Já aqui falei da
amizade, já aqui falei dos meus animais e de uma das pessoas mais importantes
da minha vida, a minha irmã. Hoje gostava de vos falar de uma classe profissional
a quem devo em grande parte o facto de estar cá para partilhar convosco as
minhas aventuras. Os profissionais de saúde. Todos mas, em particular, os
enfermeiros. De quem injustamente apenas nos lembramos quando estamos em apuros
e que tão maltratados têm sido ultimamente.
Do Santa Maria
tenho poucas memórias a este nível porque já se passaram muitos anos. Uns 23.
Mas lembro-me de um enfermeiro que era um verdadeiro borracho e que eu rezava que
não calhasse no turno da manhã, para não ter que ser ele a dar-me o raio do banho
na cama. Mas nem sempre tive essa sorte. Morria de vergonha. Bolas pá, já tinha
15 anos!
Também me lembro
de uma enfermeira que se produzia mais para ir trabalhar que para sair
à noite. E que fazia um sucesso do
caraças junto dos colegas. E eu disse dos colegas. Porque das colegas não fazia
sucesso nenhum!
Depois foi a passagem
por Alcoitão. Também se passaram os mesmos anos, por isso as recordações também
escasseiam. Mas lembro-me de uma enfermeira durona que meteu na cabeça que eu tinha que aprender (no primeiro dia!) a transferir-me sozinha da cadeira para a cama. E,
cada vez que eu me transferia mal, dava-me um arrebite no rabo e obrigava-me a
repetir tudo. Isto para o meu belo feitio era lindo…
Depois havia outras com quem eu me divertia à brava porque adoravam ver os meus sutiãs, que na altura eram de renda e coloridos. Hoje confesso que morria se me tirassem o conforto de um belo algodãozinho mas, enfim, coisas da idade.
Mais tarde, há
cerca de 10 anos, emagreci por causa de um problema na vesícula e, por esse
motivo, desenvolvi escaras. São feridas próprias de pessoas na minha condição
ou acamados e que aparecem porque se faz demasiada pressão em certas partes do
corpo. Magrinha e com pouca sensibilidade, então, pior ainda.
Comecei por ser acompanhada pelas enfermeiras do Centro de Saúde Charneca de Caparica. Foram incansáveis. Trataram-me com profissionalismo, sim, mas, acima de tudo, com amor, com dedicação extrema. E foi assim durante um ano.
A certa altura as coisas complicaram-se,e, por muito que tentassem, por muito que mudassem de produtos e de táctica, uma das escaras infectou. Fui medicada, melhorava por uns dias, mas a infecção insistia em ganhar terreno e houve um dia em que ganhou terreno demais.
Fui às urgências do Garcia de Orta e já não saí de lá. A infecção já estava com níveis elevadíssimos. Estávamos perante uma septicemia (infecção generalizada). Mas não é da doença que aqui vos vou falar. É das pessoas que me ajudaram a ultrapassar aquele que foi o momento mais complicado da minha vida.
Este internamento
durou 2 meses. Na altura fiquei num dos quartos de 3 pessoas, na cama perto da
janela. O que era óptimo porque assim virava-me para a parede, fechava a cortina
que me separava das outras senhoras e tinha algum descanso. Não tinha nada
contra elas, mas aquilo não era a "minha praia".
Estava com 29
anos. Praticamente a mesma idade que as enfermeiras que me tratavam. Senti que
os olhos delas estavam em cima de mim, todos os dias. Porque a situação era
grave, mas também porque conheciam a história da paraplegia e achavam que
aquilo tudo era grave, por isso, injusto.
A certa altura
passaram-me para um quarto isolado, no fundo do corredor. Muito mais sossegado.
Foi um alívio, confesso. Achei que era para estar mais à vontade, mas rapidamente
percebi que eram quartos reservados para os casos mais graves. E o meu era um
deles.
Durante estes 2
meses tive que parar a minha vida toda, tudo o que tinha cá fora. Tudo o que eu
gostava. O que na altura mais me doeu foi não poder ver a Carlota durante esse
tempo. As saudades destruíam-me por dentro todos os dias um bocadinho. E a falta dos serões em família,
esparramadas no sofá a ver televisão. Aquelas merdas que, quando temos, nem
importância damos.
Fui-me abaixo. Dei por mim com vontade de chorar por tudo e por nada. Mas as enfermeiras não me deixavam um minuto sozinha. E quando o serviço estava calmo, algumas delas sentavam-se entre os pés da minha cama e o cadeirão que ficava no canto do meu quarto e passavam largos minutos na treta comigo e a ouvir as minhas histórias. E eu adorava. Até colares que amigas minhas faziam eu levava para lhes vender!
Um dia entrou um
batalhão delas pelo quarto a dentro “porque a Marta quer lavar a cabeça e nós vamos
tratar disso”. Relembro que eu não podia sair da cama. A ferida afectada era na
nádega e eu não podia sentar-me numa cadeira. Foi um filme. Mas um filme
cómico. E o cabelo ficou lindo e cheiroso outra vez. Depois ajudaram-me a secar,
pentear, escolheram a t-shirt mais colorida, borrifaram-me com o meu perfume e
puseram-me blush. Continuava esquelética, toda maradinha, mas muito mais eu: arranjadinha,
cheia de creminhos, cheirosa e rosadinha.
