20 de junho de 2014

A coragem de seguir em frente

A minha vida tem sido, e tentando usar aqui uma palavrinha simpática, desafiante.

Ainda na barriga da minha mãe, uma placenta prévia ia-me ceifando a possibilidade de sentir o mundo. “Vamos tentar salvar a mãe, que para a filha já vamos tarde”, lembro-me de me contarem. Mas nasci e cresci, saudável.

Aos 15 anos, foi altura de um estúpido de um esquentador me ter levado a força nas pernas. E, mesmo sem essa força, passei por cima. Renasci.

Aos 29, uma infeção numa ferida na bochecha do rabo – atenção que antes dizia “nádega” por me parecer “politicamente mais correto” mas, desculpem, a idade trouxe com ela a falta de saco para merdices – emagreceu-me até aos 40 quilos e deixou-me a patinar por quase meio ano. Recuperei as forças ainda hoje não sei bem como, reagi aos quilos de antibióticos estranhos que tomei, e passei à frente. Mais um renascer, este duro como nenhum outro. Para o corpo mas, acima de tudo, para a mente.

Os dois anos que se seguiram foram passados no fio da navalha. Entre engordar à força, recuperar de cirurgias plásticas de reconstrução e acreditar que o meu corpo ia aguentar o tranco. Que aguentou.

Um dia, plim!, os contratempos decidiram dar-me umas tréguas. Depois de tantas batalhas perdidas, perceberam que, finalmente, tinham perdido a guerra. Desistiram.


Quase 9 meses depois, regressei ao trabalho. Vendo bem, nunca o deixei a 100%, porque não foram poucas as vezes em que trabalhei deitada na cama, na do hospital ou já em casa. Aos poucos voltei, retomei a vida onde ela tinha, literalmente, parado. Com mais algumas limitações, mas em bom, como diz uma amiga.

Estou livre de chatices graves há 8 ou 9 anos. Sinceramente, desisti de contar. Aprendi a viver uma vida de prevenção. Declarei guerra às feridas. Prometi a mim própria que nunca mais as ia ter. Posicionei-me em primeiro lugar na minha lista de prioridades. Até de fumar deixei.

Hoje acredito que sou o fruto claro destes momentos. Para alguns um exemplo a seguir, para outros…“preferencialmente, uma vez sem exemplo”.

Aos meus próprios olhos, sou uma mulher de coragem. Com dias em que sinto o mundo a cair-me em cima e o chão a escapar-me debaixo dos pés, outros em que levo a vida às costas - a minha e a dos outros -  mas porreirinha da vida. Dias em que acho que aguento tudo, outros em que, ao mais pequeno toque, trau!, caio para o lado. 

Mas sempre com uma certeza: se procurar bem dentro de mim encontro, como sempre encontrei, o que preciso para seguir em frente. Coragem.


5 de junho de 2014

"É aqui que durmo"

Sr. António, que gosta de ler e que guarda na sua saca velha 3 livros que alguém lhe deu. Está a acabar o último. A jovem de 20 e poucos anos, grávida de 8 meses, que mais uma vez se zangou com o pai do que ainda nem nasceu. O que não vai para lado nenhum sem o seu cão. Aquele a quem passamos o saco do pão, mas que o deixa escapar da mão. A mesma que, antes do provável AVC, conseguia agarrar aquilo que mais falta lhe faz. O que se apaixona com facilidade. O que apanha mentiras porque as conhece como ninguém. O estrangeiro. O jovem envergonhado. O menos jovem, igualmente envergonhado. O roto. O bem vestido.

Várias histórias, vários protagonistas. Todos diferentes, mas todos com o mesmo olhar. O olhar de quem não vive mais do que um dia de cada vez. O olhar de quem não sabe se para a semana tem uma vida. Nem que seja aquela estranha forma de vida.

Nunca tinha estado tão perto do submundo. Sabemos que existe, já todos nós o vimos, quanto mais não seja pela televisão. Mas assim, de perto, mergulhada nele, nunca. E com ele entranhado, muito menos.

Passei o dia a pensar no meu fim de dia. Se ia conseguir articular uma palavra. Se devia articular uma palavra. Se me ria, se fechava o sorriso. Se tratava com mais ou menos carinho. Se ia ser bem ou mal recebida. Se isto seria um capricho ou um dever.

21h30. Gare do Oriente. Mas a parte da Gare que só conhece quem sabe o que ali se passa. No fim do túnel. Perto do último acesso à rua. Primeiro, poucos. Com o passar dos minutos, tantos.

Cobertores, mochilas, sacos, carrinhos de supermercado. Caras estragadas pelo tempo. Pelo sofrimento. Pela falta. De tudo. De sorte.

Fazem fila. Olham para dentro das caixas, e para quem ali está sobretudo para dar o que tem nas mãos. Para os que, mesmo depois de um dia de trabalho, se partilham com eles.


“Pão de azeitonas, pão de hambúrguer ou pão simples?” “Iogurte?”. Os mais exigentes, que o gosto não se vai com a falta de dinheiro, perguntam se ainda há com pedaços. Não há, aceitam do outro.

Atrás de mim um jovem envergonhado. Um de nós pergunta se quer uma refeição. Responde com um encolher de ombros que esconde fome.

Fico nos sumos. Mas não encho os copos porque tenho medo que me tremam as mãos. “Quer um?” Quase todos dizem que sim. “Obrigado e saúde”, respondem.

A minha cadeira suscita curiosidade. São vários o que me perguntam o que me deixou assim. Explico com a simplicidade possível e de quem não está ali para ter atenção. Passo à frente.

O cão de um dos sem-abrigo não me larga. Quer festas mas nota-se que tem as do dono com fartura. “Trate-o sempre bem”, peço-lhe. “Ele é que me trata bem a mim”, responde-me com generosidade. E inteligência.

A fila não parece acabar. Mas há jantar para todos. De vez em quando oiço um “Marta, tudo em cima?”. É o coordenador, que se divide entre a distribuição de um prato quente e o aperto que sabe que sinto no coração.

Depois de comerem, voltam para os muros da Gare, que lhes serve de cama. Estendem as mantas, reúnem o pouco que lhes pertence. Falam pouco. Falar de quê...?

Já passa das 23h. Acomodam-se como podem. Aninham-se. Viveram mais um dia. Sobreviveram mais um dia.

Olho para aquilo tudo e penso “vou mesmo voltar. E vou levar alguns livros, para o Sr. António poder continuar a mergulhar na vida de quem ainda tem como viver.”