27 de outubro de 2014

Até que a morte nos separe?

É sobre um casal de velhotes que vive na minha rua.

A mulher quase nunca sai de casa.

Habituei-me a ver o marido dar grandes passeios com os dois cães, todos os dias, várias vezes por dia. Até que deixei de o ver.

Pensei que lhe tinha acontecido alguma coisa, até dar com o senhor, de novo, a passear os cães. Mas desta vez mais devagar, tinha um dos lados do corpo paralisado.

Mesmo assim, ela continuava sem sair à rua. Era, por isso, ele que, mesmo com meio corpo adormecido, passeava os seus dois amigos, devagarinho.

Os anos foram passando e os cães foram envelhecendo, como, de resto, ele. Os cães morreram, ele recuperou a mobilidade e foi buscar outro, com quem o vejo agora.

Há uns dias ouvi uma mulher, ao fundo, a gritar. À distância, deu-me ideia que refilava com alguém.

Espreitei. E lá estavam os dois, na varanda. Ela a barafustar com o marido. Mais para ser ouvida por todos que por ele. Que parecia nem a ouvir. Pelo meio, o cão ladrava. Os vizinhos passavam mas já nem ligavam.

E porque agora passam o dia nisto, hoje atirou-lhe um “sempre foste um malandro!”, e ele nada. Seguiu-se um “roubaste-me o dinheiro todo que eu tinha no banco para comprares a porcaria dos carros!”, e ele nada. “Se não tivesse sido eu, tu eras um vigarista!”. E ele continuou empoleirado no parapeito, a olhar lá para baixo, sem responder. Como se não fosse com ele. Como se não estivesse ali e a viver aquele momento. Até que ela disse “isso, atira-te, era o que fazias de melhor”. Ele endireitou-se, olhou para ela, sério, e respondeu apenas um “atira-te tu, velha.” E foi para dentro.

A mulher manteve-se na varanda, indiferente ao facto de já estar sozinha. Ligou para a GNR e gritou “venham rápido que eu estou pelos cabelos! Quero que o levem daqui!”.

Quem a ouve e conhece diz que está doente. Que os anos lhe baralharam a cabeça. “Ela não era assim, foi de um momento para o outro”, lembram.

“Eu recebo-te por meu esposo/a a ti, e prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida.”

Ambos o prometeram. Um deles está quase a desistir. Só me falta perceber qual.