Alcoitão 1991. Foi nesta data que fui para lá, depois de 1 mês internada em
Santa Maria. Tinha ficado paraplégica e, afinal, na altura aquele centro era o
melhor local para iniciar a minha recuperação. Mas eu diria que era antes praticamente
o único.
Alcoitão era um edifício enorme, com grandes jardins à volta.
Lá dentro, os corredores eram largos. O chão, se a memória não me falha,
era preto e branco. Em xadrês. Bar, minimercado e papelaria. Onde eu comprava
quilos de Tio Patinhas.
Tinha 3 pisos. O dos adultos, o das crianças até aos 15 e o dos mais velhotes.
Como eu estava no limite dos 15, e porque se dizia que a equipa médica era a
melhor, fiquei no das crianças.
No meu quarto havia 6 camas. E andaimes vermelhos por todo o lado, porque
aquilo estava em obras. O que ajudava a tornar o sítio ainda mais desagradável
e frio.
Quando fiquei paraplégica, ou melhor, quando me apercebi que não sentia as
pernas – porque paraplegia era um termo que nem conhecia bem – não entrei em
pânico. Talvez por alguma ignorância, porque nunca tinha ouvido falar do
assunto. E, por esse motivo, não conhecia a gravidade de “não sentir as pernas”.
Por isso, a minha atitude foi de alguma tranquilidade e “bom-deixa-lá-ver-se-isto-passa”.
E porque a atitude era esta, continuei bem-disposta e a lidar bem com a
situação. Fiquei à espera. Até porque achei que era mesmo uma situação passageira.
Aliás, durante algum tempo foi assim que encarei a coisa. Eu e todos os que me
rodeavam. Hoje, à distância, percebo como isto foi importante para aceitarmos o
que tinha acontecido: foi gradual.
Mas voltando a Alcoitão. Entrei, penso que em Abril. A ideia era fazer
exercício ao máximo para recuperar a sensibilidade que tinha perdido da cintura
para baixo.
Todos os dias tinha a visita dos meus pais e irmã mas, até me habituar à ideia
de ter que ficar internada, custava-me muito quando chegava a hora do “bem,
querida, temos que ir embora, está na hora de ires jantar…” Vê-los dobrar a
esquina do corredor, vê-los a voltar à vida que eu não podia ter, mesmo sabendo
que no dia seguinte estariam comigo de novo, o meu coração partia-se ao meio. Fartava-me
de chorar.
Uma parte dos dias passava-se na sala de fisioterapia. E, porque estava no
piso das crianças, também numa sala de jogos e pinturas. Ora, não sendo eu propriamente
uma criança, sempre que podia pisgava-me para o bar do piso 0, onde trabalhavam
dois jovens surfistas com muito bom aspecto e com quem eu, obviamente, preferia
passar o tempo. Nem se contam as tostas mistas que eu comi na altura só para
ter motivo para lá ir…!
Ainda houve quem me tentasse vir buscar e convencer que tinha que
participar nas actividades de grupo. Mas não conseguiam. Cantar o “Atirei o pau
ao gato” e desenhar casinhas com chaminés e flores não era, de todo,
alternativa a estar no bar à conversa com surfistas tão giros.
Não posso dizer que arranjei amigos em Alcoitão porque não arranjei. Até
porque eu estava lá para recuperar e à sexta-feira ia a casa de fim de semana.
E aí, sim, estava com os meus amigos. E aí sim, fazia o que gostava.
Lembro-me de ir para a praia. Muita praia. De me pegarem ao colo e de me
levarem para dentro de água. Algo que, com o tempo e por circunstâncias que darão
um dia para mais uma crónica, deixei de fazer.
Quando me “apresentava ao serviço”, na 2ª feira de manhã, e eles viam os
escaldões nas pernas, passavam-se comigo. Com razão, porque eu tinha que ter
cuidado. Mas também me divertia ver as caras deles.
Lembro-me do cheiro daquilo. Lembro-me do cheiro do perfume que usava na
altura. O El Charro. Lembro-me de gostar de sutiãs de renda às cores e das
auxiliares se meterem comigo por isso. Lembro-me deles não entenderem que eu
preferia tomar banho com o gel de banho que a minha mãe me comprava do que usar
o Manipur, marca que eles usavam no Centro. Lembro-me que, por tudo isto, deixei
de ser a Marta para passar ser “a Madame”.
Na altura Alcoitão tinha poucos profissionais (diziam eles, porque o que eu
acho é que gostavam de sair cedinho) e, por isso, não me punham na piscina. E tinham
uma fantástica. Mas rapidamente arranjámos alternativa. Durante a hora do
lanche, que coincidia com a hora das visitas, vestia o meu biquíni amarelo fluorescente
com laçarotes de lado e ia nadar para a piscina do Muchaxo, no Guincho. Depois
parávamos no Tamariz para lanchar. Também havia coisas boas.
