25 de abril de 2017

Voltar onde já fui feliz

Vou à varanda e deixo lá dentro a televisão ligada para ouvir os discursos sobre abril. Há qualquer coisa naquele som de fundo, ouvido ao longe, que me tranquiliza. Como o que vem do rádio.

É assim desde miúda, quando eu e a mana passávamos a tarde de domingo em casa, no nosso quarto, cada uma sentada na sua escrivaninha, a fazer os trabalhos de casa, enquanto a mãe preparava o bolo de laranja para o lanche. Ou quando ouvíamos o relato de um qualquer jogo de futebol com o pai, enquanto encaixávamos as centenas de peças da Lego que, para desespero da mãe, espalhávamos no centro da sala. 

Em casa da avó Olinda era a Renascença. À hora da sesta, deitava-nos em cima da cama dela, tapava-nos com uma manta, sentava-se no sofá ao lado e acompanhava o terço pelo rádio. Sempre lhe gabei a paciência. Ensinou-nos a rezar desde muito cedo mas, a quantidade de “Avés Marias”, “Pais nossos” e “Glórias” que ela rezava ali, eram demasiado para nós. E quando começava, com o “Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos, Deus Nosso Senhor, dos nossos inimigos. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, Amém”, dávamos por nós a tentar controlar o riso debaixo da manta, porque nos lembrávamos da versão que o nosso pai, ateu convicto, nos ensinara, só para a irritar. “Pelo sinal do Santo Pardal, comi toucinho e não me fez mal, se mais me dessem, mais comia, adeus Senhor Padre, até outro dia.” A desgraçada da D. Olinda subia as paredes, mas não era fácil controlar duas pestes com 8 ou 9 anos.


Estou de volta à varanda e continuo a ouvir, por entre os carros que passam, as palavras que vêm lá de dentro, e que marcam este que é o dia da Liberdade. 

É cedo, já tenho a casa arrumada e deixo-me ficar, sem pressa para nada. A tranquilidade aqui é grande.

Enternece-me a vizinha do prédio ao lado que, na varanda, sentada perto da mãe já velhota, lhe arranja o cabelo. Sempre a achei parecida com a minha avó Olinda. Tal como ela, também é baixa, gorducha, cabelo todo branco, desloca-se devagarinho e apoiada por uma bengala. Imagino que tenha, tal como a avó tinha, as mãos enrugadas, com sinais, arranjadas e, nos dedos, a aliança dela e do marido, juntas.

Vejo-a sempre de bata. A avó também as usava, feitas por si, sempre na velha Singer, que estacionou no fundo da cozinha, junto à janela que dava para as traseiras. Um espaço que recebia toda a luz necessária para ela, que já não via bem, marcar os tecidos que comprava a uma amiga no mercado de Alvalade e fazer as inseparáveis batas. 

Cresci com a televisão ligada. Ou o rádio. É para recordações destas que viajo quando ficam ligados, a fazerem de som de fundo.

E a minha varanda, essa, continua mágica. 

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