Já não escrevo há mais de 2 meses. Os dias têm sido preenchidos e com pouco espaço para a inspiração. Mas
o calendário da minha vida tem datas que não posso deixar que passem em branco.
Para que nunca as esqueça.
Foi há 10 anos. Estava
com 40 quilos. Quem me rodeava só não desviava o olhar por respeito. Magra e de
pele esverdeada. Tinha aguentado quase um ano de enjoos e a vomitar. Um ano com
uma ferida aberta que acabou por infetar. Um ano de muito trabalho que me fazia
agarrar aos dias melhores e aguentar os piores para o conseguir cumprir.
Seguiram-se meses
de cama de hospital. De exames. De visitas constantes de homens e mulheres vestidos
com batas brancas, especialistas em tudo. Do som das campainhas que tocavam
perto do balcão das enfermeiras sempre que alguém de outro quarto precisava de uma
delas. Do cheiro dos almoços que chegavam sempre tarde demais e dos jantares
antes da hora. Da rotina das manhãs. Do medo das palavras por não serem as que
eu queria ouvir. “Isto está a correr bem, não tarda estás em casa.” Em vez
disso “ainda não sabemos, estamos a fazer exames, por enquanto tens que ficar
cá connosco”. E era sempre um “connosco” carinhoso, preocupado, de “faremos
tudo o que pudermos”.
Mas não era convosco que eu queria estar. Era com elas,
lá em casa, e com os outros, no trabalho, na praia. Onde fosse. Mas não ali.
Foram meses sem a
minha casa, o meu ambiente, os meus cheiros, as minhas rotinas. A minha
história foi transportada para outro cenário, e durante tempo demais se desenrolou
ali. Senti-me num palco que não era o meu e num tempo que não acabava.
A passagem para o
quarto isolado foi ao mesmo tempo um alívio e um problema. Sabia que ia ter o
sossego que tanto pedia mas também sabia que quem ia para ali não ia por estar
a melhorar. Preferi ignorar e focar-me na tranquilidade que passaria a ter.
Lembro-me de numa
das idas a casa ter piorado ao fim de apenas dois dias e de me ter apetecido
desistir. Era a 3ª ou 4ª vez que voltava tudo ao início e senti-me sem força. “Se
é para morrer, que seja rápido, estou farta”. Senti cá dentro e cheguei mesmo a
verbalizar. A minha mãe olhou para mim com um ar sério e disse “calma, um dia
de cada vez, isto vai passar, vamos lá regressar ao hospital.” Sabia que eu
estava no meu limite, valeu-me não ter mostrado o seu.
Depois disso, vieram
ter comigo e comentaram que era urgente passar para um tratamento menos
conservador, tínhamos que dar o tudo-por-tudo. Para não me perderem. Aceitei sem
saber muito bem o que estava a aceitar, mas sem alternativa. Entreguei-me nas mãos
deles, mais uma vez.
De novo o frio da
sala de operações, a música de fundo. O aproximar das batas brancas de olhar
carinhoso, sempre preocupadas em aquecer o meu corpo e em me dar algum
conforto. O possível. E de adormecer devagarinho.
Dessa vez não
acordei tranquilamente. A cirurgia tinha sido maior, as drogas mais fortes, o
que me deixou mais em baixo. Mas foi a última. E a que me safou. Foi o “fecha o
capítulo, passa para o próximo”.
A recuperação foi
essencialmente feita em casa, já rodeada do meu mundo, ainda limitado, adaptado
à situação, mas do meu mundo.
Os jantares de
família aconteciam no quarto, tal como os serões. Uns na cama, outros no chão,
mas ali, à minha volta. E nunca ninguém se queixou da falta de conforto.
Os dias passaram,
as semanas passaram, fui sobrevivendo devagar, um dia de cada vez. Vieram os
meses, com eles as forças. E cada vez menos dores no corpo. E na alma. Na minha
e na de todos.
Um dia enchi-me de
coragem e, mesmo sem estar a 100%, voltei à empresa. Precisava de voltar rapidamente
às rotinas. Em cima da mesa as fotos, os copos cheios de canetas, os blocos de
notas, os jornais daquele que foi o último dia de trabalho antes de tudo
acontecer. O tempo parecia não ter passado. Estava tudo no mesmo lugar em que
deixei, e isso fez-me sentir que pertencia ali. Que me queriam ali.
Daquele tempo,
para além destas memórias, restam as cicatrizes. Hoje, 10 anos depois, sempre
que me sinto menos confiante ou com mais dificuldade em tomar uma decisão, olho
para elas. E lembro-me que, depois de superado tanto desafio, há pouca coisa
impossível.
E sigo em frente. Mais uma vez.
Querida Marta, já passaram 10 anos! Pará quem acompanhou de perto esse anos, esses meses de luta pela sobrevivência, não pode esquecer... Um grande beijo.
ResponderEliminarParabéns pela batalha ganha!
ResponderEliminarMarta,
ResponderEliminarÉ mesmo um Exemplo! Bem Haja!
Beijinho,
Mariana Sampaio de Freitas
Tive saudades de ler o que escreves e bem :) Obrigado pela partilha. Sempre em grande...ou como diz o meu sobrinho: gigantéssima :)
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