22 de dezembro de 2013

A força das pequenas coisas

O dia rompeu gelado. Mas com um sol enorme e quente. Que apetece.
 
Pego num dos livros que insisto em manter em cima da mesa-de-cabeceira durante meses, e vou para a varanda. Lá dentro deixo a música a tocar, para que a consiga ouvir cá fora.
 
Já vai longe a decisão de fugir da cidade. Quase 12 anos, se a memória não me falha. Queríamos uma vida mais saudável. Longe da confusão. Mais perto do cheiro do mar e do pinhal. E uma casa onde eu pudesse ser 100% autónoma, sem armadilhas.
 
Foi assim que encontrei a minha varanda. Estar cá em cima é como estar sentada numa plateia a assistir à vida a passar. Vidas a passar.
 
A minha rua está tranquila. Como sempre, temos a companhia dos pardais e dos corvos. Ao longe, mas como se fosse perto, o barulho do mar, em fúria, que por estes dias tantas histórias trágicas tem trazido com ele.
 
Pelo meio, ouvem-se os talheres da hora de almoço nas cozinhas. As televisões. Os putos que jogam futebol no campo que fica nas traseiras. Os donos dos cães que os deixam soltos pelo pinhal. O Mike é um deles. Um rafeiro castanho, com barbas brancas e olhos cor de amêndoa. Nunca acata a ordem do dono à primeira. É preciso chamar, chamar, chamar, até ele ouvir. Quer dizer, ouvir ele ouve, porque quando vem, parece vir a rir.
 
Entretanto o gato gordo e coxo, de quem já vos falei em tempos, foi adoptado. Mas por alguém que o conhece como ninguém. A enfermeira do prédio ao lado sabe que é um gato vadio, livre e, por isso, limitou-se a pôr-lhe uma coleira, a dar-lhe dormida, mas deixa-o solto durante o dia. Para além dela, todos lhe dão de comer. Daí estar gordo.
 
Mas, nos últimos dias, foi outro o bicho que decidiu vir viver para a minha rua. Em particular, para a minha varanda. Uma aranha, pequena mas gorda, que todos os dias se dedica a construir um pouco mais da sua teia. No início, quando ainda não me tinha apercebido desta presença, limitava-me a arrancar aquilo. Mas, quando ontem me preparava para o voltar a fazer, ela saiu de um buraquinho da parede - desculpem, da sua casa - e ficou parada na teia. Sem medo. Como se olhasse para mim e dissesse “bolas, pá, outra vez não...não faças isso… deu-me tanto trabalho!”. E não fiz. Agora já conto com ela. Deixo-a estar. Porque não haveria de deixar?
 
De vez em quando, muito de vez em quando, pára um carro. Lá de dentro sai o avô e a avó, que chegam para passar a semana com os filhos e com os netos. Afinal, é Natal. Com eles, vêm as couves, as cenouras e as batatas “lá da terra”, tudo em sacos do Pingo Doce.
 
Na paragem, uma senhora de cor espera pelo autocarro que a levará a casa depois de terminar o turno da noite no lar de idosos. Julgando-se sozinha na rua, canta uma música da sua terra. Naquele momento não está cá, está lá. Vê-se nos gestos que faz com o corpo, nos passos que se cruzam nos seus pés.
 
A ela junta-se uma adolescente de auscultadores gigantes nos ouvidos, gorro na cabeça. Ao mesmo tempo que troca sms com as amigas, abana-se ao som da música que está no top e arranca um sorriso à senhora. Começam a conversar. Nisto aproxima-se uma velhota de bengala, que todos os dias apanha o transporte para ir beber um chá depois do almoço, com as amigas de sempre.
 
Chega o autocarro, à hora, todas seguem os seus caminhos. A rua fica de novo vazia. Mas apenas por breves minutos.
 
Mesmo por baixo do meu prédio passa o amolador. Dizem que traz a chuva, o mau tempo, mas o céu continua azul e nem sinal de nuvens. Veremos. Os putos, os mesmos que antes jogavam à bola, passam agora por ele e imitam o som da gaita, no meio de gargalhadas. O homem, já velho, continua mas ri-se. Não se importa. Já teve a idade deles.
 
Cada pessoa que passa lá em baixo tem uma história. Uma vida. Aqui de cima, da minha varanda, vê-se parte dela. Atrevo-me a dizer, a parte que interessa.
 
Porque, como em tudo, são os detalhes que fazem a diferença.
 
 

1 comentário:

  1. Estes teus momentos de contemplação são magnificos. Obrigado pela partilha.

    ResponderEliminar