Deixam de ir? Com esta ajuda, talvez não. Bom para vocês que não falham a reunião com o cliente, bom para a companhia aérea que não perdeu um cliente.
 
E nem sempre são necessários grandes investimentos. Realisticamente, talvez não dê para adaptar todos os espaços. Mas, se houver abertura, se houver vontade de fazer bem feito, tanto no sector público como do privado, muito poderá melhorar.
 
E o mundo passará a ser um sítio, verdadeiramente, mais justo. Porque será para todos.
 
 
 

12 de janeiro de 2014

A história da formiga verde de lábios vermelhos

Está frio, chove, ficámos sozinhas em casa. O resto da malta teve que sair.

Por isso, hoje foi dia de arrumações. É, diga-se de passagem, uma boa forma de manter a Carlota ocupada.

O que ela gosta mesmo é abrir os armários da minha roupa. Tirar tudo cá para fora, dobrar peça por peça, e voltar a guardar.

Confesso que, de vez em quando, me dá um jeitão.
Depois de tudo passado a pente fino, chegámos à sua gaveta preferida: a das “roupas dos brilhantes”.

Lá de dentro saíram os tops e os lenços com lantejoulas, que tanto sucesso fizeram nos tempos em que as saídas à noite pediam roupa mais arrojada.

Roupa que usava do alto dos meus poucos quilos, quando a Kapital era o nosso poiso principal.

Estávamos no início dos anos 90 e aquele era O spot.

Sextas e Sábados. Dias sagrados. Estávamos lá sempre batidas. Divertimo-nos ali durante muitos anos. Era quase uma segunda casa, uma segunda família.

No meio das roupas brilhantes, lá num canto, meio enrolada - até esquecida - uma camisola ainda mais especial. Que me fez recuar 9 anos no tempo.
A da formiga verde a pintar os lábios de vermelho. Pestanuda.

Nas costas, dizia “Ao maior exemplo de força e coragem”. Engoli em seco, quando li aquilo.
 

Por momentos deixei o meu quarto virado para o meu pinhal e viajei até ao piso 4 do Hospital Garcia de Orta. Aterrei no quarto 27.
Era um dos quartos onde ficavam os casos mais graves. Foi o meu quarto por alguns meses.

Ali passei os dias mais duros da minha vida. Ali chorei de dores. Ali pendurei fotografias de quem gostava. Ali recebi os que apenas o corpo dali saía todos os dias, porque a alma ficava sempre. E ali recebi as piores notícias.

Mas foi também naquele quarto que recebi as melhores. Onde dei enormes gargalhadas e onde ganhei amigas para o resto da vida. As minhas enfermeiras. Poucas vezes nos vemos, mas sei que as marquei, tanto quanto elas a mim.
No dia em que saí, deixei-lhes um quadro que dizia “Convosco foi muito mais fácil!”. E delas, para além das memórias guardadas no coração, trouxe a camisola da formiga verde a pintar os lábios de vermelho.

Respiro fundo, e estou de volta ao meu quarto. A Carlota entretanto vestiu a camisola. Está-lhe boa. É certo que eu estava magra na altura, mas ela também está crescida. Foi há 9 anos. Tinha 1 ano.
A rir-se pergunta se a pode levar amanhã para a escola. Digo que não, que não a quero estragada.

Despe-a, dobra-a com cuidado, coloca-a na gaveta já arrumada e diz-me “então fica aqui, por cima, para nunca te esqueceres”.
E não esqueço. Porque é um bom exemplo de que, mesmo dos piores momentos, podemos retirar lições e encontrar forças para enfrentar os próximos.

1 de janeiro de 2014

Dois galhetões era pouco

Nada como encerrar um ano a fazer uma coisa que nunca tinha feito: entrar no novo no meio da rua, rodeada das 3 pessoas mais importantes da minha vida.
 
Foi o que aconteceu. E, assim, este ano foi tudo para a rua!
 
Depois de jantarmos num espaço que nos fez viajar até ao mundo das artes de outros tempos – Martinho da Arcada – seguimos para onde a música falava mais alto.
 
O Terreiro do Paço é a praça mais bonita de Lisboa. Agrada-me aquela simetria. A luz. As histórias que ali se viveram. E o rio ali tão perto.
 
Estava animada, cheia de gente. 5 em cada 10 mulheres tinha uma bandolete com um laçarote de luz. Bom negócio para os comerciantes da zona. Na sua maioria, indianos. E um efeito fantástico, visto de longe.
 
Em ambiente de festa, não poderia faltar a barraquinha das farturas e dos churros, sempre à pinha.
 
