Uma das memórias mais duras - mas também das mais bonitas - que guardo
do que passei com as minhas enfermeiras aconteceu no dia de ida ao bloco.
Horas antes, os médicos tinham-me
avisado que de era preciso abrir a minha perna para ver, porque desconfiavam que a
bactéria estava a gozar do conforto da cabeça do
meu fémur. Mas era preciso abrir para ter a certeza.
Andávamos em luta com a bactéria
que me tinha entrado pelo corpo adentro através de uma ferida e que me tinha atirado para uma septicemia há
muitos meses. O meu corpo já tinha perdido grande parte da sua energia e
aquele momento de febre ao fim do dia, levava-lhe o resto, devagarinho. Apesar
de não querer entregar os pontos, confesso que houve uma altura que achei que isso
que ia acabar por acontecer.
Não me deram pequeno almoço,
deixaram-me passar uma toalha perfumada pelo corpo, lavar os dentes e
pentear-me. Tiraram-me a t-shirt colorida que a minha mãe me tinha trazido,
vestiram-me uma bata que atava nas costas. Vi-as fazer tudo devagar. No ar
quase que se conseguia ouvir uma espécie de música de fundo tranquila, que
acompanhava os passos delas em câmara lenta.
Era agora ou nunca. Ou
saía do bloco pronta para recomeçar, ou saía sem perna, ou sem solução à vista.
Engoli em seco quando percebi que aquele era “o” momento. Mas pedi para irmos. Queria voltar a sentir-me bem, queria retomar a minha vida.
Saí do quarto, percorri o corredor
deitada na cama, sem saber como regressaria. O pensamento foi tão básico como: “Marta, mais vale viveres sem uma perna do que morreres.” Nestas alturas, o meu corpo não se
perde em grandes considerações e não viaja na maionese, prefere antes focar-se no
essencial. Era só isto que me ocupava o espírito.
Encostadas às paredes daquele
corredor, lá estavam elas. Vestidas de branco, quietas, de olhos postos em mim,
e de mãos em cima dos meus lençóis, enquanto algumas quebravam o silêncio para
me sussurrarem baixinho: “vai correr tudo bem”, “força, miúda”, “até já”, “ficamos
à tua espera”. Foi neste momento que tive a certeza de que estava rodeada de
anjos.
A verdade é que voltei. E voltei
com a certeza quase absoluta de que tinham conseguido eliminar aquele bicho que
havia decidido que eu era um bom petisco e que insistia em não me deixar em paz
há tanto tempo. Até ao dia em que, naquele bloco operatório, conseguiram enfraquecê-lo
e expulsá-lo do meu corpo para sempre.
Já em casa, os meses seguintes
foram de grande ansiedade, até percebermos que a coisa era mesmo assim,
e que ele não ia voltar. Houve alguns avanços e muitos recuos, que mais uma vez
só foram possíveis de ultrapassar, porque as minhas enfermeiras estiveram lá.
E, à cabeça, uma que viveu cada segundo como se tudo se passasse também no
corpo dela. A Zezinha.
Pela manhã, sempre muito cedo, sem
falhar, a Zezinha subia no elevador com um saco de tratamento maior do que ela,
cheia de produtos novos que não se cansava de experimentar em mim, fazendo com
que o meu corpo acabasse por reagir e voltasse a querer agarrar o mundo com as
duas mãos
Foi a ela que me fez acreditar
que aquilo não passava de um momento mau. Com a sua genica, com a sua
experiência, com a sua sensibilidade, com a sua empatia, com
o seu amor. E, mesmo quando ela própria teve dúvidas se a minha história ia acabar bem – algo que mais tarde veio a confessar que teve –, jamais o deixou
transparecer.
Gosto de pensar que os médicos me
salvaram o corpo, mas os enfermeiros, esses, salvaram-me a alma. Por isso,
todos os dias, por muitos que viva e cheia de saúde, jamais esquecerei o que
fizeram por mim.
A todos: só foi possível porque
vocês nunca desistiram.
Obrigada.
![]() |
Ilustração feita por Rita Salgueiro em 2008 |