6 de fevereiro de 2013

"A felicidade está em conhecer os nossos limites e em apreciá-los."

Portugal não é um país preparado para uma pessoa com mobilidade reduzida. E sim, aprendam o termo certo: mobilidade reduzida. Mas Portugal não está isolado neste problema. E porque gosto de contar histórias, conto mais uma que se passou comigo há cerca de 2 ou 3 anos. 

Um dia o telefone tocou. Era a M, uma ex-colega da faculdade, militante de um partido de esquerda. Já não falávamos há anos. Tinha um convite para me fazer. Ir a Bruxelas conhecer o Parlamento Europeu. Tratava-se de uma iniciativa do partido dela, no âmbito de um daqueles dias/anos internacionais que alguém decidiu dedicar-nos mas que, infelizmente, de pouco servem.

Esclareci que o meu partido não era o dela e que não fazia parte de nenhuma associação. E que, por esse motivo, podia fazer mais sentido passar o convite a outra pessoa. Mas a M disse que não, que queria que fosse eu.

A viagem ia ser de autocarro, com várias paragens. Aí agradeci o convite mas expliquei que, por razões físicas, não ia conseguir aguentar a viagem que, se não me falha a memória, iria demorar 3 ou 4 dias. Sugeri fazer antes a viagem de avião, em low cost que fosse. E assim foi.
 


Convite aceite e depois de ter explicado tim-tim por tim-tim o que ia precisar em termos de acessibilidades, a minha cabeça começa a processar a informação. “Marta, enlouqueceste! Acabaste de aceitar um convite para estares 3 dias fora da tua casa, com pessoas que não conheces, num país que não é o teu. E vais sozinha. Pela primeira vez, sozinha.” E de avião, que odeio.  Fiquei um bocadinho em pânico mas, se por um lado a ideia me assustava, por outro desafiava-me a ultrapassar o meu medo.

Claro que a primeira reacção da minha mãe foi “Isso é que era bom! Sozinha? Só podes estar doida!”. Mas depois ponderou, percebeu que isto era um passo de gigante na minha independência e apoiou-me.

Nos dias que antecederam a viagem, e já sabendo em que hotel ia ficar, certifiquei-me que este tinha todas as condições que eu ia precisar. E não era nada do outro mundo: um quarto com a cama alta (ao nível da minha cadeira), uma casa de banho em que a sanita tivesse barras laterais e uma banheira com uma cadeira de banho rotativa. Tudo o que de mais básico um quarto adaptado deve ter. Deram-me todas as certezas de que tudo estaria preparado para me receber, para eu não me preocupar. Cá e lá.

Mesmo assim fui com o coração nas mãos. Parecia bruxa.

Viajei na TAP. E ao serviço que a companhia aérea disponibiliza para acompanhar pessoas com mobilidade reduzida, o My Way, nada tenho a apontar. Foram impecáveis.



Aterro em Bruxelas e espera-me um mini-bus adaptado para nos levar ao hotel. Íamos ficar no Hilton, 5 estrelas. Íamos porque comigo viajaram mais dois convidados. 

Quando me levam ao quarto, no 26º andar, já tarde, o meu queixo caiu. E não foi por ter um quarto de sonho, onde chegava a todo o lado. Deparei-me, sim, com uma suite com uns 50 metros quadrados, sem barras laterais na sanita e banheira sem cadeira de banho. Ah, e importantíssimo, uma zona de sofás e digna de uma casa de luxo. A única coisa que se safava era a cama, relativamente alta mas onde cabiam 5 Martas. 

Conclusão: não pescaram nada do que lhes foi dito. E mais do que uma vez. Para aquela gente, o equivalente a quarto adaptado era espaço. Muito espaço. Sim, de facto, ali cabiam umas 20 cadeiras de rodas.



Desci à recepção, expliquei o que se passava, e pedi um novo quarto. Pediram desculpa mas disseram que não tinham no momento. Quase a passar-me pedi um pc com acesso à net para lhes explicar o que era uma cadeira rotativa. Era o mínimo para poder passar ali duas noites. Na manhã seguinte disse-lhes: “Vou agora ao Parlamento Europeu. Quando voltar, agradeço que já tenham comprado uma coisa destas para eu tomar banho.” 

E lá fui, visitar o Parlamento, com o resto do grupo. Aqui conhecemos o espaço, as rotinas, os objectivos, todo o funcionamento. 



Seguiu-se uma conversa com a deputada do partido. Rapidamente percebi que a ideia era falar do que estava mal, do que tinha que ser mudado, da luta. E da luta. E da luta. E, ainda, da luta. E falou-se. Sempre com um ambiente tenso e pesado. Que me sufocava. Mantive-me quase sempre calada.

Depois, cada pessoa podia contar a sua história. Não ouvi uma contada pela positiva. Umazinha. Só queixas. No fim ganhei coragem e decidi correr o risco. Expliquei que era feliz de cadeira de rodas, que tinha um bom emprego, conseguido à minha custa, onde me tratavam bem, aliás, como qualquer outra colaboradora. Que, sim, havia muito para mudar em termos de acessibilidades e discriminação, mas que tínhamos que tentar fazer as coisas pela positiva. 

