A mim marcaram três. Uma
pela negativa e dois pela positiva. Comecemos pela pior, para
podermos acabar com os melhores.
Chamava-se Silvina e foi
minha professora da 1ª à 4ª classe. Era velha e "má como as cobras”. Tinha uma
régua enorme e grossa – pelo menos na altura parecia-me enorme e grossa – com que nos batia nas
mãos quando nos portávamos mal.Lembro-me do António. Para nós, o Tony. Era um rapaz gorducho, de bochechas coradas, que se portava mal com alguma frequência e quase nunca fazia os trabalhos de casa. A vida familiar dele não era fácil. Nós sabiamos que não tinha um ambiente equilibrado em casa.
Quando chegava a altura do Tony mostrar os TPC's, e a professora percebia ele que não os tinha feito, a sala ficava mais pequenina. O tecto mais perto de nós. Porque sabíamos o que aí vinha.
A professora levava-o para a casa de banho, que ficava num dos cantos da sala, baixava-lhe as calças e dava-lhe reguadas atrás de reguadas. Até a mim me doía. Aliás, doía à turma inteira. Mas nem piávamos, com medo. E ele nem uma lágrima deitava. Mas percebiamos pelo seu olhar a dor que ele sentia por dentro. A dor de ter sido, mais uma vez, humilhado por aquela mulher. Lembro-me bem da cara dele.
Um dia foi comigo. Devo
ter feito alguma coisa que ela não gostou e imediatamente me mandou estender as
mãos. Estendi, claro. Deu-me três reguadas em cada uma. Nunca mais me esqueci. A
força foi tal que as mãos incharam. Chegou a hora de almoço e, como fazia sempre,
fui almoçar à cantina. Mas com as mãos doridas não conseguia pegar bem no prato.
A D. Noémia, cozinheira, reparou. E passou-se. Obrigou-me a ir ao gabinete da
Drª. Sara, directora do externato, e contar o que se tinha passado. Contei não só as
minhas reguadas, mas também as reguadas do Tony, e as de todos os outros
meninos. Nesse dia fui a heroína da turma! Mas bem me tramei nos dias seguintes!
A professora Silvina também foi
chamada ao gabinete. Não sei o que se passou lá dentro. Só sei que nunca mais
nos bateu. Só que, de vez em quando, vingava-se de mim. Não me batia mas obrigava-me a ir para o
“cochicho”, uma mesa, separada de todos os outros colegas por uma parede
fininha de madeira. Só tinha vista para…a professora. Isto antes de eu ir para
lá. Porque enquanto lá estive, e com o bico de uma caneta velha, fui fazendo um
buraco na parede, devagarinho, devagarinho, e também fiquei com vista para a
mesa da Cláudia. Ora a Cláudia era "só" a melhor aluna da turma. E, quando se apercebeu
do buraco, punha os trabalhos a jeito para que eu conseguisse copiar se
precisasse. Nem precisava, mas se fosse necessário, dava para ver. Ao fim de 2
semanas, voltei ao meu lugar, perto do resto da turma. Mas o buraco lá ficou. Para
o próximo.
Mas este foi o mau
exemplo, vamos aos bons.
O Filipe. Era o nosso
novo professor de Educação Física. Por questões familiares, tive que faltar à
apresentação. Por isso, assim que entrei na 2ª aula, oiço um “ah, então esta é
que é a espertinha que se baldou à 1ª aula”. Disse-o para toda a turma ouvir. A
relação tinha começado mal. Mas cedo percebi que o Filipe era um professor
diferente. E a grande diferença estava na forma como se relacionava
com os alunos e a paixão com que se dedicava ao seu trabalho. Não ensinava
apenas as cambalhotas, os pinos, o futebol e as coisas normais de um professor
de Educação Física. Esforçava-se por ensinar outras modalidades, promover o
espírito de equipa, ser amigo dos alunos. Até Basebol, Jogo do Pau e Folclore aprendi. E, como eramos
apenas três miúdas na turma de Desporto, a luta para fazer os pares no Folclore era sempre
caótica. O Filipe também foi o primeiro professor de Educação Física que nos pôs a
fazer testes escritos da disciplina. E não dentro da sala. Sentados nas
bancadas do Estádio 1º de Maio.
Fiquei de cadeira de
rodas precisamente na altura em que era aluna dele. Talvez um ou dois
meses antes. Lembro-me de termos ido passar um fim de semana à Serra da Estrela
pno fim de Fevereiro. O acidente aconteceu a 11 de Março. Já não puderam
contar comigo em Peniche (acho que era Peniche…), para o jogo de vólei
contra uma escola da zona. O Filipe entrou assim na minha vida. E nunca mais saiu. 23 anos depois, é um dos meus melhores amigos.
E, para terminar em grande, mais um bom exemplo: a professora Fátima. Ensinou-me a disciplina de Jornalismo, penso que no 11º ano. Nem ela sabe, mas foi a responsável por eu ter seguido o caminho da Comunicação e, claro, por me ter lembrado de escrever esta história.
Tantos e tantos anos depois, recebi ontem um email dela que me tocou profundamente.
Dizia mais ou menos isto:
"Minha querida Marta, um dos meus filhos soube do seu blog e deu-me conhecimento. Fiquei tão contente por ter notícias suas!
Não sei se ainda se lembra de mim, fui sua professora de
jornalismo no "Rainha". Nunca vou esquecer aquela miúda
"refilona", cheia de alegria e muito querida. Já li tudo o que escreveu e acho que escreve muito bem. Não sei se este email vai chegar, pois não sei se o
endereço está correcto.
Um beijinho grande."Foi esta senhora que me ensinou a escrever notícias e a interessar-me por jornais. As aulas dela eram, a par das do Filipe, das únicas que eu gostava. Lembro-me que já estava de cadeira de rodas e do trabalho de fim de ano ser fazer uma reportagem. Tinha saído de Alcoitão há um ano e, como tinha odiado lá estar, queria aproveitar para denunciar o que eu achava que se passava de errado naquela instituição. Não me deram autorização, claro.
A vida avançou, entrei
para a faculdade, tirei Comunicação e hoje cá estou, a trabalhar na área.
Foram 20 e tal anos a
estudar e, de todos os professores que me marcaram, estes foram os tais. Um agradecimento do tamanho do mundo ao Filipe e à Fátima por terem influenciado, de alguma forma e em algum momento, a minha vida, o meu percurso.
A professora Silvina já
morreu, o Filipe continua por perto, muito perto. E a Fátima apareceu de novo na
minha vida. Se este blog não servir para mais nada, já serviu para isto. Fico
feliz por isso.
Adorei ler como sempre, Beijinhos ;) Sofia
ResponderEliminarObrigada querida:)
EliminarE aqui temos outro lindo texto, saído do fundo do coração.
ResponderEliminarObrigada João!
ResponderEliminarOlá, Marta!
ResponderEliminarVim aqui parar através da SMS. Também eu fui aluna do Filipe e também a minha vida foi marcada pelas aulas dele! Perdi-lhe o rasto mas já tive oportunidade de lhe enviar um email a dizer o quanto me marcou enquanto professor e enquanto ser humano!
Bj