9 de dezembro de 2018

Abre a boca e fecha os olhos



Entrei neste grupo pela mão da Ana P, que conheci em ambiente de trabalho, mas com quem senti uma química tão especial, que rapidamente percebi que ali se desenhava uma amizade para a vida.

Já conhecia alguns dos outros elementos - como a Suzanne, a Ana R, a Michelle, o Luís M, a Vanda, a Isabel, as Sofia T e a Luísa - tudo gente com quem tive a sorte de me ir cruzando neste percurso nas TI que já leva 20 anos. Pouco mais tarde, juntou-se o Manuel, outra amizade longa com que o mundo das Tecnologias me brindou e que tenho mantido por perto.

Jantamos com a regularidade que as vidas permitem, nunca podemos todos, mas lá vamos conseguindo juntar a maioria. E assim conheci o Luís D, a Maria, o Bruno, o Ricardo, o Diogo, as Joanas, o Alexandre. Desafiamo-nos pelo whatsapp, até conseguirmos uma data que encaixe na maioria das agendas - tramadas - que todos temos.

Descobrimos novos restaurantes, divertimo-nos nos rooftops mais badalados, mas o “onde” importa pouco, porque o que conta é relaxar depois de um dia afogado em responsabilidades próprias de malta atarefada, e acabá-lo com uma conversa descontraída e descomprometida, já sem gravatas e sem o filtro que o tempo no escritório tantas vezes impõe.

É sempre bom quando estamos juntos. Mas o último encontro vai ficar marcado no coração de cada um de nós de forma muito especial.

O desafio foi lançado pela Ana R com um “depois de falar com a Marta e com a Ana P, propus um programa diferente para o nosso jantar de Natal: uma experiência única, inesquecível e muito especial. Esta época natalícia pede um encontro que nos permita contar uma história e mostrar como se vê o que não se observa. Estejam atentos ao email.”

A experiência só foi revelada no dia anterior e ia ser brutal: o jantar seria vegetariano, típico sírio, cozinhado pelo Haitham Khatib, refugiado que vive em Portugal há pouco mais de 2 anos, onde trabalha em teatro. Seriamos guiados pela D. Ana, que, depois de uma meningite aos 5 anos, foi perdendo gradualmente a vista, até cegar por completo aos 37. Tudo isto no espaço da Paula Gamito, uma empreendedora de coração gigante que toda a vida promoveu/apoiou causas variadas, e que abraçou os Jantares às Escuras, projeto que criou e que conta com o apoio da Associação Promotora de Emprego de Deficientes Visuais.

À hora marcada tinha o Alexandre à minha espera na garagem da minha empresa para irmos juntos. Pelo caminho aproveitámos para saber mais um do outro, rimo-nos - e o que eu gosto de me rir.

Chegámos cedo à porta do prédio onde ia decorrer o jantar. Esperámos uns pelos outros no hall. Tínhamos mesmo que entrar todos ao mesmo tempo.

A expectativa do que estava para lá daquele rés do chão perdido numa das ruas de Lisboa era grande. 

A porta da casa abriu-se, finalmente. A Paula juntou-se a nós e explicou o que ia acontecer. Com ela vinha a D. Ana. Entrámos quase um a um, sem uma ponta de luz para nos guiar, apenas orientados por uma espécie de brilho que vinha da voz da D. Ana e que nos levou, direitinhos, aos nossos lugares.

Prato a prato, fomos sentindo o sabor de cada ingrediente. Enchemos os copos de vinho e água. E, já agora, a nós também, porque nos faltava a destreza de o fazer sem referências visuais, e o fazíamos recorrendo apenas ao toque.

Sabia que o Alexandre e a Maria estavam ao meu lado, e que ao lado deles estava o Ricardo e a Ana P. Ouvia o Luís D por perto, mas talvez mais perto do Manuel, da Ana R e da Michelle. Não conseguia situar o Diogo, a Joana e a Sofia N e sentia a Suzanne e a Sofia G próximas de nós. Mas, certezas? Quase nenhumas.

Dei por mim muitas vezes em silêncio a tentar perceber, recorrendo aos sons que me chegavam, como era a sala, como estava posicionada a mesa, quem estava onde. Dei por mim muitas vezes apenas focada na entrada e saída silenciosa da D. Ana, que circulava habilmente entre cada um de nós, quase sem nos tocar, sempre com um doce e, ao mesmo tempo, seguro “com licença, Marta, aqui tem o seu prato”, colocando-o delicadamente à minha frente.

Foram mais de 2h de conversas (e tantas gargalhadas) mergulhadas daquela escuridão total, que começaram nervosas, pelo desconhecido e pelo incerto, mas que devagar se foram transformando em tranquilidade e confiança, por sentirmos que estávamos a conseguir ver o que não observávamos.

No final do jantar, a luz de apenas uma vela iluminou a sala. Lá estava a Maria e o Alexandre, ao meu lado, depois o Ricardo e a Ana P, o Luís D logo a seguir. Na mesa seguinte, o Manel, a Ana R, o Diogo, a Joana, a Sofia N, a Michelle. Noutra, atrás da nossa, a Suzanne e a Sofia G.

E foi neste ambiente - quase íntimo - que soubemos um pouco mais sobre a vida da D. Ana e do projeto da Paula, que partilhou, orgulhosa, ter sido ela a empratar cada refeição, sem qualquer luz para a ajudar.

Foi também neste momento que percebi que a minha presença tinha sido mais um desafio lançado à Paula, que se empenhou para que eu me sentisse verdadeiramente integrada na experiência, esforçando-se por eliminar qualquer obstáculo físico que pudesse contaminar a minha experiência.

Antes de sairmos, a última surpresa: conhecermos finalmente o Haithamm, que nos mostrou cada prato que havia preparado para nós e explicou cada ingrediente.

Já na rua, ligámos os telemóveis, que falta nenhuma nos fizeram durante o jantar.

Devo confessar que depois disto tudo, talvez pela intensidade da experiência, e de sentir na pele de forma tão crua uma realidade que não é a minha, me senti mais próxima de cada um dos elementos daquele grupo.

Na despedida, que já era tarde, abraçámo-nos de forma carinhosa e com tempo, e cada um seguiu a sua vida. Mas algo me diz que, daqui em diante, a vamos ver com outros olhos. Literalmente.




4 comentários:

  1. Marta, perfeita descrição daquilo estava à espera após a nossa conversa, de saber como teria sido esse jantar extremamente interessante.

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  2. Olá Marta, que experiência e relato especial! Obrigada pela partilha e contágio para um serão diferente...

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