Atrevi-me ainda a defender que muitas vezes a discriminação partia de nós próprios. Que era verdade que tínhamos que lutar o triplo que os outros para conseguirmos chegar onde queríamos, mas que era possível. Que eu tinha conseguido, e não era melhor do que ninguém naquela sala. Nunca entregar os pontos, nunca desistir. Não nos sentirmos vítimas mas sim vencedores. Que era necessário cada um fazer a sua parte. E, acima de tudo, que havia várias formas de contribuir para melhorar a nossa situação. E todas elas mereciam respeito. 

Expliquei que jamais criticaria uma associação, porque são muito necessárias – algumas das quais já me tinham convidado para fazer parte do grupo -, mas que preferia não optar por nenhuma e contribuir antes tentando ser um exemplo no meu dia-a-dia. Para quem me rodeava, para quem partilhava comigo os dias de trabalho, no meu círculo de amigos. No meu mundo. Claro que isto soou bem a uns e mal a outros. Mas a vida é mesmo assim. Ninguém agrada a todos. Muito menos eu.

Bom, quando voltei ao hotel tinham-me mudado de quarto, agora para um adaptado, no 6º andar. E, sim, compraram uma cadeira de banho. Mas, ignorantes, sem ser rotativa. Ou seja, própria para alguém que precisa de tomar banho sentado, mas que se pode levantar para entrar e sair da banheira. Expliquei que não servia, prontificaram-se a mudar – espero que o tenham feito -, mas para mim já iam tarde e desenrasquei-me com aquilo.

Para se desculparem, deram-me acesso gratuito ao último andar do hotel, zona VIP, para tomar um pequeno-almoço executivo. Eu que acordo sempre sem fome. O jeitão que me deu…

Tudo isto se passou em Bruxelas, um dos países onde residem e por onde passam pessoas do mundo inteiro. E onde situa o Parlamento Europeu, o centro da democracia de 500 milhões de cidadãos, dizem. Mas também já se passou comigo noutros sítios.

Não é só Portugal que está a anos-luz do que é isto de acessibilidades. A iniciativa do partido teve o seu mérito e valeu muito a pena. Os outros nem nunca tinham pensado em fazer isto. 
Mas, enquanto não houver vontade política de todos os partidos, nada vai acontecer. 

Quero deixar aqui bem clara que a minha admiração por quem se dedica a fundo a esta luta é gigantesca. Mas também pedir que respeitem a minha forma de luta. Viver feliz assim. E passar essa mensagem todos os dias.

Mas não fazer disto o centro do meu mundo. Porque jamais será.

4 comentários:

  1. Nós achamos sempre que estamos atrasados em relação aos outros países mas efectivamente é mais na atitude e na liderança que temos um atraso crónico quase visceral.

    Quem viaja fora dos roteiros turísticos verifica, sem dificuldade, que a imagem que temos de nós próprios é muito negativa e a que temos dos outros é demasiado positiva.

    Não tenho medo nenhum de andar de avião já o fiz bastantes vezes mas,viajei pela Europa Central sempre de carro por opção, precisamente para poder ver coisas que doutra forma me seria difícil, viajei por sítios que nunca constam dos roteiros turísticos e gostei de perceber que por cá não somos tão atrasados como pensamos.

    Aliás há casos em que estamos bem mais à frente do que a maioria dos países da Europa que visitei.

    Por cá qualquer pensão rasca já tem internet por lá hoteis de 4* nem sempre têm, multi-bancos cá temos um a cada esquina, por lá...às vezes é difícil encontrar. Áreas de serviço como as nossas nops. E acredita tb vi lixo, WCs sujos, desordenamento, mamarrachos,etc, etc.

    Não viajei pelo 3º mundo, viajei pela Holanda, França, Alemanha, Bélgica, etc, etc.

    A grande diferença entre ti e a maioria dos comuns é que tu reclamas com razão no local para o efeito enquanto a maioria reclama para o ar e nunca chega a fazer-se ouvir.bjo

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  2. Olá Marta,

    Antes de mais óptimo testemunho.

    A tua descrição da tal "luta" e mais "luta" é realmente sufocante e angustiante. A dita "luta" não se faz apenas na ruminação e vociferação do que achamos q está mal.

    Acredito que muitos te descreveriam como uma lutadora, só que a tua diferença em relação aos ditos "da luta" é que podes reclamar, mas não te ficas por ai. Voltas para ver se as coisas mudaram, e dessa forma ter a tal abordagem positiva de que com intervenção e participação as coisas realmente mudam e um mau exemplo passa a ser história de sucesso.
    As mudanças para a cidadania plena de quem tem mobilidade reduzida tanto em Portugal como no resto do mundo, ficam-se pelas intenções, e acho q a maior parte das vezes apenas se deve à inércia própria do ser humano. E depois existe uma coisa que rege a sociedade actual e q é o dinheirinho que favorece muito a atitude de deixar tudo como está.

    Bom outra coisa vou deixar aqui o link para os teus 2 minutos de airplay. :)

    http://www.rtp.pt/programa/radio/p2361/c107020

    Beijo e até ao próximo

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  3. Olá Bruno, concordo pelnamente com o que dizes!

    Ainda há muito para mudar, mas muito pouca vontade...

    Obrigada por andares por aqui!

    bj,
    marta

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  4. MARTA VÇ FAZ A DIFERENÇA!!!BEIJINHOS...

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