12 de março de 2017

O 1º dia do resto da minha vida

Enquanto me picavam as pernas com uma agulha, olhavam-me nos olhos, à espera de uma reação de dor. Mas ela não aparecia. Não doía. Não sentia. Se não estivesse a olhar para os movimentos daquela agulha, diria que nada estava a acontecer.

Ainda hoje me lembro do cheiro da sala fria das urgências. Dos apitos das máquinas que me rodeavam. E da mão calçada com uma luva azul que me libertou dos fios que me ligaram durante 5 horas a uma delas. Já não era preciso, porque eu tinha acordado.

Doía-me a cabeça como não sabia que podia doer. O corpo pedia algo para comer, mas o estômago rejeitava tudo o que lá entrava. O meu cérebro esforçava-se por comunicar pelos canais certos, mas as vias tinha sido trocadas. E, algumas delas, soubemos mais tarde, cortadas.

Os médicos que rodeavam a minha cama falavam baixinho, como se não quisessem que eu ouvisse o pânico deles, pelo desconhecido. Nunca tinham tido um caso destes nas mãos. Quem era exposto a monóxido de carbono raramente tinha a sorte de lhes chegar vivo às mãos, quanto mais vivo mas sem sentir metade do corpo. E agora?

Nos dias que se seguiram, o Hospital de Santa Maria foi pequeno para receber quem me quis dar a mão. Se lhes fechavam uma porta, rapidamente descobriam outra, e tomavam de assalto o meu quarto. A certa altura a ordem foi “deixem entrar, não há muito a fazer.”

Lembro-me da Marta, uma colega baixinha mas arrebitada, a barrar a entrada da sala onde eu deveria ir fazer os Potenciais Evocados Somatossensitivos, um exame que analisava a atividade nervosa que as minhas pernas deveriam transportar até ao cérebro – as coisas que eu aprendi! “Para onde é que a levam”, dizia ela, de braços abertos entre a porta, não deixando ninguém passar.

Foram 45 dias de internamento e dalí saí formalmente com uma lesão medular devido a intoxicação por monóxido de carbono. Paraplégica. Passaria a ser este o diagnóstico para algo tão simples como “não sinto as pernas”.

Algures entre as 17 e as 18 horas daquele dia frio de março, 5 horas depois de um sono profundo, foi o despertar para uma vida que, a partir dali, ia ser diferente. Não necessariamente pior, queria acreditar, mas claramente diferente.

Com 15 anos, a realidade tinha passado a ser outra, e era preciso perceber e aceitar isso. Acima de tudo aceitar, porque perceber exigiria – sem eu saber na altura – alguns anos de experiência em cima.

Ontem, 11 de março de 2017, às 17 horas, estava em cima de um palco a partilhar esta história.

O convite tinha chegado uns dias antes através da presidente da Vida Ama-me, uma associação que tem como objetivo ajudar as pessoas a tomarem consciência do que lhes vai por dentro, para serem mais felizes. Seria um dia com várias atividades e dedicado essencialmente às mulheres.

Teria 20 minutos para contar como tudo se passou. O que não seria um problema, tendo em conta que já o tinha feito outras vezes. Mas seria a 1ª que acertava no mesmo dia em que tudo começou. 

Escolhi começar às 17 horas. Este seria o gancho.

Terminei com um “mais do que a celebrar o Dia da Mulher, estou aqui a celebrar a vida. Porque esta cadeira entrou na minha faz hoje 26 anos. E há 26 anos, precisamente por esta hora, estava a acordar do coma para uma vida nova. Acima de tudo, para uma nova forma de a encarar."

Talvez nem tenham reparado que a minha voz cedeu por segundos, mas ainda consegui fechar com um “obrigada a todos, e sejam felizes”.

As palmas chegaram de pé, os abraços foram apertados. 

Senti-me, mais uma vez, uma mulher cheia de sorte. E com ainda maior certeza de que nada me fará voltar para trás. Só se for para tomar balanço.


3 de março de 2017

Porque é que o dia de hoje é um dos mais felizes da minha vida?

