27 de fevereiro de 2013

“As tartarugas conhecem as estradas melhor do que os coelhos”



Daqui de cima, da minha varanda, sem pressa, vejo de tudo.

Vejo quem chega. Vejo quem parte.

Vejo quem chega mas quer partir. Vejo quem parte mas quer ficar.

Vejo quem não parte mas que devia partir.

Vejo a vizinha vaidosa que acha que deslumbra com o olhar. Mas não percebe que já ninguém sequer lhe olha para o resto, quanto mais para os olhos.

Vejo gente que nunca via, mas que passei a ver porque perdeu o emprego.

Vejo a avó que fica com os netos e que todos os dias lhes ralha porque eles não fazem os que ela lhes manda.

Vejo o vizinho enfermeiro que, por ser enfermeiro, anda sempre desencontrado nas horas.

Vejo o casal de velhotes que todos os dias, à mesma hora, apanha o autocarro para algures.

Vejo os pais a saírem cedo demais, com os filhos encasacados, para mais um dia de escola e trabalho.

Vejo os senhores das obras do prédio ao lado a saírem juntos para almoçar na tasca do fundo da rua porque “é barata e come-se bem”.

Vejo o casal engraçado - ele muito magrinho, ela muito gordinha - que entra no carro a discutir, mas que quando regressa já vem de mão dada. E ela com uma flor numa das mãos.

Vejo o motorista do autocarro cuja pausa na paragem é sagrada para fazer um chichi num desgraçado de um pinheiro escondido num canto do parque de estacionamento.


Vejo o grupo de senhoras mais velhas que fazem as suas caminhadas, de manhã bem cedo e ao fim do dia. Todas com uns ténis calçados e de coletes reflectores vestidos. Falam das noras, dos genros, dos maridos. Da vida. Sim, na maioria das vezes, da vida dos outros.

Vejo os sofás, as cadeiras, os armários - ou outras tralhas velhas que alguém deixou de querer e que, por isso, encostou ao caixote do lixo -, a desaparecer em menos de minutos. Uns levam por gozo, é certo, mas outros por necessidade.

Vejo um bando de pardais barulhentos que lutam por uma migalha deixada no meio da estrada.

Vejo o gato gordo e coxo a fazer o que mais gosta (depois de fugir aos cães): a vadiar entre carros e a dormir de barriga para o ar, ao sol.

Vejo o vizinho que todos os dias sai de casa para deitar o lixo, mas antes pára num canteiro que fica no cantinho da rua para deixar comida ao gato. Daí ele ser gordo.

Vejo o Mike, o cão do rapaz de cabelo grisalho do prédio ao lado, que ladra e pula enquanto passeia. De felicidade. Depois entra no carro do dono, e segue com ele para o trabalho.

Vejo o Mozart, o golden retriever aqui da rua, a passear com a dona, e fico com saudades do Gaspar. O coração sobe-me para a garganta.

Vejo o meu pinhal e, nele, três coelhos destemidos que se arriscam a chegar perto da estrada, mas que rapidamente voltam para trás, aos saltos. E se perdem por entre os arbustos.

Vejo o mar, ao longe. Mas vejo o mar. Tão azul, mas tão azul, que se entranha com o céu.

Na minha rua vive-se. Mais do que isso, vivem-se vidas reais. Diferentes. Mas verdadeiras. Iguais a tantas outras.

E eu, vendo-as cá de cima, da minha varanda, sem pressa, consigo imaginar a história que está por detrás de cada uma.

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