2 de julho de 2013

Ainda hoje, aquele prédio.

O melhor dos programas era sair porta fora, descer as escadas a correr e ir passear para o jardim do Campo Grande. Era perto da nossa casa. Bastava-nos seguir até ao fundo da avenida onde morávamos.

Aquelas estradinhas por entre árvores enormes eram sinónimo de divertimento.

Ali brincava-se. Muito e a muita coisa. Ou andávamos de patins (eu tinha uns vermelhos com rodinhas), ou íamos para as piscinas, ou andávamos de calhambeque, ou passeávamos de barco no lago, ou bastava-nos o parque infantil. Tudo nos servia. E gelados. Comíamos sempre um gelado. Perna de Pau, Super-Maxi ou Epá.

A minha brincadeira preferida era nadar nas piscinas. Andar de barco assustava-me por não ver o fundo do lago, por causa do verde das águas. Já para não falar do raio dos patos mais atrevidos, que nos vinham roubar a comida que traziamos. Depois, andar de patins nunca foi o meu forte e os calhambeques também eram um problema, porque os meus pés insistiam em se enfiarem por entre os pedais e o chão do jardim. Resultado? Ficava sempre toda negra. Por isso, o que eu mais gostava era mesmo nadar nas águas das piscinas, sempre cheias de crianças.

Ali perto, mesmo do outro lado da rua, havia um prédio velho. Degradado. Ao lado do restaurante Tatu. Onde viviam famílias pobres, maioritariamente de raça negra.

Era onde vivia a Raquel com a família. A Raquel era a minha nova colega de turma da Eugénio dos Santos. Era muito pobre. Mas eu não me preocupava. Gostava dela e eramos amigas.

Usava um carrapito no alto da cabeça, mas alguns cabelos ficavam sempre soltos por serem mais curtos, o que lhe dava um ar despenteado. Tinha a pálpebra do olho direito descaída. Dizia-se que tinha ficado assim depois da morte do irmão mais novo. Nunca soube se era verdade. Ninguém jogava ao elástico como ela. Saltava mais alto que qualquer uma de nós.

Andava sempre com roupa velha. Lavada, mas velha. Via-se que passava de irmão para irmão. Estava usada. Muito usada.

Um dia perguntou-me se a podia acompanhar até casa. Precisava de ir lá buscar uns livros. Tremi. Estava a convidar-me para entrar, pela primeira vez, naquele prédio. Que sempre me tinha metido medo de tão degradado, de tão escuro.

Mas fui. Quando começámos a subir a escada, percebi que a degradação que me habituara a ver de fora era, de longe, menor que a que se via - e vivia - por dentro. Vi bebés de fraldas de pano a brincar pelos corredores dos pisos. Cheios de ranho, despidos, sozinhos, sem adultos por perto. Entregues a eles.

Chegámos a casa dela. O cheiro não era agradável. Mas o que mais me impressionou foi a falta de paredes. As divisões estavam todas separadas por lençóis agarrados ao tecto por uns pequenos pregos.

Tinha três quartos, cozinha, casa de banho. A sala tinha sido transformada em quarto para receber mais família. Eram 5 irmãos, e não sei quantos primos. Viviam todos juntos.

Quem nos recebeu foi a mãe. Uma senhora magrinha com um aspecto envelhecido e cabelo esbranquiçado, sem dentes. Mas recebeu-me de braços abertos e com um grande sorriso. A “menina da avenida” estava lá em casa com a filha.

Levou-me à cozinha, queria que eu comesse “qualquer coisa”. Agradeci mas recusei. Não consegui, confesso.

Por cada divisão pela qual passávamos, dava com a Raquel a olhar para mim, discretamente. Senti que tentava perceber o que me ia na alma enquanto me mostrava a pobreza em que vivia. Mas eu nunca me mostrei incomodada. Fi-lo com esforço, mas tentei encarar sempre tudo o que via com naturalidade.

Para não deixar dúvidas, pedi-lhe um copo com água. Dirigimo-nos à cozinha, ela abriu o frigorífico. Estava quase vazio. Pegou numa garrafa de vidro com água fresca que deitou no copo e deu-mo para a mão. Bebi sem pestanejar. Era da torneira, sabia mal, mas não pensei duas vezes. Bebi e pronto. Agradeci com um sorriso. Que ela retribuiu. Tipo "passaste no teste".

Pegámos nos livros e saímos pelo mesmo caminho pelo qual tínhamos entrado. Volto a ver os miúdos de fraldas espalhados pelos corredores, a brincar. Continuavam sozinhos.

Naquele dia fiquei a conhecer melhor a Raquel. E ela a mim. Eramos amigas. Ficámos mais, desde que partilhou comigo aquela parte da vida, que mais ninguém da escola conhecia. E por mim não ficariam a conhecer.
 
Tínhamos uns 10 ou 11 anos. Com 13 deixei aquela escola, passei para o Rainha D. Leonor. Deixei de ver a Raquel.

Uns anos depois a Câmara de Lisboa mandou demolir o prédio onde ela vivia. Sei que realojaram os moradores mas nunca soube onde. Perdi-lhe o rasto.

No lugar daquele prédio construíram um outro, de luxo. Mas sempre que passo por lá imagino a Raquel na janela do quarto, naquele que partilhava com as duas primas.

Há pessoas que passam pelas nossas vidas e que ficam. A Raquel, por alguma razão, foi uma dessas pessoas. Mesmo que os nossos destinos nos tenham afastado.
 
Mas a vida reserva-nos montes de surpresas. Quem sabe se um dia nos voltamos a ver?
 

1 comentário:

  1. Olá Marta,
    Uma boa partilha da experiência que viveste.

    É uma tarefa curiosa esta de encadear as imagens, acontecimentos, sentidos e emoções e trâze-los à tona do nosso pensamento para dar vida ao que guardamos dentro da nossa cabeça. (Eu sei como é...)

    Enquanto lia este teu post hoje, ouvia a música deste link e sei lá mas a frase "the king is gone but it is not forgotten" pareceu-me que se aplica. :)
    http://www.youtube.com/watch?v=rSycSBYHitc

    Até ao próximo.
    Bruno

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