Durante aqueles 2
meses, estabeleceu-se uma relação tão próxima com estas pessoas - nas quais
incluo também o pessoal auxiliar – que, quando a febre baixou e me deram alta,
me fartei de chorar por ter que as deixar. E eu bem vi os olhos delas cheios de
lágrimas também. Era uma despedida, mas era uma despedida boa, por um bom motivo:
eu estava a recuperar da infecção. Achava eu. Achávamos todos.
Fui para casa e tive
que ficar deitada. Mas revi a Carlota – foi nesta altura que aprendi todas as
músicas infantis existentes em Portugal porque ela passava o tempo à volta da
minha cama -, os meus cães (a Matilde e o Gaspar), voltei a sentir o cheiro do
meu quarto, olhei de novo para o meu pinhal.
Mais uma vez foram as enfermeiras do Centro de Saúde que me seguiram diariamente. E mais uma vez, imparáveis. Viveram cada minuto da minha vida como se da vida de alguém das suas famílias de tratasse.
Os serões passaram
para o meu quarto, onde se jantava em família e onde a minha mãe chegou a pôr uma espreguiçadeira
ao lado da minha cama onde se deitava a ver tv comigo. E com a Matilde e o Gaspar
do outro lado.
Mas a bicharoca que
me tinha infectado era rija e umas semanas depois voltou. Resultado: tive que
regressar ao hospital. E lá estive mais 1 mês. Depois melhorei, voltei para casa,
piorei, mais infecção, de novo hospital, e assim sucessivamente. Acho que fui e
vim umas 4 ou 5 vezes. Estava esgotada. Houve uma altura em que me apeteceu “pendurar
as chuteiras” e desistir. Mas quem me rodeava não deixou.
Demorei um ano a
recuperar mesmo. Foi um autêntico braço de ferro entre mim e aquela bactéria.
Durou 5 ou 6 meses. Mas ganhei eu. E ganhei porque o meu corpo, contra todas as
probabilidades, resistiu. E resistiu graças aos medicamentos, é certo, mas
também graças àquele grupo de homens e mulheres que, mais do que me tratarem do
corpo, trataram-me da alma.
Os médicos não desistiram nunca, as enfermeiras não me largaram um minuto, a família mais próxima nem se fala. E os amigos. Tantos…
Os meses que se
seguiram foram para voltar a sentir-me bem, engordar, recuperar. Assim que me
senti melhor, voltei ao trabalho (que, verdade seja dita, só por pouco tempo larguei
a 100%). Quando ganhei peso suficiente, dois anos depois, ainda tive que fazer
uma plástica reconstrutiva. Mais um internamento. Mais um serviço, mais um grupo
de enfermeiros de excelência. Mais mimo.
No fim disto tudo,
e aí sim, safei-me. E quem supera, vence.
E porque a vida
nos reserva surpresas todos os dias, há 3 anos parti uma perna. Nada de
internamentos mas, mais uma vez, Centro de Saúde ao domicílio. Desta vez, para
fazer a fisioterapia necessária depois de tirar o gesso. Ainda hoje cá vêm uma
vez por semana. Para continuar a forçar a perna a descer mais uns graus, passar
revista às zonas do corpo que sofreram estas tretas todas. E, porque há
relações que não acabam nunca, também para me verem.
Hoje estou alive
and kicking. E sem medo nenhum de, se um dia for necessário, voltar àquele
hospital. Porque sei que vou estar rodeada de gente competente e, acima de
tudo, de amigos.
Ao Centro de
Saúde da Charneca de Caparica, à Cirurgia II, à Ortopedia, à Traumatologia, à Cirurgia Plástica e Reconstrutiva,
ao pessoal do RX, TAQ, Ressonâncias, ao secretariado destes serviços todos do HGO:
grande parte do meu coração é vosso. Para sempre.
E para quem leu esta crónica, acreditem no SNS. É lá que estão os melhores profissionais de saúde do mundo.
Adorei ler e em suma não podia estar mais de acordo contigo, Beijinhos ;)
ResponderEliminarUm beijinho também para ti!
EliminarGrande homenagem a homens e mulheres anónimos que tanto dão e tão mal tratados são. Viva o SNS.
ResponderEliminar( agora me lembro que te conheci pessoalmente de perna engessada)
Merecem tudo o que de bom possa dizer deles.
EliminarE sim, estava de gesso. ALiás, estive de gesso durante 4 meses:)
Um beijo querida Ana V.
As coisas que me ensinas minha amiga.
ResponderEliminarViver um dia de cada vez pois cada dia é um sorriso de Deus.
Eu também acredito no SNS, não acredito é nos políticos que o gerem.
Também tenho sido muito acarinhado.
Aproveito o teu blog e peço-te desculpa pelo abuso, para agradecer à força do IPO de Lisboa, aos voluntários incansáveis, ao pessoal auxiliar, ao secretariado que tanto carinho me dão e tornam as minhas rotinas trimestrais mais leves, aos enfermeiros e pessoal técnico, aos médicos, em especial à Dra. Joana Parreira e por fim aos doentes que por ali passam, a esperança é a última a morrer e se ali nos encontramos é porque ainda estamos vivos e lutamos com a Graça de Deus.
Um beijo muito grande para o clã, deste vosso amigo incondicional,
Pépe
E outro beijo para ti, querido Pépe! Fazes parte de uma fase bem gira da minha vida!
Eliminarum beijo!
marta
excelente coragem, grande forca...
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