Mas Alcoitão não via isto com bons olhos. Alcoitão não estava preparado
para receber uma família que quebrava regras, rotinas. Que não perdia
facilmente a esperança. E a minha era assim. Sabíamos que era difícil mas tínhamos
que tentar. Em Portugal ou noutra parte do mundo.
Ali “pensava-se o pior, pode ser que aconteça o melhor”. A minha família preferia
“pensar o melhor, porque era o melhor que ia acontecer.” Pensar positivo. E
isto foi um problema lá dentro.
Desde logo comigo, quando a psicóloga meteu na cabeça que eu tinha que ir
ao “fundo do poço” e depois sair de lá. “Fundo do poço”. Era uma expressão
deles, não minha. Bem tentei explicar que acreditávamos que aquilo ia passar,
que eu ia voltar a andar e que íamos tentar tudo. Mas eles insistiam no raio da
conversa do poço. Claro que esta questão acabou por dar barraca, com a minha
mãe a proibir a psicóloga de voltar a falar comigo. “Se a Marta precisar, ela
vem ter consigo. O contrário eu não quero. Estamos entendidas?”. E Sim, ficaram.
Nunca mais me chateou.
Mas as coisas nunca mais foram as mesmas. Nessa altura tomámos a decisão de
sair de Alcoitão. 4 meses depois de ter entrado e ter aprendido a…passar para a
cama. Claro que havia bons profissionais por lá, mas as memórias que guardo, no
geral, são más. Dizem-me que apanhei a instituição num momento mau, que hoje
não é assim. Espero que não seja, porque a mim pouco me ensinaram.
Mentira. Uso o cliché “o que não nos mata torna-nos mais fortes”. E se
aquela merda não me matou, ensinou.me a resistir mais e a tornar-me numa mulher
de aço. A mim e a quem me rodeava. E, vendo bem, isso não foi mau. Preparou-nos para a vida.
Seguiu-se Londres e os melhores Neurologistas. A resposta foi: estamos a
testar o tratamento em ratinhos. Tanto pode demorar 10, como 20, 30 ou 40 anos.
Ou nunca sair do laboratório. Já passaram 23 e ainda não aconteceu. Mas retive
uma coisa que o médico disse. Esta miúda deve continuar a ter este espírito. E
continuei.
Podem dizer-me: mas eles tinham razão, tu não voltaste a andar e eles
quiseram preparar-te para isso”. É verdade. Mas, se lhes tivesse dado ouvidos,
se tivesse seguido a "estratégia" deles, não eram as pernas que eles me cortavam.
Eram as asas.
E, essas, meus caros, nunca ninguém mas vai conseguir sacar.
O que é que eu digo?!... simplesmente obrigado por partilhar essa força com o resto do mundo!...
ResponderEliminaré um prazer enorme Teresa. Obrigafa!!!
EliminarMarta!!!tou babada c o teu blogue!!!!Sou fã!!!Sao mulheres como tu q me dao uma garra do caraças!!!!!
ResponderEliminarque bom saber que estás a gostar! Mantem te por cá!
EliminarCaramba, Marta, deixas-me de lagrimas nos olhos! E hoje já coleccionei muitas... Beijos e continua a partilhar a tua vida...
ResponderEliminarCat, é uma chorona, tá visto! um bjo e vai correr tudo bem. ;-)
ResponderEliminarCheguei agora e vou ficar... E porquê? Porque fiquei com um nó na garganta e tudo que me provoca isso me ajuda.Ajuda-me a sentir que estou viva, ajuda-me a ver com o coração, ajuda-me a crescer. Obrigada
ResponderEliminarVamos a isso Edien! Bem vi(n)da!!!! ;)
ResponderEliminarComo já disse ( escrevi) num link que me trouxe aqui , este blog ( e a sua história ) é uma lição de vida. Óptimo para mostrar as crias mais velhas (16 e 14) e para contar algumas das historias às mais novas (11e 9)
ResponderEliminarObrigada Marta pela partilha .
Rita Pinheiro
Obrigada Rita, vou dar o meu melhor para continua a ser "mostrada" às crias:)
ResponderEliminarConheci este BLOG por acaso... alguém gostou dele... e eu curiosa vim espreitar! AMEI!
ResponderEliminarCada post teu é uma lição de vida! Adorei este e todos os outros. Obrigada por existires e por seres tão positiva! Sempre disse às minhas amigas e colegas que ser negativa traz mais desgraças atrás... e por isso tento sp ser positiva. E neste momento de crise nacional é preciso ser o mais positiva possível! Tu consegues isso! Obrigada por partilhares estes textos LINDOS com todos! Um conselho... escreve um livro! Passa estes teus textos e muito mais para o papel... e eterniza o teu ser, a tua personalidade! Pode ser que consigas! Outro conselho.... escrevo-o também em Inglês.... para que muito mais pessoas possam ter acesso.... Vai pensando nisto! Tens uma fã!