18 de junho de 2013

Dias de praia e bolas de berlim

Este fim-de-semana fomos até à praia. Estava um vento frio que gelava.

Mesmo assim não ficámos na esplanada. Preferimos ir lá para baixo, para os chapéus. Para perto do mar.

Ninguém à frente. Ninguém ao lado. Praia quase vazia. Gosto de ver as marcas das patas das gaivotas na areia. Ninguém, depois delas, passou por ali.

O mar estava picado. Na Costa há dias assim.

Sem me aperceber, deixei-me levar por aquele cenário. O som das ondas a bater na areia e o cheiro do mar sempre me embalaram.

Andei anos para trás e lembrei-me dos nossos dias de praia, quando eramos miúdas.

No início íamos para onde a mãe queria. Depois fomos crescendo e...continuámos a ir para onde a mãe queria. Mas, vá, pelo menos já íamos contrariadas.

Nessa altura ainda era possível encontrar praias desertas. Parávamos o carro no fim da estrada da praia da Fonte da Telha e andávamos um bom bocado a pé. Queríamos uma praia só para nós. Queríamos é como quem diz…queria a nossa mãe! Porque eu e a mana preferíamos mesmo a confusão das praias da moda. Mas como ainda não tínhamos voto na matéria, nada feito.

Naquela praia havia uma fonte de argila, onde nos besuntávamos de alto a baixo, e assim andávamos um tempão, a brincar enroladas pela areia. Naquela praia perdemos vários relógios à beira-mar. Aliás, sempre que a nossa mãe nos via de rabo para o ar, aflitas, com a água pelos tornozelos, já sabia. Menos um relógio. Foi assim que perdi o meu Pop Swatch preferido, preto às bolinhas brancas.

Mais tarde, rendidas ao facto de termos mesmo que gramar com aquele lugar, optámos por começar a aproveitar o que de bom ele nos proporcionava: jovens surfistas. E assim arranjámos dois, um para cada uma.
 
Devíamos ter uns 12 ou 13 anos. O Miguel e o Bruno. Foram os nossos primeiros namorados. O Miguel era o da mana. Lindo. Parecido com o James Dean. O Bruno era o meu. Magrelas mas com uma cara gira. Sardenta. Surfistas, que era o máximo naquela época. Ah e, claro, os dois de cabelo loiro. Natural mas ajudado pelo wax que esfregavam nele.

Do Miguel nunca mais ouvimos falar. Já do Bruno, encontrámo-nos várias vezes, anos depois, entretanto casado, com filhos. Continuava giro, sardento, mas menos magrelas.

Naquelas idades ainda não pensávamos em dietas e todos os dias comíamos uma bola de berlim. Já conhecíamos a “música” que a senhora que as vendia entoava lá no fundo: “há bola, há pão com chouriço, há merenda!”. Assim que a ouvíamos, pedíamos dinheiro à mãe e púnhamo-nos em sentido. Venha ela.
 
 
Aquela mulher sempre me fascinou. De raça negra, sempre demasiado vestida para os dias de calor, sempre de branco imaculado, com uma caixa equilibrada no alto da cabeça. No ombro, uma mala cheia de gelados e bebidas. Numa das mãos, uma mesinha fechada.
 
Passava os dias para trás e para a frente, ziguezagueando por entre os chapéus-de-sol coloridos enfiados na areia seca. Parava de dois em dois minutos para vender o que levava. Era cansativo mas nunca vi uma expressão de desagrado na cara dela.
 
Assim que montava a mesinha, e em cima dela pousava a caixa dos bolos, era uma questão de segundos até que dezenas de pessoas a rodeavam. Muitas crianças atrás de bolos e gelados mas, acima de tudo, das suas bolas de Berlim.

Um dia percebi que aquilo era um negócio familiar. Umas vezes passava ela, outras a irmã, outras ainda o marido. E o filho trazia os bolos no carro, que estacionava no parque da praia e onde eles iam reabastecer sempre que já tinham vendido tudo.

Durante vários Verões cruzámo-nos com aquela senhora. Acompanhou de perto os anos a passarem por nós. Já crescidas e ainda nos vendia as suas bolas de berlim. Passavam vários vendedores, mas nós esperávamos sempre por ela. E tantas vezes o fizemos, que outras tantas ela acabou por nos oferecer. Primeiro a nós e, anos mais tarde, à Carlota.

Num desses Verões achei-a mais magrinha, pálida. De um ano para o outro deixámos de a ver. Soubemos depois que lhe tinha aparecido um cancro e que tinha morrido. Foi há poucos anos. Contou-nos o marido. Ao mesmo tempo que limpava as lágrimas com as mãos deformadas de carregar as malas de refrigerantes, dos gelados e a caixa dos bolos. Tinha saudades, dizia ele. A partir daí, nunca mais vestiu outra cor que não o preto.

Tinha umas as unhas dos pés enormes, curvadas. Por alguma falta de cuidado, é certo, mas claramente massacradas por anos naquela vida tão dura. Eu sempre odiei pés. E os dele tantas vezes me afastaram. Mas os olhos verdes esmeralda enterneciam-me. E voltava a aproximar-me. Deixámos de olhar para os pés, deixámos de ligar. Preferiamos olhar-lhe para os olhos.

Hoje continua a ser assim. Hoje ainda é a ele que compramos as nossas bolas de berlim. São as melhores. E o ritual mantém-se: sempre que o ouvimos lá ao fundo, pegamos nas carteiras, damos dinheiro à Carlota, que corre ao seu encontro. Recebe-a sempre com um sorriso. Um mesmo sorriso com que a mulher nos recebia quando tínhamos a idade dela. Conhece-a desde pequenina. Conhece-nos desde pequeninas.

Distinguimos o canto dele à distância. Porque manteve o da mulher. Quando ouvimos o “há bola, há pão com chouriço, há merenda!”, se fecharmos os olhos, viajamos no tempo e voltamos a ser crianças. Besuntadas de argila, a brincar à beira-mar, nas praias ainda desertas da Fonte da Telha.
 
 

6 comentários:

  1. A Dª. Marta deveria escrever contos infantis. Sabe escrever, tem humor e tem frescura para (também) esse tipo de público. Não tenho quaisquer dúvidas de que seria muito bem sucedida nessa área.

    Mas certamente que isto é algo em que já pensou, certo?

    Uma boa semana para si e para os seus!!!

    P.

    Ps: O "Dª." foi apenas para chatear!

    ResponderEliminar
  2. :), obrigada!
    E sim, adorava escrever para crianças...já me passou pela cabeça e um dia faço-o mesmo!

    Bjinho,
    marta

    O Dª não chateia:)

    ResponderEliminar
  3. Que delícia ler seu blog! Amo a pequenina que você foi, admiro e já me conquistou a jovem mulher que você é! Adorei a praia descrita e tive muita vontade de saborear esse doce que não existe aqui no Brasil, pelo menos com esse nome intrigante de Bolas de Berlim.

    ResponderEliminar
  4. Obrigada Maria!
    E sim, as bolas de Berlim são um doce maravilhoso! Principalmente quando o comemos com o mar como cenário;)

    Um enorme beijo para esse país lindo que é o Brasil e que eu um dia ainda vou conhecer!

    ResponderEliminar
  5. Ler este texto deu-me uma saudade..... da praia, da argila, das bolas de berlim

    ResponderEliminar