Deficiente. Nunca gostei desta palavra, talvez por isso cedo a tenha eliminado do meu
discurso, mesmo que inconscientemente.
Mas hoje, sendo
o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, tenho que a engolir. A ela e à
data, que, num mundo justo, não devia existir.
Ter mobilidade
condicionada - prefiro estas - em Portugal é ter que escolher onde almoço ou
janto com os meus amigos pelos acessos e pela casa de banho.
É não conhecer
as ruas do bairro onde vivo há anos. É não poder circular livremente na minha
cidade e no meu país. É nunca, mas nunca sair de casa sem antes estudar cada
centímetro de chão que vai ser percorrido pelas rodas da minha cadeira quando o
fizer. É não conseguir uma casa de férias onde não precise de depender de
alguém.
São os
restaurantes onde não consigo entrar, os quartos de hotel onde ninguém pensa em
mim, os aeroportos que não me sabem receber, os museus que não visito, os cafés
onde não entro, as bibliotecas que não conheço, os jardins que não percorro, os cinemas que não me incluem, as praias que não me facilitam acessos,
as salas de espetáculos que se esquecem de pensar num lugar para mim, as seções
de voto colocadas eleição após eleição em espaços que ficam para lá de escadas.
Ter mobilidade condicionada em Portugal é viver num
país que assobia para o lado quando sabe que um cidadão tetraplégico esteve 3
dias deitado numa cama, ao frio, enjaulado, à porta da Assembleia da República,
em total exposição pública, e que se manifestava contra o facto de não poder
recorrer ao programa Modelo de Apoio à Vida Independente
por viver num lar. Já agora, lar esse para onde foi desde que começou a
trabalhar e o Estado lhe “cortou” a assistente pessoal que todos os dias o
ajudava, privando-o
da sua autodeterminação
e condenando-o a uma
vida indigna.
Há uns dias, em
conversa com uma amiga, ela perguntava-me se alguma vez me tinha sentido
discriminada.
Podia ter-lhe
respondido com tudo isto, mas a pergunta fez-me viajar até àquele dia em que a
professora de alemão do secundário se referiu ao esforço que os meus colegas
tinham que fazer para chegarmos até à sala de aula com um “eles é que têm que
carregar consigo”. Dali saltei para a tarde de praia em que a irmã de um rapaz
do meu grupo de amigos de férias me respondeu com um “tu nem da cadeira te
levantas”, quando lhe levantei a voz numa discussão parva de adolescentes.
Passei ainda pelo dia em que precisei de dizer à seguradora do meu banco que
não precisava de agravar o meu seguro em 200% porque eu não ia morrer por estar
de cadeira de rodas.
São 27 anos de cadeira de rodas e quase todos os dias
passo por uma destas situações. Eu e quase 1 milhão de portugueses que (sobre) vive
com algum tipo de limitação, e que não vemos nas ruas porque nem sempre se
consegue ultrapassar estas barreiras, sejam elas físicas ou culturais..
Mas ter mobilidade condicionada em Portugal também é
sentir na pele esta desigualdade e escolher combatê-la com um sorriso no rosto,
como se tivéssemos uma espécie de superpoder que faz com que nunca desistamos.
Mesmo perante um país que tantas vezes se esquece de nós e que assiste sem se
insurgir à mais desumana das realidades: a indiferença.
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