Enquanto me picavam as pernas com uma agulha, olhavam-me nos olhos, à
espera de uma reação de dor. Mas ela não aparecia. Não doía. Não sentia. Se não
estivesse a olhar para os movimentos daquela agulha, diria que nada estava a
acontecer.
Ainda hoje me lembro do cheiro da sala fria das urgências. Dos apitos das
máquinas que me rodeavam. E da mão calçada com uma luva azul que me libertou dos
fios que me ligaram durante 5 horas a uma delas. Já não era preciso, porque eu tinha
acordado.
Doía-me a cabeça como não sabia que podia doer. O corpo pedia algo para
comer, mas o estômago rejeitava tudo o que lá entrava. O meu cérebro
esforçava-se por comunicar pelos canais certos, mas as vias tinha sido
trocadas. E, algumas delas, soubemos mais tarde, cortadas.
Os médicos que rodeavam a minha cama falavam baixinho, como se não
quisessem que eu ouvisse o pânico deles, pelo desconhecido. Nunca tinham tido
um caso destes nas mãos. Quem era exposto a monóxido de carbono raramente tinha a sorte de lhes chegar vivo às mãos, quanto mais vivo mas sem sentir
metade do corpo. E agora?
Nos dias que se seguiram, o Hospital de Santa Maria foi pequeno para
receber quem me quis dar a mão. Se lhes fechavam uma porta, rapidamente descobriam outra, e tomavam de assalto o meu
quarto. A certa altura a ordem foi “deixem entrar, não há muito a fazer.”
Lembro-me da Marta, uma
colega baixinha mas arrebitada, a barrar a entrada da sala onde eu deveria ir
fazer os Potenciais Evocados
Somatossensitivos, um exame que analisava a atividade nervosa que as minhas pernas deveriam transportar até ao
cérebro – as coisas que eu aprendi! “Para onde é que a levam”, dizia ela, de
braços abertos entre a porta, não deixando ninguém passar.
Foram 45 dias de internamento e dalí saí formalmente
com uma lesão medular devido a intoxicação por monóxido de carbono. Paraplégica.
Passaria a ser este o diagnóstico para algo tão simples como “não sinto as
pernas”.
Algures entre as 17 e as 18 horas daquele dia frio de março, 5 horas depois
de um sono profundo, foi o despertar para uma vida que, a partir dali, ia ser
diferente. Não necessariamente pior, queria acreditar, mas claramente
diferente.
Com 15 anos, a realidade tinha passado a ser outra, e era preciso perceber
e aceitar isso. Acima de tudo aceitar, porque perceber exigiria – sem eu saber
na altura – alguns anos de experiência em cima.
Ontem, 11 de março de 2017, às 17 horas, estava em cima de um palco a partilhar
esta história.
O convite tinha chegado uns dias antes através da presidente da Vida Ama-me,
uma associação que tem como objetivo ajudar as pessoas a tomarem consciência do
que lhes vai por dentro, para serem mais felizes. Seria um dia com várias
atividades e dedicado essencialmente às mulheres.
Teria 20 minutos para contar como tudo se passou. O que não seria um
problema, tendo em conta que já o tinha feito outras vezes. Mas seria a 1ª que acertava
no mesmo dia em que tudo começou.
Escolhi começar às 17 horas. Este
seria o gancho.
Terminei com um “mais do que a celebrar o Dia da Mulher, estou aqui a celebrar
a vida. Porque esta cadeira entrou na minha faz hoje 26 anos. E há 26
anos, precisamente por esta hora, estava a acordar do coma para uma vida nova.
Acima de tudo, para uma nova forma de a encarar."
Talvez nem tenham reparado que a minha voz cedeu por segundos, mas ainda
consegui fechar com um “obrigada a todos, e sejam felizes”.
As palmas chegaram de pé, os abraços foram apertados.
Senti-me, mais uma vez,
uma mulher cheia de sorte. E com ainda maior certeza de que nada me fará voltar
para trás. Só se for para tomar balanço.