Há um ano não estava com borboletas na barriga. Estava com tudo o que tivesse asas a batê-las pelo meu corpo todo.

Depois de meses de trabalho, tinha chegado a hora. O Ser Feliz é Uma Escolha estava à venda há uns dias e eu ia juntar os meus amigos para um momento único: o lançamento da minha história em livro.

Quando acordei, sentei-me na cama e disse a mim própria “Canária, isto é um dia especial mas vais vivê-lo com tranquilidade para o conseguires saborear.”. Nada me iria stressar.

Escolhi minuciosamente o que ia vestir mas, acima de tudo, tive o cuidado de optar por algo simples e confortável, que não me obrigasse a estar constantemente preocupada com o decote, com a manga, etc.

Não quis ir ao cabeleireiro. Quem me conhece sabe que, apesar de gostar do resultado final e de ser sempre tratada como uma princesa, aquelas horas tiram-me energia.

Tentei ter um dia normal, de trabalho. Marquei reuniões, para me obrigar a estar focada em mais do que aquilo que seria o meu fim do dia.

Mas, depois de almoço, já a passarada se tinha começado a mexer dentro de mim, não deu para evitar.

Cheguei ao local do lançamento, o magnífico Oceanário de Lisboa. onde estava um auditório enorme à minha espera. E caiu sobre mim o terror de não o conseguir encher.


Aquilo estava marcado para as 18h. E a essa hora começaram a chegar convidados. 10, 20, 30, tantos. Foram-se sentando e compondo aquele espaço que, em tão pouco tempo, se tornou pequeno. Centenas de amigos aceitaram o convite. Saíram mais cedo. Deram a volta à vida para ali estarem.

Tremi quando vi o presidente da minha empresa a sentar-se lá em cima, discretamente, junto da restante administração. Tal como tremi quando vi o Dr. Balsemão a chegar e a sentar-se ali mesmo, à minha frente. Perto da minha mãe e da minha irmã, e ao lado da Carlota, vestida com a camisola do Sporting que o meu treinador, famous JJ, apareceu para me oferecer. Se aquilo era um sonho, não me acordassem, sff.

Diverti-me com a apresentação do João Miguel Tavares, emocionei-me com a história do João Duque, viajei no tempo com a memória do Aurélio Pereira. Enquanto eles falavam, percorri várias vezes a plateia com os olhos. E parei nas enfermeiras que me trataram. Nos colegas que tinham acabado de reunir comigo. Nos amigos que não via há anos. Nos que vejo sempre. Nos que só me conheceram ali. E pensei “porra, se me der um chilique agora, morro feliz”. Juro que pensei.

Seguiram-se semanas alucinantes, necessárias à promoção do livro, em que me senti em excesso de velocidade. Lembro-me de ter entrado na sala de um dos meus administradores no dia seguinte ao lançamento, e de ele ter comentado: “entããão…grande momento o de ontem!”. Coitado, mas ele sabia o que o esperava. Meti a primeira e o desgraçado nem conseguiu falar mais. A não ser para me travar a fundo com um “bom, já percebi que estás imparável, é muito bom ver-te assim, um orgulho, aproveita cada minuto, vive-o…mas agora temos que terminar a nossa conversa porque já estou atrasado para uma reunião…”. “Ops”, pensei, “cala-te lá um bocadinho Marta Canário, e deixa o homem trabalhar!”.

A partir daquele dia mudei mais um bocadinho. A peça que era o livro, encaixou na perfeição no puzzle tenho vindo a construir da minha vida. Tinha feito mais uns quilómetros do meu caminho. Estava mais próxima daquilo que queria para mim.

Mas não fui só eu que mudei com isto. De repente, a frase “ser feliz é uma escolha” passou a fazer parte do vocabulário de quem me rodeia. No meio de reuniões de trabalho ou de conversas com amigos, não são poucas as vezes que alguém se sai com um “olha que que ser feliz é uma escolha, pá!”.

(até o #serfelizéumaescolha acompanha os posts dos meus amigos, caraças!).

Sinto sempre o peso da responsabilidade, mas também um orgulho gigante.

2016 não foi mais um ano. Foi o 1º ano do resto da minha vida.