O mundo dos sem-abrigo é um mundo em que a droga, o álcool e os problemas
psiquiátricos são “reis e senhores”. Quem conhece o ambiente em que me movo às
4ªas feiras percebe o que eu quero dizer.
José, nome fictício, para o proteger. Quando me cruzei com ele na Gare,
rapidamente percebi que não encaixava naquela equação. Sempre impecável, sempre
educado, sempre discreto, sempre humilde.
Um dia aconteceu ficarmos à conversa e contou-me, finalmente, a sua
história. Desavenças familiares, falhas enormes de comunicação e orgulhos em
cima da mesa ditaram o afastamento.
Depois disso, o desemprego, outros países, outra vez a vida a virar-lhe as
costas. Veio de assalto a falta de capacidade para se endireitar sozinho e, daí
até à rua, foi um passo curto.
Ouvi-o, desejei-lhe força e coragem para continuar a enfrentar aquela
realidade, e dei-lhe os parabéns por conseguir fazê-lo sempre sem cair nas
tentações que a rua esconde a cada esquina. E fui para casa sem conseguir tirar
aquilo da cabeça.
Foi naquele momento que me lembrei que, dias antes, vira um post do Vasco
no Facebook, a pedir um copeiro para integrar a equipa no seu restaurante,
situado numa zona nobre de Lisboa.
No dia seguinte liguei-lhe, arrisquei e perguntei-lhe “Queres dar uma
oportunidade ao José? Algo me diz que ele não vai falhar.” Respondeu-me, sem hesitar, “Sim, quero”. Depois disto combinámos o dia para
os apresentar e, mais uma vez, o José chegou mais cedo, impecável, educado, discreto
e humilde. Já o Vasco chegou nervoso.
Lembro-me de duas coisas que ele lhe disse, logo para começar “O que tenho
para ti é trabalho. Estás preparado para trabalhar?”. O José respondeu que sim.
E terminou com um “Então amanhã vens ter comigo à porta do hotel, ao meio dia, e
vamos ver como corre.”. “Chegarei às 11h”, respondeu o José, já de lágrimas nos
olhos. Ele e eu, caraças.
Isto foi em julho. Daí para cá, eu e o Vasco íamos falando com muita regularidade
e, sempre que lhe perguntava como estava a correr, ele descansava-me dizendo não
podia ter encontrado melhor colaborador: dedicado, esforçado e profissional. “Não
te preocupes, continuo 100% satisfeito, Marta!”.
Foi assim que o José saiu da rua e foi assim que a vida dele se começou a
endireitar.
Naquele dia em que os apresentei, pedi ao José que me desse o seu número do
telemóvel. Como não o sabia de cor, tirou um papel do bolso onde o tinha
escrito e, para o conseguir ler, aproximou-o demasiado dos olhos. Percebi que
algo de errado se passava e alertei o Vasco: “Assim que conseguirmos, temos que
perceber se tem falta de vista.”
Há uns dias, o José deixou-se levar, finalmente, ao médico para fazer
exames e sim, tinha falta de vista. A receita acusava, aliás, muita falta de
vista. Próximo passo? Arranjar-lhe uns óculos para voltar a ver como deve de
ser.
Mais uma vez recorri aos meus contactos e lembrei-me de outro amigo
especial, também de há muitos anos, o Nuno, que já tinha respondido ao meu
apelo uns dias antes para arranjar roupa ao José. Ele, a Deolinda e o Diogo, estes
últimos amigos e colegas de trabalho que, tendo sabido da história, não quiseram
ficar de fora e fizeram questão de ajudar a pôr nos eixos a vida de alguém que
precisava e, acima de tudo, parecia querer.
Ontem o Nuno enviou-me uma mensagem a dizer “Os óculos estão prontos e
pagos. São oferta do Grupo Olhos nos Olhos, loja de Telheiras”, empresa do
Fernando Tomaz, sócio-gerente e Optometrista, que “é um dos melhores seres
humanos que conheço”. Ele, o Cândido Ramos e o João Martins, também
Optometristas e colaboradores do Grupo, que receberam o José de braços abertos
no dia de escolher as armações. E acrescentou “Só têm um pedido em troca: que o
José seja feliz com os óculos novos.”
Engoli em seco. Agradeci. Liguei ao Vasco, dei-lhe a novidade. “Vou pôr-te
em alta voz, o José está aqui ao meu lado, dá-lhe tu a notícia”. E foi-me dado
esse privilégio. Do outro lado, primeiro houve silêncio, depois um “obrigado”
mais uma vez carregado de humildade. Contou-me o Vasco que, depois disto, o
José se agarrou a ele a chorar, de felicidade.
Hoje o José foi buscar os óculos. Ligou-me logo a seguir, mais uma vez para
agradecer, e para me dizer que o fim de semana ia ser passado a ver o que há
anos não via e tinha vergonha de confessar.
As cores das flores, o mar. Tudo o
que o rodeia. E a ele próprio.
O José voltou a ver como merece. O José voltou a ver e, devagarinho, vai
voltando a sorrir.
E eu deito-me todos os dias com a certeza de que a vida só vale a pena
quando nos rodeamos de boas pessoas, e que a minha está cheiinha delas.
Ao Vasco, ao
Nuno, ao Fernando, ao Cândido, ao João, à Deolinda e ao Diogo: obrigada por
estarem atentos e obrigada por estarem por perto.
Ao José,
deixo-lhe a mesma mensagem que lhe deixei quando falámos: que ele já não está
sozinho.
....bem haja a todos que puderam fazer a vida do "Jose" melhor .... e Marta fazes-me ficar de olhos turvos e com dificuldade de ver para escrever !!!! Beijo grande.
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