À medida que 2013 se aproximava do fim, a praça ia enchendo. Principalmente de jovens. Isso é bom? Seria, se esses jovens tivessem as cabecinhas no lugar. Não precisariam de ter todo o juízo do mundo, porque a idade ainda não lhes permite. Só algum.
 
Por todo o lado, aos milhares. Por todo o lado, quase todos com garrafas de plástico de litro, que dentro transportavam um líquido escuro, que não consegui distinguir se era vinho ou outro tipo de álcool. Garrafas que, muitas vezes, eram garrafões de 5 litros.
 
Dei por mim parada, a olhar à minha volta, incrédula.
 
Poucos estavam apenas “alegres”. A maioria estava completamente bêbeda. Muitos só se aguentavam em pé graças à ajuda dos amigos, outros já no chão, à espera que os bombeiros os levassem ao hospital.
 
A poucos minutos de receber o ano, gritos histéricos por todo o lado. Movimentos loucos, sem nenhum respeito por quem estava à sua volta. Pessoas como eu, de cadeira de rodas, vi algumas, muitas crianças. Ou apenas pequenos grupos que a única coisa que queriam era ver o fogo-de-artifício numa boa, com a família mais próxima.
 
Estes miúdos conseguiram tornar aquele num momento, no mínimo, perigoso. Num momento que, devido a algum descontrolo, conseguiu pôr em causa a segurança de todos. Deles e dos outros.
 
Vimos o fogo-de-artifício, bebemos espumante e depois percebemos que era altura de sair dali.
 
Com o trânsito fechado desde o Cais do Sodré, restava-nos ir a pé até lá.
 
Chegar às arcadas não foi fácil. Fazer o caminho até à estação também não. E agora não por causa da multidão descontrolada, que entretanto foi dispersando, mas porque por todo o lado se viam adolescentes encostados às paredes, a vomitar as entranhas. Um cenário verdadeiramente miserável.
 
Os olhos que vos contam isto não são os olhos de uma careta. Durante anos saí à noite. Fiquei “alegre” dezenas de vezes. Mas nunca assim. Jamais assim, degradante. Situação, no limite, perigosa até para eles.
 
 
A Carlota assistiu a tudo. À medida que fazíamos o percurso até ao Cais do Sodré, via-se nos olhos dela a rejeição pelo que se passava à sua volta. Perguntava “mas porque é que estes miúdos se deixam ficar assim?”. Respondi-lhe que aquilo era tudo o que ela não deveria fazer quando fosse mais crescida. Que devia divertir-se ao máximo - como eu e a mãe fizemos – mas que não precisava de ser assim.
 
Quando chegámos à estação, liguei para o nosso táxi. “Miguel, tire-nos daqui que, a partir de agora, isto é uma selva”.
 
Ao nosso lado, enquanto esperávamos por ele, uns vomitavam, outros sentavam-se no chão, indiferentes ao molhado da chuva torrencial. Entre um barril de cerveja onde regularmente enchiam os copos de plástico e conversas em que 3 em cada 2 palavras eram “c@£§€{##&%”, “f”#$%%&”, e “f”#$%&/ da p”#$%&”. Uma tristeza para a alma de qualquer ser-humano normal.
 
Ora a minha pergunta é: são estes os jovens de amanhã? São estes os jovens que saem das nossas universidades e que se preparam para liderar as nossas empresas? É a esta geração a que está entregue o futuro do nosso país…?
 
Onde é que estão os pais destes miúdos? A minha mãe saberia se eu andasse neste tipo de vida. Porque estaria atenta.
 
No meio disto tudo, dois miúdos, apenas com um copo a mais, divertidos mas contidos, dirigem-se a mim e desejam-me bom ano. Dou-lhes as minhas mãos, faço o mesmo, olhando-os nos olhos. Peço para não beberem mais. Para se divertirem, mas para não beberem mais. Respondem em uníssono “nãããã…! Vamos parar por aqui”. Pisquei-lhes o olho. Espetaram-me dois beijos e um deles, antes de me deixar entrar para o táxi, disse-me “Epá, és linda comó c”#$%&/”. Sem resistir, soltei uma gargalhada e disse-lhe “vá, sem o palavrão ficava mais bonito…!” Recebi um “ya!” como resposta. Enfim.
 
Nisto chegou o Miguel e tirou-nos dali. A Carlota sentou-se e adormeceu de imediato. E nós respirámos fundo por deixarmos, finalmente, aquele cenário para trás.
 
Acredito que tudo vale pela experiência mas, no meu caso, prefiro ambientes mais controlados. Vá, e jovens mais inteligentes. Porque a estes, dois galhetões era pouco.